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Os Escritos de Vicente Martínez : Marc Barreto Bogo
Publié en ligne le 31 août 2025
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A série Escritos, de Vicente Martínez, que apresentamos aqui e que o leitor encontrará reproduzida mais adiante1, é composta por um conjunto de páginas preenchidas por pequenos traços verticais, dispostos sequencialmente, que formam linhas. Na série completa constam doze páginas, dentre as quais somente algumas foram retidas para publicação na presente edição. As sequências desses curtos traços pretos variam em tamanho, inclinação e densidade, à medida que se avança. Agrupados em encadeamentos horizontais, os traços verticais (ou ligeiramente inclinados) formam linhas, análogas às linhas de textos escritos manualmente, preenchendo as páginas do alto ao baixo. Os conjuntos de traços variam de um total de cinco até treze linhas por página, em uma progressão que se alterna para mais e para menos, como os ritmos de um batimento cardíaco. Nas páginas iniciais, os traços parecem variar mais nas suas inclinações e nos espaçamentos entre cada risco, sendo mais irregulares, enquanto nas páginas finais a inclinação é mais marcadamente vertical, com espaços mais justos entre cada traço e um acabamento mais regular. Visualmente, portanto, do início ao fim do trabalho há uma variação que vai do espaçado ao denso, do claro ao escuro, do irregular ao regular, do curto ao longo : o traçado dos desenhos vai se tornando cada vez mais nítido, firme e intencional. Observar essa sequência de traços nos remete a duas problemáticas de fundo que a série põe em discussão. Em primeiro lugar, a questão do quanto há de escrita nos Escritos de Vicente Martínez e, em segundo lugar, o papel do ritmo visual nos modos de apreender essas imagens. Vejamos o que um olhar semiótico consegue nos dizer sobre essas duas questões.
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Se, por um lado, o título da série e sua organização topológica geral em uma sequência de linhas horizontais nos remete à ideia de um sistema de escrita, por outro lado, não há correspondência explícita com nenhuma escrita que conhecemos. Ou seja, conseguimos apreender sensivelmente os desenhos e a composição das imagens, mas não é possível, a princípio, lê-los cognitivamente. O que há, então, de “escrita” nesta série de Escritos ? |
1 Acta Semiotica, V, 9, 2025, pp. 197-201. |
Antes de mais nada, cabem alguns brevíssimos apontamentos sobre as características que poderiam determinar um sistema de escrita. Para Ferdinand de Saussure, as línguas naturais apresentavam uma característica fundamental de linearidade e a escrita seria apenas uma representação das linguagens verbais orais2. Essa visão foi posteriormente posta em discussão por diversos teóricos, dentre os quais Jean-Marie Klinkenberg, que indica que o marco importante da escrita é justamente o fato de ela articular a língua e seu caráter de linearidade ao mesmo tempo em que apresenta uma espacialidade apreendida pelo canal visual3. Klinkenberg entende uma “escrita” como um conjunto de signos que 1) apresentam um caráter visualmente discreto e 2) se combinam de maneira repetitiva em uma estrutura espacial determinada (um segmento de linha reta por exemplo, ou uma espiral, como no Disco de Festo). Ou seja, um sistema de escrita seria composto por certos elementos com distintividade visual (as letras ou caracteres de um sistema) que, empregados repetidamente por alguém que escreve, combinam-se ao longo de uma certa ordenação espacial. Levando em consideração essas características, vemos que os riscos pretos presentes no ensaio visual de Vicente Martínez certamente apresentam pequenas diferenças entre eles, que poderiam constituir unidades discretas, e que essas unidades são organizadas sequencialmente, em uma estrutura espacial linear. Sem dúvida, essas são qualidades visuais importantes dos sistemas de escrita que conhecemos. Ao bater os olhos em Escritos, de Martínez, podemos nos perguntar se esses traços não constituiriam, eles também, uma espécie de escritura velada, um “código secreto” a ser decifrado. No entanto, logo fica evidente que, entre os riscos pretos, o caráter de diferença visual não nos permite discretizar tão claramente um elemento do outro e, além disso, não é possível encontrar repetições perfeitas de traçados, que poderiam indicar a existência de caracteres recorrentes de um sistema de escrita. É por isso que, ao observarmos essa série de imagens, não nos preocupamos em tentar encontrar uma correspondência linguística exata em cada traço, mas buscamos apreciá-los por sua constituição plástica e por suas qualidades sensíveis visuais e espaciais. Trata-se de uma espécie de escrita “falsa”, que não é e não parece escrita, pois não se reconhece nenhum caracter de nenhum alfabeto familiar, mas a distribuição linear dos elementos, ainda assim, nos remete à organização topológica de um (imaginário) sistema de escrita. |
2 F. de Saussure, Cours de linguistique générale, Paris, Payot, 1967. 3 Cf. J.-M. Klinkenberg, “Vers une typologie générale des fonctions de l’écriture. De la linéarité à la tabularité, ou l’espace écrit comme intermédialité”, in L. Hébert, L. Guillemette (orgs.), Intertextualité, interdiscursivité et intermédialité, Québec, Presses de l’Université Laval, 2009. |
Essa dinâmica entre o ser e o parecer foi semioticamente abordada no trabalho desenvolvido por Greimas e seus colaboradores, especialmente em suas considerações sobre o estatuto da verdade e as estratégias discursivas do dizer verdadeiro4. Para a semiótica de Greimas, é a articulação entre a imanência e a manifestação, ou seja, entre o ser e o parecer, que confere efeitos de sentido de verdadeiro ou falso aos textos. A combinatória de relações lógicas entre os termos “ser” e “parecer” dá origem ao quadro das “modalidades veridictórias” ; segundo esse modelo, aquilo que não parece e não é está no âmbito da falsidade. |
4 Cf. A.J. Greimas, J. Courtés, “Verdade”, “Veridicção”, “Veridictórias (modalidades —)”, in Dicionário de semiótica, São Paulo, Cultrix, 1983, pp. 485-488. |
Em um estudo que o leitor encontrará na presente edição, abordamos precisamente os vários modos de incorporação da escrita nas artes, visando identificar e sistematizar os diferentes tipos de usos da escrita nas artes visuais contemporâneas a partir das modalidades veridictórias5. Nomeamos o tipo de uso baseado na lógica da falsidade como escrita simulada : “sistemas de imagens que apresentam recorrências e hierarquizações que lembram a escrita, ou fazem alusão a ela, mas que não podem ser decodificadas e em que tampouco identificamos caracteres de escritas reconhecidas”. A produção de Vicente Martínez entra, assim, na esteira de uma certa tradição artística em que os criadores simulam escritas, ainda que sem apresentar um caráter linguístico. Às manchas dispostas em sequência de Pierrette Bloch, às formas geométricas misteriosas de Paul Klee, às sequências de pontos e linhas finas de Joan Miró e aos feijõezinhos peruanos da obra de Ximena Garrido-Lecca, juntam-se agora esses novos Escritos. A simulação da escrita pode não ser lida cognitivamente, mas é apreendida sensivelmente, exigindo disposição estésica de seus observadores.
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Ora mais próximos, ora mais afastados, ora mais soltos, ora mais rigorosos, os traços distribuídos ao longo das páginas de Escritos determinam um ritmo visual particular : uma certa organização cadenciada dos elementos eidéticos ao longo da extensão das imagens. O próprio artista, ao evocar seu trabalho em uma comunicação pessoal, introduz a questão da dinamicidade e do ritmo entre suas preocupações : O contato com o desenho, a urgência do traço como uma necessidade que nasce e responde ao que o corpo diz, ao que o corpo fala. Uma língua, uma escrita que é da ordem do sensível como as próprias coisas. Foram estas inquietações que nortearam este ensaio. (...) Procuro abordar o desenho, o traço, como um ato de presença. A ação, o gesto, é imediato, registro do ato e responde à urgência, ao impulso que o alimenta. Ao observarmos os traços verticais plasmados na página, podemos imaginar os gestos mais ou menos precisos, velozes e cadenciados realizados por seu criador. |
5 M. Bogo e J. Pondian, “Entre ser e parecer : usos da escrita nas artes visuais”, Acta Semiotica, V, 9. |
Sabe-se que as pulsações rítmicas, juntamente às configurações plásticas, condicionam estesicamente a emergência do sentido6. Há uma estreita relação entre ritmo e sensibilidade corpórea, haja vista que nos próprios movimentos regulares do corpo há uma ritmicidade (no pulsar do coração, na respiração, no bater de pálpebras etc.), o que assume um papel fundamental em nossa apreensão rítmica7. Em Escritos, o ritmo de distribuição dos riscos ao longo das páginas remete ao ritmo corpóreo, gestual, de uma mão que deixa suas marcas no traçado das linhas. Pelos traços mais espaçados e irregulares no início da série, imagina-se um ritmo mais veloz e livre no começo do trabalho, enquanto os traços mais nitidamente justapostos e regulares do final do ensaio nos levam a depreender um ritmo visual mais lento e preciso. O ritmo de distribuição dos riscos contribui, ainda, para uma leitura das imagens que encontra semelhanças entre o traçado das linhas e o traçado ritmado dos caracteres em um sistema de escrita, dispostos eles também com uma dinamicidade própria ao longo das páginas de um manuscrito qualquer. Este ritmo visual e a distribuição linear nos fazem experimentar a sensação de estar face a uma escrita, mas uma escrita nova, desconhecida. Assim, ainda que a correspondência linguística esteja ausente, reconhecemos um efeito de sentido geral, apreendido pela dimensão do sensível, mais que pelo inteligível. |
6 Conforme as proposições de E. Landowski no capítulo “Modes de présence du visible”, em 7 Cf. M. Jacquemet, “Rythme”, in A.J. Greimas e J. Courtés, Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, Paris, Hachette, vol. 2, 1986, pp. 190-191. |
Estabelece-se, dessa maneira, uma relação entre a imagem daquele que escreve (ou desenha), o enunciador, e a imagem daquele que lê (ou observa), o enunciatário. Conforme a esquematização das interações discursivas elaborada por Ana Claudia de Oliveira a partir do modelo dos regimes de interação e sentido de Landowski8, as relações possíveis entre enunciador e enunciatário variam entre posições de maior ou menor transitividade. Segundo essa abordagem, encontraríamos em Escritos um tipo de “sentido sentido” : há uma certa transitividade e reflexividade entre enunciador e enunciatário, em uma dinâmica vinculada ao regime do ajustamento e, portanto, aos princípios de sensibilidade e de disponibilidade. No presente ensaio visual, o reconhecimento do que vemos como uma forma de escritura — uma forma nova, pessoal, subjetiva, que dá voz ao elã, ao ritmo vital de um sujeito criador — depende essencialmente, portanto, da sensibilidade e disponibilidade daquele que olha. Diante destes Escritos, somos convidados não a decifrar inteligivelmente, mas a apreender sensivelmente. Não há caracteres a serem lidos, mas marcas de uma presença que se insinua nos intervalos do traço. O gesto do artista partilha conosco um ritmo, um pulso, uma cadência. Esse ensaio visual se inscreve no espaço limiar entre o legível e o visível. |
8 A.C. de Oliveira, “As interações discursivas”, in id. (org.), As |
Referências AAVV, Du rythme, entre schématisation et interaction, Acta Semiotica, II, 3, 2022. Bogo, Marc Barreto, e Juliana Pondian, “Entre ser e parecer : usos da escrita nas artes visuais”, Acta Semiotica, V, 9. Greimas, Algirdas J., e Joseph Courtés, Dicionário de semiótica, São Paulo, Cultrix, 1983. Jacquemet, Marco, “Rythme”, in A.J. Greimas e J. Courtés, Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Tome 2. Compléments, débats, propositions, Paris, Hachette, 1986. Klinkenberg, Jean-Marie, “Vers une typologie générale des fonctions de l’écriture. De la linéarité à la tabularité, ou l’espace écrit comme intermédialité”, in L. Hébert, L. Guillemette (orgs.), Intertextualité, interdiscursivité et intermédialité, Québec, Presses de l’Université Laval, 2009. Landowski, Eric, Passions sans nom, Paris, P.U.F., 2004. — Interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014. Oliveira, Ana C. de, “As interações discursivas”, in id. (org.), As interações sensíveis. Ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski, São Paulo, Estação das Letras e Cores e CPS Editora, 2013. Saussure, Ferdinand de, Cours de linguistique générale, edição crítica organizada por Tulio de Mauro, Paris, Payot, 1967. |
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______________ 1 Acta Semiotica, V, 9, 2025, pp. 00-00. 2 F. de Saussure, Cours de linguistique générale, Paris, Payot, 1967. 3 Cf. J.-M. Klinkenberg, “Vers une typologie générale des fonctions de l’écriture. De la linéarité à la tabularité, ou l’espace écrit comme intermédialité”, in L. Hébert, L. Guillemette (orgs.), Intertextualité, interdiscursivité et intermédialité, Québec, Presses de l’Université Laval, 2009. 4 Cf. A.J. Greimas, J. Courtés, “Verdade”, “Veridicção”, “Veridictórias (modalidades —)”, in Dicionário de semiótica, São Paulo, Cultrix, 1983, pp. 485-488. 5 M. Bogo e J. Pondian, “Entre ser e parecer : usos da escrita nas artes visuais”, Acta Semiotica, V, 9. 6 Conforme as proposições de E. Landowski no capítulo “Modes de présence du visible”, em Passions sans nom, Paris, P.U.F., 2004. Ver também o dossiê Du rythme, entre schématisation et interaction, Acta Semiotica, II, 3, 2022. 7 Cf. M. Jacquemet, “Rythme”, in A.J. Greimas e J. Courtés, Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, Paris, Hachette, vol. 2, 1986, pp. 190-191. 8 A.C. de Oliveira, “As interações discursivas”, in id. (org.), As interações sensíveis. Ensaios de sociossemiótica, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2013. E. Landowski, Interações arriscadas (2005), trad. São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014. Résumé : Cet article présente la série Escritos, de Vicente Martínez, essai visuel composé d’un ensemble de pages emplies de petits traits verticaux formant des lignes, elles-mêmes variables par leur taille, leur inclinaison et leur densité. Deux questions se posent si on observe cette suite d’images selon une perspective sémiotique : dans quelle mesure a-t-on affaire à une écriture dans Escritos ? et quel est le rôle du rythme visuel dans la manière dont nous appréhendons ces images ? Face à cet essai visuel, nous sommes invités non pas à déchiffrer des traits un à un, en termes d’intelligibilité, mais à saisir, en termes sensibles, uu rythme et une cadence. Resumo : Este artigo apresenta a série Escritos, de Vicente Martínez, um ensaio visual composto por um conjunto de páginas preenchidas por pequenos traços verticais, que formam linhas, variando em tamanho, inclinação e densidade. Ao observar essa sequência de imagens em perspectiva semiótica, duas problemáticas despontam : em primeiro lugar, a questão do quanto há de escrita nos Escritos e, em segundo lugar, o papel do ritmo visual nos modos de apreender essas imagens. Diante deste ensaio visual, somos convidados não a decifrar inteligivelmente cada traço, mas a apreender sensivelmente um ritmo e uma cadência. Abstract : This article presents the work Escritos by Vicente Martínez, a visual essay composed of a set of pages filled with small vertical strokes that form lines, varying in size, inclination, and density. When observing this sequence of images from a semiotic perspective, two key points emerge : first, the question of how much writing there is in Escritos ; and second, the role of the visual rhythm in the apprehension of these images. When approaching this visual essay, we are invited not to intelligibly decipher each stroke, but to sensitively apprehend a rhythm and a cadence. Mots clefs : écriture, lecture, rythme, saisie, sens senti. Auteurs cités : Algirdas J. Greimas, Marco Jacquemet, Jean-Marie Klinkenberg, Eric Landowski, Ana C. de Oliveira, Ferdinand de Saussure. |
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Recebido em 10/04/2025. / Aceito em 15/06/2025. |