Analyses et descriptions

Modos de vida em área de risco

Nilthon Fernandes
Centro de Pesquisas Sociossemióticas,
PUC-São Paulo

 

Publié en ligne le 31 août 2025
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2025n9.73082
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Introdução

Áreas urbanas de risco, especialmente em grandes metrópoles brasileiras, representam um desafio complexo que envolve não apenas questões ambientais e de infraestrutura, mas também aspectos sociais, culturais e econômicos. A comunidade do Boulevard da Paz, situada no distrito de M’Boi Mirim, em São Paulo, é exemplo dessa realidade. Trata-se de uma comunidade construída em encostas sujeitas a deslizamentos de terra, onde a permanência consciente de milhares de pessoas em uma área de muito alta situação de riscos de desastres intriga pesquisadores e autoridades.

Muitos moradores não possuem condições econômicas de se mudar, enquanto outros, mesmo tendo algum recurso, mantêm-se no local devido a laços afetivos e comunitários profundamente enraizados. Nesse sentido, perguntamos : como essas populações atribuem sentido às suas vidas e ações em um ambiente permeado pela ameaça de desastre ? Quais estratégias discursivas e interacionais irrompem na convivência diária com o risco ? Neste artigo, que retoma o essencial de uma tese defendida em 2022, buscamos responder a essas questões por meio de uma análise sociossemiótica dos modos de vida no Boulevard da Paz, entendendo “modos de vida” como os padrões de ações, discursos e relações que os moradores desenvolvem ao habitar em uma área de risco1.

1 Cf. N. Fernandes, Sociossemiótica dos modos de vida da população em condições de riscos de desastres no Boulevard da Paz, M’Boi Mirim, São Paulo, Tese em Comunicação e Semiótica, P.E.P.G.C.S., PUC-São Paulo, 2022.

Isso significa examinar as narrativas, os valores, as práticas e as interações que constituem a vivência do risco. O Boulevard da Paz oferece um caso singular para esse tipo de análise. De um lado, destaca-se a relativa ausência do Estado no cotidiano local, estampada na precariedade de serviços básicos e na implementação limitada de políticas de redução de riscos. Do outro, observa-se a forte presença de atores locais que passam a desempenhar papeis centrais : líderes comunitários que articulam melhorias e reivindicações, grupos religiosos que oferecem amparo moral e orientação, e até organizações do crime que estabelecem normas paralelas de convívio.

Esses atores e instâncias constituem uma constelação complexa, onde cooperação e tensão coexistem na gestão informal do risco. Como apontam os resultados da pesquisa de campo, o sentido de habitar no Boulevard da Paz ergue-se da interação entre “o abandono do Poder Público”, com uma política marcada pelo clientelismo e burocracia ; de outro, a hierarquia de regências locais que inclui o crime organizado, os discursos religiosos e a ação política dos líderes comunitários.

1. Referencial teórico

O referencial teórico combina conceitos estruturais da semiótica (narratividade, modalidades, programa narrativo, presença / ausência, figuratividade, enunciação) que permitem descrever o que é significado e como é significado nos discursos e conceitos da sociossemiótica (regimes de interação, patêmico e estésico, tipologias de sujeitos) que permitem entender por que certos significados surgem em função do contexto situacional.

Nos interessa em primeiro lugar investigar ai modalizações que regem as ações, por exemplo, o “querer-fazer” coletivo de melhorar o bairro, o “saber-fazer” adquirido pela experiência com desastres, o “dever-fazer” associado à responsabilidade comunitária ou ainda as lacunas de poder-fazer diante da falta de recursos. Essas modalidades, quando mapeadas, mostram a dinâmica interna das práticas de prevenção, mitigação ou mesmo da resignação diante do risco.

 

No contexto da pesquisa, podemos pensar a “presença” em múltiplas acepções : a presença física do morador na área de risco em oposição à ausência de quem a deixa, a presença do Estado ou sua ausência sentida, a presença do risco como algo latente ou manifesto no ambiente e até mesmo a presença do próprio pesquisador em campo. Uma existência ausente pode ser tratada narrativamente como uma existência virtual, enquanto a existência presente corresponde ao nível atual e sintagmático do discurso2. Essa distinção teórica nos ajuda a compreender como os moradores interpretam, por exemplo, a ausência do poder público : ela não é um vazio sem sentido, mas ganha estatuto de presença virtual, preenchida pela memória ou expectativa do Estado que deveria atuar. De modo similar, enquanto ameaça, um deslizamento futuro está ausente no momento presente, mas se faz constantemente presente no imaginário coletivo como possibilidade ou como uma existência virtual do desastre. Trabalhar com as categorias de presença / ausência permite, portanto, descrever semioticamente as formas pelas quais os sujeitos e fenômenos aparecem ou desaparecem no universo de sentido da comunidade.

2 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de semiótica, São Paulo, Contexto, 2ª ed., 2013, pp. 382-383.

No Boulevard da Paz, podemos identificar diversos programas narrativos em curso : entre outros, o programa de ação dos líderes comunitários em busca de um “bairro seguro” por meio de mobilização política e obras, o programa de sobrevivência cotidiana dos moradores que desejam continuar vivendo no local apesar dos riscos. Em alguns casos, trata-se de programas de fazer-fazer, isto é, de manipulação : os líderes, atuando como destinadores manipuladores, incitam outros moradores a agir em prol da comunidade (por exemplo, mutirões de limpeza ou de pintura) ; em outros casos, identificamos programas de ações que buscam transformar o próprio ser ou estado de algo3.

3 Cf. A.J. Greimas, Da imperfeição, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017, pp. 23-24.

O fazer-ser diz respeito à realização de um novo modo de ser para o sujeito ou para o coletivo. A comunidade, por meio de suas ações conjugadas, procura fazer existir um novo estado de coisas, um bairro menos vulnerável, mais digno e plenamente habitável. As lideranças locais, ao articular as modalidades querer-fazer e saber-fazer, dever-fazer e poder-fazer dos moradores, erigem um projeto de fazer-ser da comunidade enquanto lugar seguro e reconhecido.

Programação, manipulação, ajustamento, acidente, todos esses regimes interdefinidos pela sociossemiótica estão presentes de alguma forma e às vezes interagem entre si. As práticas de limpeza e organização, por exemplo, podem nascer de uma manipulação inicial, mas ao se repetirem e se espalharem pela vizinhança acabam configurando uma programação coletiva, uma rotina incorporada ao hábito. Mutirões comunitários que começaram de forma pontual converteram-se em comportamentos regulares de manutenção do espaço, integrando mesmo moradores que não foram diretamente convocados pelos líderes, mas que aderem “de livre e espontânea vontade” ao ver o exemplo dos vizinhos. Essa transição de manipulação para programação ilustra a capacidade de auto-organização local. Por outro lado, quando as estratégias de mobilização não conseguem engajar a todos — isto é, quando há falha na manipulação e limitação na programação comunitária —, surge uma espécie de fissura social que pode expor a comunidade ao regime do acaso. Se parte dos moradores permanece alheia aos esforços de prevenção, o efeito é a manutenção ou agravamento do risco, podendo sobrevir um desastre, um “acidente” com sua carga patêmica (de sofrimento, medo), diante do qual os indivíduos podem recorrer a explicações ou soluções de cunho transcendental, fora da racionalidade técnica. Por exemplo, enquanto alguns apostam em “escolher um governo mais equitativo”, outros optam por rezar, orar, crer em uma figura mítica... ou aceitar sua condição de vítima conforme “a natureza deseja” ou “os espíritos determinam”.

Essas atitudes exibem, frente ao risco, as dimensões patêmica, relacionada às emoções, e estésica, ligada à percepção sensível. Assim, o recurso à fé ou ao destino pode ser visto como um ajustamento a uma ordem de sentido diferente — não havendo controle humano (acaso), busca-se ajustamento com uma suposta vontade divina ou com o curso natural, numa tentativa de restaurar um sentido à experiência do desastre. Como veremos, em uma comunidade como o Boulevard da Paz, nem todos os moradores reagem igualmente ao risco ou às iniciativas dos líderes.

2. As etapas da análise

A investigação foi conduzida segundo uma perspectiva qualitativa, exploratória e interpretativa, alinhada aos princípios da pesquisa sociossemiótica. O desenho metodológico integrou duas etapas principais em constante diálogo : imersão empírica no campo e análise semiótica estrutural dos dados coletados. Essa combinação visa aproveitar a riqueza das experiências vividas e observadas in loco e o rigor analítico proporcionado pelos modelos teóricos.

A primeira fase consistiu na inserção do pesquisador no cotidiano do Boulevard da Paz. Essa imersão envolveu visitas regulares à comunidade, acompanhando momentos de rotina — dias sem incidentes, atividades comuns dos moradores — e situações críticas — por exemplo, dias de chuvas intensas, pequenas ocorrências de deslizamento, reuniões emergenciais. O pesquisador adotou uma postura de observador participante, buscando interagir com os moradores para compreender suas percepções e registrar as diversas manifestações de sentido relacionadas ao viver em uma área de risco. Para sistematizar essas observações, manteve-se um diário de bordo, no qual eram anotados diariamente os eventos relevantes, diálogos, emoções percebidas e descrições do ambiente físico. Esse diário serviu como um corpus narrativo inicial, expressando a presença do pesquisador e sua interação com o lugar — um repositório das experiências enunciadas pelos sujeitos locais e pelo próprio pesquisador ao vivenciá-las.

A segunda etapa ficou reservada ao tratamento analítico-interpretativo do material empírico à luz do referencial teórico. Inicialmente, procedeu-se a uma leitura exaustiva do diário de bordo e à transcrição-organização de trechos selecionados de falas dos moradores e descrições de eventos. Desde então, aplicaram-se categorias semióticas para decompor e compreender o conteúdo. Por exemplo, identificamos no corpus cenas consideradas narrativas exemplares — momentos que condensavam significados-chave, como uma evacuação preventiva bem-sucedida ou um conflito entre moradores e técnicos da prefeitura — e, sobre elas, construímos as análises mapeando as oposições e contradições conceituais presentes no universo discursivo local — como segurança vs perigo, presença vs ausência (do Estado), ação coletiva vs dúvida, esperança vs fatalismo.

Paralelamente, montamos modelos actanciais para representar os papéis temáticos desempenhados pelos atores sociais nas narrativas de enfrentamento do risco. Assim, em um esquema actancial extraído das informações, notamos que os moradores engajados aparecem como sujeitos buscando o objeto de valor “bairro seguro” ; os líderes comunitários funcionam como destinadores — incitando e dando sentido à ação — e também às vezes como destinatários — recebendo demandas da comunidade ou ordens de órgãos oficiais ; o poder público ora aparece como oponente — quando suas ações — ou omissões — contrariam o objetivo dos moradores —, ora potencialmente como ajudante — quando provê recursos, ainda que insuficientes ; o terreno instável e as chuvas configuram-se como uma espécie de força da natureza que, sem intencionalidade, age como um oponente circunstancial, acionando o regime do acaso ; e valores como solidariedade e conhecimento técnico atuam como ajudantes imateriais que impulsionam o sujeito na sua missão.

Um aspecto central do trabalho foi a análise das modalidades discursivas presentes nas falas e textos coletados. Buscamos trechos onde os moradores expressassem desejos, obrigações, saberes ou capacidades relacionados ao risco. Por exemplo, declarações como “queremos continuar morando aqui, mas sem medo” manifestam a modalização do querer ; “temos que nos unir para cobrar a prefeitura” assinala um dever-fazer coletivo ; “sabemos quando o barranco vai ceder, pelos estalos” exprime um saber-fazer empírico ; “não podemos sair daqui, não temos outro lugar” indica simultaneamente um não-poder (deixar a área) e talvez um querer-ser (manter-se na comunidade). Ao categorizar essas modalidades, foi possível delinear o perfil modal da comunidade, isto é, quais combinações de modalizações são mais recorrentes. Identificamos, por exemplo, a predominância de enunciados de volição e deônticos compartilhados — “querer” e “dever” coletivos de melhorar as condições de vida —, combinados com modulações de saber prático e reconhecimentos de poder-fazer limitado. Essa constelação modal sugere uma coletividade que se percebe ao mesmo tempo motivada e responsável pela mudança, embora constrangida materialmente.

Outra dimensão foi a identificação de regimes de interação operando nos episódios relatados. Para cada evento-chave descrito no diário, perguntamos : essa situação foi vivenciada como fruto de um planejamento / programação, de uma iniciativa de manipulação, de um ajuste mútuo ou de um acaso ? Por exemplo, uma campanha comunitária de conscientização sobre lixo foi analisada como resultado de manipulação, onde os líderes persuadem moradores a aderir, visando instituir uma programação ; já a súbita queda de um muro durante uma intensa chuva foi interpretada como acontecimento do acaso, seguido, porém de um ajuste solidário. Mapeando diversos eventos ao longo do tempo, percebemos uma alternância e por vezes sobreposição desses regimes.

Os resultados parciais da análise semiótica foram integrados em uma análise teórico-empírica conjunta, buscando ancorar os conceitos abstratos em evidências do campo e, mutuamente, explicar os dados empíricos pelo quadro conceitual. Adotamos um estilo de redação analítica que mescla descrição e interpretação : trechos do diário e falas dos atores são apresentados e interpretados sob a lente da semiótica. As interpretações foram validadas por meio de triangulação entre diferentes fontes de dados — observação direta, falas dos moradores, documentos consultados como relatórios da Defesa Civil ou notícias locais — e pela coerência do modelo semiótico aplicado.

3. A vida em suspenso :
habitar o risco e (re)significar a permanência

A rotina dos moradores é marcada por uma tensão permanente entre o desejo de uma vida normal e a consciência latente do perigo. Essa ansiedade transparece nas narrativas coletadas. Muitos habitantes relatam experiências traumáticas passadas — por exemplo, deslizamentos menores que danificaram casas ou a evacuação emergencial de vizinhos em noites de temporal — que os deixaram em constante estado de alerta. Apesar disso, optam por ficar. “Aqui é o meu lugar, construí tudo com muito sacrifício”, disse um morador de 52 anos, enfatizando o valor de uso e de afeição da casa onde criou os filhos. Essa fala ilustra a modalidade do querer-ser no espaço : mais do que querer fazer algo, trata-se de querer ser parte daquele lugar, manter sua identidade vinculada à comunidade e ao território. Para este morador e muitos outros, sair significaria romper não só com um espaço físico, mas com uma rede de significados — vizinhança, história de vida, pertencimento. Assim, essa presença afetiva com o local funciona como um destinador modal, conferindo aos sujeitos a competência para suportar adversidades — o poder-fazer suportar as condições difíceis — e justificar a permanência — o dever ficar para não trair suas raízes.

A partir das observações, notamos que os moradores elaboram diversas estratégias simbólicas para ressignificar a condição de risco e torná-la compatível com a continuidade da vida cotidiana. Uma dessas estratégias é a normalização discursiva do risco : muitos se referem aos deslizamentos e enchentes como coisas incorporadas à paisagem de vida, quase rotineiras. Expressões como “quando a terra descer de novo a gente resolve” ou “todo verão é isso, a gente já sabe lidar” foram frequentes. Nesse discurso, o regime do acaso, o desastre possível, é de certo modo domesticado pelo saber local e pelo hábito, lembrando o que Landowski chama de programações que visam aproximar a comunidade de um regime de segurança com poucos acidentes4. Em outros termos, os moradores incorporam a lógica do risco em um regime de programação cotidiana : verificam rotineiramente as condições do solo, limpam as canaletas antes das chuvas, definem pontos de encontro seguros.

4 E. Landowski, As interações arriscadas, trad. São Paulo, Estação das Letras e das Cores, 2014, p. 32.

Entretanto, normalizar não significa ignorar. Há também uma constante reconstrução narrativa dos eventos críticos passados que servem como aprendizado e coesão comunitária. Nas entrevistas, frequentemente os moradores lembravam o grande deslizamento de 2017, o mais grave da década, em detalhes vívidos : “A terra veio abaixo naquela madrugada... parecia um rugido, um tremor”. Ao narrar o ocorrido, cada um assumia um papel : o senhor que salvou uma criança dos escombros é celebrado como herói ; a ausência do Corpo de Bombeiros nas primeiras horas é citada como evidência da negligência estatal ; a igreja que abrigou os desabrigados torna-se símbolo da solidariedade. Essas narrativas funcionam como mitos locais fundadores : fixam valores de coragem, união e fé e dão sentido ao sofrimento passado, tornando-o base para uma identidade coletiva resistente. Em termos semióticos, tais relatos transformam um acontecimento patêmico caótico em uma estrutura narrativa dotada de começo, meio e fim, com sujeitos, provas e desfecho. A memória do desastre, portanto, alimenta a motivação atual : “sobrevivemos uma vez, aprendemos, vamos evitar que aconteça de novo”. Esse é um claro enunciado de competência modal : o saber-fazer adquirido da experiência e o dever-prevenir futuramente.

3.1. Entre a vigilância e a negligência burocrática

Um eixo analítico central é a relação da comunidade com o poder público. O Boulevard da Paz, como muitas áreas periféricas, vivencia uma contradição : está mapeado nas instâncias oficiais como área de risco, ou seja, sob o olhar das políticas públicas de Defesa Civil, mas os moradores sentem, no dia a dia, a ausência concreta do Estado em apoio e investimentos. No capítulo “O panóptico e os sistemas de riscos de desastres”, discutimos como as tecnologias de monitoramento e mapeamento de risco — câmeras, relatórios geológicos, mapas de setores de risco — criam uma espécie de olhar panóptico sobre as favelas de encosta, enquadrando-as como objeto de vigilância constante5. Em princípio, essa vigília indicaria presença estatal : técnicos sabem onde estão os pontos críticos, há registros de cada ocorrência etc. Contudo, essa presença é sobretudo discursiva e burocrática. Na prática, os moradores relatam que a interação com órgãos públicos se resume a visitas esporádicas de agentes para avaliar o terreno e, eventualmente, notificações de remoção para algumas famílias. Não há um diálogo efetivo, nem soluções duradouras apresentadas. O governante ou técnico age como um destinador mandatário que não sugere nenhum contrato e não exige nada em troca, limitando-se a prescrições de ordem preventiva ou a medidas pontuais como remover casas. Essa atitude coloca o Estado num regime de programação frio e distante, mas falha em engajar os sujeitos locais num projeto comum — não há manipulação positiva, nem ajustamento às realidades vividas.

Dessa forma, do ponto de vista dos moradores, o Estado está e não está presente : ele se faz sentir como poder que delimita — pelos mapas de risco que impedem reformas nas casas, por exemplo, ou da ameaça de remoção que paira sobre todos, mas não como parceiro que realiza. Em termos semióticos, poderíamos dizer que o destinador Estado impõe um não-fazer, proibição de permanecer em certas áreas, obrigação de evacuar sob certas condições, sem oferecer um fazer-ser alternativo que seja aceitável para os sujeitos, como moradia digna em local seguro. Essa assimetria de contrato enfraquece a legitimidade das ações estatais. A consequência observada é que muitos moradores oscilam entre a desconfiança e a instrumentalização : por um lado, desacreditam das soluções públicas ; por outro, utilizam estrategicamente a presença eventual para obter recursos. A ausência do Estado no cotidiano, a falta de obras de infraestrutura, de assistência contínua, é interpretada não como simples vazio, mas como abandono — um elemento carregado de sentido negativo que alimenta a indignação e a união local. E por outro lado, a presença burocrática, com mapeamentos e notificações, é percebida como ineficaz ou até ameaçadora, gerando resistências veladas. Contudo, essa tensão tem também um efeito mobilizador : diante da carência, os moradores desenvolvem iniciativas próprias ; e diante da possibilidade de remoção, articulam discursos de direito à permanência.

5 N. Fernandes, Sociossemiótica dos modos de vida..., op. cit., p. 71.

3.2. Uma ecologia de regências sociais

Em contraste com a frágil atuação estatal, é notável uma robusta ecologia de lideranças e manipulações que orientam a vida comunitária. Três forças, em especial, foram identificadas como estruturantes : os líderes comunitários formais, as lideranças religiosas, em especial de igrejas evangélicas locais, e os líderes do tráfico de drogas, que controlam certa ordem social na favela. À primeira vista, pode parecer improvável analisar conjuntamente agentes tão díspares — o ativista comunitário, o pastor/padre, o chefe do crime. Contudo, a pesquisa mostrou que há uma intersecção de interesses e até cooperação tácita entre eles, compondo uma hierarquia de regências no âmbito local.

1. Os líderes comunitários são moradores antigos, reconhecidos pelos pares, que assumiram ao longo do tempo papeis de porta-voz e organizadores da comunidade. Eles fundaram associações de moradores, representam a favela em fóruns externos e coordenam ações como mutirões, abaixo-assinados e manifestações. Sem poder institucional, exercem uma autoridade que vem da legitimidade conferida pela comunidade — são, na linguagem semiótica, destinadores-manipuladores no sentido positivo : inspiraram confiança e adesão.

2. As lideranças religiosas — notadamente pastores de igrejas pentecostais muito presentes na região, mas também agentes de pastorais católicas — exercem outra forma de influência. Se os líderes comunitários operam no registro da razão pública, os religiosos atuam no registro patêmico e ético : oferecem conforto espiritual, explicações transcendentais para o sofrimento e uma rede de apoio moral e material como distribuição de doações. Em momentos de crise, como pós-deslizamento, é comum a igreja local converter-se em abrigo e centro de coordenação da ajuda, em paralelo, quando não à frente, das instituições oficiais.

3. Os líderes do tráfico de drogas representam uma instância paradoxal. De um lado, suas atividades criminosas e a lógica violenta impõem riscos adicionais à comunidade. De outro, é inegável que eles mantêm uma ordem paralela que, em certos aspectos, coíbe desordens e supre ausências do Estado. Moradores mencionaram, por exemplo, que traficantes locais proibiram certos trechos de serem habitados após grandes chuvas até verificarem a segurança, efetivamente agindo como “Defesa Civil informal”. Em outra ocasião, frente a boatos de saque a casas evacuadas, foram integrantes do crime que garantiram vigilância para evitar roubos. Essas ações pragmáticas indicam que, apesar da ilegalidade, existe uma inserção dos criminosos no tecido social da favela de modo complexo — eles também habitam o lugar e têm interesse na sua estabilidade, ainda que por razões de manutenção de território.

Essa “ecologia de regências” — comunitária, religiosa e criminal — não é isenta de conflitos internos, mas de modo interessante, frente ao grande inimigo comum, o desastre, a precariedade, tende a haver uma trégua e até colaboração. O campo registrou cena de todos esses agentes juntos : numa campanha de doação após uma chuva forte, via-se lado a lado o líder comunitário, o pastor e um conhecido traficante entregando colchões e comidas às famílias atingidas. Cada qual tinha sua motivação, mas a ação convergia para um mesmo objeto de valor imediato : socorrer a comunidade ao mesmo tempo que reforçava o fazer-ser do Boulevard da Paz como uma comunidade unida. Diante de certas ameaças globais, as diferenças de regime podem diluir-se em um ajustamento situacional : o risco concreto faz aflorar uma inteligência coletiva prática, onde até atores adversos cooperam instintivamente — uma espécie de contrato de sobrevivência.

Em resumo, a comunidade encontra, em si mesma, suplência para a falta de instituições formais. A produção de sentido sobre “quem manda” e “quem cuida” do local se desloca : sai da órbita do Estado e entra na esfera desses líderes locais, sejam legítimos ou paralelos. Para os moradores comuns, essa constelação traz certa segurança, mas também ambiguidade moral. Do ponto de vista semiótico, podemos dizer que o destinador que confere sentido e direção à vida no Boulevard da Paz deixa de ser uno e passa a ser coletivo : é um destinador múltiplo, distribuído entre figuras de autoridade formal e informal. Assim, o modo de presença da autoridade no bairro é plural, emanando de vários polos. Esse fato modifica / os modos de sujeição dos moradores : eles ajustam seu comportamento conforme o contexto e o interlocutor. Na igreja comportam-se como fiéis obedientes a um ethos pacífico ; com o líder comunitário, como cidadãos cooperativos ; sob o domínio do tráfico, como subordinados silenciosos. Longe de indicar incoerência, isso demonstra uma competência semiótica sofisticada : os sujeitos sabem transitar entre diferentes sistemas de sentido, sobrevivendo e mantendo um grau de agência em cada um.

4. Práticas de produção de sentido e resiliência coletiva

No dia a dia do Boulevard da Paz, diversas práticas sociais concretas funcionam como veículos de produção de sentido e ao mesmo tempo de redução da vulnerabilidade da população. A análise identificou algumas práticas-chave : mutirões de limpeza e obras, reuniões comunitárias, festas locais e narrativas orais. Cada uma delas cumpre um papel semiótico na construção da resiliência coletiva.

1. Os mutirões de limpeza e pequenas obras são talvez a prática mais recorrente. Organizados geralmente pelos líderes, mas às vezes espontaneamente por um grupo de vizinhos, esses mutirões incluem atividades como desobstruir córregos de escoamento de água, recolher lixo acumulado em áreas críticas, reforçar com sacos de areia alguma encosta após chuvas, construir escadas rudimentares em vielas íngremes etc. À primeira vista, são ações utilitárias, de melhoria material. Contudo, elas carregam significados profundos : representam a capacidade de ação coletiva e a tomada de responsabilidade dos moradores sobre seu espaço. Ao narrativizar essas ações, frequentemente os participantes as comparam a “cuidar da própria casa”. Frases como “se nós não fizermos, ninguém fará” ou “juntos, a gente arruma nosso canto” evidenciam o valor modal deôntico em operação — o dever-fazer comunitário em prol do bem comum.

2. As reuniões comunitárias também desempenham papel semiótico essencial. Além da grande reunião com autoridades, existem encontros regulares da associação de moradores ou assembleias informais em momentos necessários. Nesses espaços, os problemas são discutidos e as decisões são tomadas coletivamente ou com conhecimento geral. Do ponto de vista da enunciação, a reunião é o momento em que a comunidade se dirige explicitamente a si mesma. Moradores se alternam como enunciadores contando problemas, fazendo queixas ou sugestões ; o grupo, como enunciatário, ouve, reage, entra em consenso. Às vezes há conflitos verbais, mas mesmo esses confrontos são importantes por trazer à superfície tensões que podem ser mediadas.

3. As festas locais — festividades juninas, dia das crianças, natal comunitário etc. — podem parecer desvinculadas da questão do risco, mas têm uma função social-simbólica relevante. Elas reafirmam a positividade da vida em comunidade. Durante esses eventos, a favela se enfeita, há compartilhamento de alimento, música, brincadeiras — por um momento, o foco não é a carência ou o perigo, mas a celebração do coletivo. Em termos semióticos, essas festas funcionam como rituais de inversão ou de suspensão da narrativa tensa do risco, permitindo a vivência do lúdico e do sagrado que renova as energias sociais. Para grande narrativa, elas inserem intervalos patêmicos de alegria e coesão, importantes para a experiência de sentido global : os moradores não são definidos apenas pelo sofrimento ou luta, mas também pela capacidade de gerar felicidade e cultura.

A oralidade é constante : a circulação de histórias, conselhos e até boatos fazem parte da construção do sentido do lugar. Essas histórias constroem uma memória coletiva que dá profundidade temporal ao lugar — não é apenas uma ocupação irregular recente, mas um local com trajetória. Isso ajuda a legitimar a permanência : quem narra as origens no passado reforça a ideia de que a comunidade tem raízes que não podem ser arrancadas facilmente. Já no presente, a troca de informações práticas — por exemplo, alguém conta que ouviu um estrondo debaixo do chão de sua casa na noite anterior e os vizinhos interpretam como aviso de movimento de terra — gera um sistema de alerta informal.

Em muitos relatos, antes de um incidente maior, ocorriam pequenos sinais que os moradores aprenderam a ler e sobre os quais comunicavam entre si, às vezes acionando evacuações preventivas até mais rápido do que as sirenes oficiais. Isso representa a tradução semiótica da relação com a natureza : a comunidade criou seu repertório semântico de indícios de risco, compartilhando-os oralmente como conhecimento tácito. Em paralelo, a difusão midiática na utilização das redes sociais tem crescido. Moradores gravam vídeos de problemas e postam no Facebook, grupos de WhatsApp da comunidade disparam avisos de chuva forte — com base em aplicativos meteorológicos ou alertas da Defesa Civil. Essa apropriação de mediações técnicas amplia o alcance das vozes locais e muitas vezes coloca pressão nas autoridades. Assim, o discurso da comunidade transborda suas fronteiras e tenta influenciar a enunciação midiática da cidade, buscando reconhecimento.

5. Resultados da pesquisa de campo

Ao olhar de perto o caso do Boulevard da Paz podemos ver um conjunto de resultados que respondem às questões iniciais da pesquisa e oferecem um panorama articulado dos modos de vida sob risco. Os principais resultados podem ser sintetizados nos seguintes pontos.

1. Fatores da permanência e busca de sentido : confirmou-se que a decisão de permanecer na área de risco deriva de dois conjuntos de fatores interligados — um material / estrutural e outro simbólico / afetivo. Do lado material, a baixa renda e a falta de alternativas habitacionais viáveis pesam enormemente: a maioria dos moradores não tem o poder-fazer a mudança, pois os custos de morar em áreas seguras da cidade são inviáveis a essa comunidade. Entretanto, isso por si só não explica a permanência se não houver o componente afetivo. O apego ao lugar, construído por laços de vizinhança, memórias familiares e uma identidade local, mostrou-se essencial. Muitos indivíduos que poderiam ter saído, optaram, ainda assim, por ficar ou voltar por sentirem que ali estava sua verdadeira casa. A pesquisa constatou que os moradores atribuem sentido positivo ao ato de ficar : é interpretado como resistência, fidelidade às próprias raízes e até missão coletiva. Em termos semióticos, permanecer ganhou a conotação de valor — não é simples inércia, mas um querer-ser no local, carregado de significado. Assim, a permanência consciente não é uma adesão cega ao risco, mas uma negociação : troca-se parte da segurança por outros valores : comunidade, identidade, esperança de melhoria. Essa racionalidade valorativa interna contradiz a visão externa de que essas populações “não sabem o risco que correm” — elas sabem, mas pesam diferentemente os componentes desse risco dentro de uma economia própria de valores.

2. Modos de presença dos sujeitos diante do risco : a análise identificou distintos modos de presença dos moradores enquanto sujeitos atuantes ou não atuantes no enfrentamento dos riscos, correspondendo em larga medida à tipologia de presença. Em resumo :

Engajamento ativo. Um segmento da população, incluindo os líderes comunitários e seus colaboradores próximos, adota uma postura proativa. Esses sujeitos estão presentes de modo agente, isto é, tomam para si a tarefa de transformar a realidade. Representam cerca de 20% dos moradores, segundo estimativas qualitativas — participantes frequentes de reuniões e mutirões. Seu modo de vida incorpora as práticas preventivas e a busca de melhorias contínuas — são os primeiros a chegar em ações coletivas e os últimos a sair. A presença deles é sentida em toda parte : são conhecidos pelo nome, servem de referência e intermedeiam informações.

Apoio passivo (confiante). Um segundo grupo — talvez cerca de 50% dos moradores — não participa ativamente da organização, mas também não se opõe. Esses adotam um modo de presença acomodada, porém solidária. Não lideram iniciativas, mas quando convocados ou diretamente beneficiados, aderem. Muitos confiam nos líderes para decidirem e agirem pelo bem de todos — “deixo nas mãos deles, que sabem o que fazem”, foi uma frase representativa. Seu envolvimento tende a ocorrer mais em situações emergenciais — quando sentem o perigo próximo, juntam-se ao esforço coletivo — e menos na rotina preventiva. Podemos associá-los ao perfil “semi-motivado”6 : delegam a agência, mas continuam pertencendo ao coletivo pelo laço de confiança (ajustamento).

6 Cf. E. Landowski, op. cit., p. 42.

Indiferença e fatalismo. Um terceiro grupo, minoritário — talvez 20-30% —, mostra distanciamento em relação às mobilizações. São pessoas que, por diversos motivos, não se envolvem : alguns por descrença, outros por prioridades alheias e outros ainda por desejarem sair dali se tivessem chance. Esses indivíduos manifestam um modo de presença ausente, no sentido de que, embora presentes fisicamente na comunidade, discursivamente se colocam à parte — evitam falar nos espaços coletivos, não aderem ao discurso da resistência, ou então expressam abertamente um fatalismo. “Se Deus quis assim, quem sou eu...” ou “Uma hora essa barreira cai e leva tudo, não há o que fazer”. Esse fatalismo é um mecanismo de defesa psíquica, mas socialmente pode minar iniciativas — são os que não atendem aos alertas, que não colaboram com tarefas preventivas.

3. Regimes de interação e construção do comum. A vida social no Boulevard da Paz diversifica entre diferentes regimes de interação, mas a tendência geral observada foi uma predominância do regime de manipulação e de programação endógenas à comunidade, para completar a falha da programação institucional exógena. Em outras palavras, diante da insuficiência das políticas públicas e da imprevisibilidade do risco físico, a comunidade inclinou-se a organizar-se deliberadamente e a instituir rotinas e normas internas visando aumentar a segurança. Exemplos claros incluem a autogestão da limpeza urbana e a criação de sistemas informais de alarme. Esse movimento reflete o que Landowski descreveu como busca de um regime de segurança mediante conjunção de programações.

4. Relação com o Estado e agenciamento local. Um resultado de cunho mais sociopolítico foi a constatação de que, mesmo sem recursos formais, a comunidade conseguiu agenciar algumas mudanças institucionais ao seu favor. A pressão contínua, via documentos, protestos localizados, exposição midiática, resultou em ganhos como : inclusão da área em programas de monitoramento pluviométrico, instalação de pluviômetros automáticos em 2020, prioridade na construção de obras de contenção da prefeitura e maior frequência de vistorias da Defesa Civil em épocas de chuva. A sociossemiótica captou esse processo de tradução : os enunciados do cotidiano foram re-enunciados em documentos e vídeos com forte carga figurativa e argumentativa, atuando como textos persuasivos. Uma carta enviada ao prefeito em 2019, anexando abaixo-assinado, trazia a frase : “Não queremos ser as próximas vítimas evitáveis de tragédia anunciada”, uma enunciação potente que conjuga pathos — apelo emocional de evitar mortes —, logos, pois “tragédia anunciada” indica que há previsão e que, portanto, prevenção é possível, e ethos : “queremos” colocar os cidadãos como sujeitos conscientes e dignos de atendimento. Esse tipo de discurso acabou citado em audiência pública na câmara municipal, sinal de que atravessou instâncias numa relação hiperotáxica. Logo, um efeito significativo foi o empoderamento discursivo da comunidade : ela se reconhece hoje mais capaz de dialogar de igual para igual com autoridades, munida de conhecimento e legitimidade.

5. Valorização do espaço e transformação identitária. Um resultado qualitativo notório foi a mudança na autoimagem coletiva. No início da pesquisa, em 2017, prevalecia entre muitos a visão de favela como um “lugar de problema”, associando-a a coisas negativas como risco, pobreza e descaso. Ao final, em 2021, percebeu-se um discurso emergente de orgulho local : falaram do Boulevard da Paz como “comunidade”, enfatizando conquistas, como ter água e luz regularizadas, ter recebido um posto de saúde próximo, as ruas com endereçamento postal e asfaltadas etc. e até qualidades ambientais : muitos mencionaram a vista bonita do alto do morro, o ar mais puro que no centro da cidade. Essa mudança semântica — de favela-problema a comunidade-com-virtudes — indica um processo de ressignificação do espaço. Os resultados de campo apontam que a experiência coletiva de organização e luta contribuiu para esse fenômeno. Ao atribuírem sentido positivo às ações, como vitória, aprendizado e solidariedade, esse sentido se projetou sobre o lugar em si.

Limites e fragilidades. Nem todos os resultados foram positivos ; em uma análise sincera vemos as limitações. Por exemplo, apesar da resiliência aprimorada, a comunidade permanece objetivamente vulnerável a um desastre de grande magnitude — a infraestrutura continua insuficiente e, se eventos extremos se intensificarem, como as previsões da emergência climática, poderá haver situações que superam a capacidade local de resposta. Além disso, persistem conflitos latentes : a convivência com o tráfico, embora controlada, gera medo e episódios de violência que não foram o foco deste estudo, mas impactam o tecido social. Alguns moradores ativos também demonstram sinais de esgotamento físico e emocional — a luta constante cobra seu preço e não há garantia de renovação geracional do mesmo nível de engajamento. Essas fragilidades indicam que a autonomia comunitária, por mais admirável, não substitui a necessidade de intervenções estruturais e políticas públicas de longo prazo.

Deste modo, a pesquisa de campo validou a hipótese de que o habitar em risco no Boulevard da Paz não é passivo ou caótico, mas dotado de inteligibilidade própria. Os moradores desenvolveram modos de vida específicos, nos quais o risco é simultaneamente um desafio concreto a ser administrado e um elemento simbólico que molda identidades e relações. A sociossemiótica provou ser um instrumental profícuo para decodificar essa realidade ao revelar as camadas de sentido subjacentes às ações e discursos cotidianos. No Boulevard da Paz, a produção de sentido torna-se em si mesma um componente de sobrevivência: as narrativas compartilhadas alimentam a esperança e a coesão, os valores cultivados orientam comportamentos proativos e as interações configuradas em torno desses sentidos criam uma rede de proteção social que, até certo ponto, compensa a vulnerabilidade física.

Considerações finais

O Boulevard da Paz não é apenas um espaço geográfico vulnerável ; é, sobretudo, um espaço simbólico carregado de histórias, valores e projetos coletivos. Trata-se de uma equação complexa em que fatores materiais, afetivos e semânticos interagem.

Os moradores, ao interagirem com o ambiente de risco e entre si, mobilizam estruturas de sentido semelhantes às de qualquer narrativa humana de enfrentamento de desafios : há sujeitos, objetos de valor, ajudantes e oponentes, modalidades de querer, saber, poder e dever, e diferentes regimes de interação que se sucedem conforme as circunstâncias. Essa constatação reforça a ideia de que comunidades marginalizadas não estão à margem do sentido — ao contrário, elas elaboram riquíssimas gramáticas de vida, que merecem ser reconhecidas. A sociossemiótica, ao lançar luz sobre essas gramáticas, pode contribuir não só para a teoria semiótica como também para práticas sociais e políticas mais eficazes e humanizadas.

Do ponto de vista teórico, este trabalho mostrou a fecundidade de articular a semiótica estrutural de Greimas com a sociossemiótica de Landowski na análise de fenômenos concretos. Conceitos como modalização, enunciação e narratividade, quando aplicados a relatos de campo, tornaram visíveis os mecanismos pelos quais a comunidade interpreta e age sobre a realidade. Por sua vez, os regimes de interação de Landowski ofereceram um quadro dinâmico para entender as oscilações entre ação deliberada, hábito, empatia e acaso na vida social local. Ao integrar essas perspectivas, construímos uma análise multifacetada : ora focada na estrutura do discurso, como na oposição semântica presença / ausência do Estado, ora atenta aos fluxos interativos e contingentes, como na cooperação emergencial diante do inesperado. Essa complementaridade enriquece a sociossemiótica enquanto método e aponta caminhos para pesquisas futuras em contextos similares que podem ser examinados sob esse duplo prisma para se captar a estrutura do sentido e a pulsação dos acontecimentos.

Alguns pontos merecem destaque final.

1. Políticas de redução de risco. Os achados evidenciam que políticas puramente top-down, baseadas apenas em dados técnicos, tendem a fracassar se não incorporarem a dimensão semiótica — isto é, se não considerarem os significados, sentidos e valores dos moradores. Ao planejar a intervenção em uma área de risco como o Boulevard da Paz, governantes e técnicos devem dialogar com a comunidade, reconhecer seu saber local e envolver suas lideranças. A existência de um tecido social organizado e de uma vontade coletiva de melhorar o lugar é um recurso valioso que as autoridades deveriam ver como aliado, não como empecilho. No lugar de encarar os moradores apenas como populações a serem removidas ou tuteladas, é fundamental reconhecê-los como sujeitos de comunicação e ação, integrando-os nos programas de prevenção.

2. Valorização da comunidade. O estudo apontou uma elevação da autoestima coletiva e uma ressignificação positiva do bairro. Cristalizar isso é muito importante. A presença do Estado, quando se fizer, deve evitar posturas que reacendam estigmas e sim reforçar os aspectos positivos — por exemplo, oferecendo formação e pequenas remunerações a moradores para atuarem como agentes locais de defesa civil, capitaliza-se a experiência deles e ao mesmo tempo legitima-se sua função. Outro caminho é apoiar projetos de melhoria já iniciados pela comunidade para mostrar que permanecer ali pode ser viável e digno. De maneira resumida, políticas públicas que consideram o contexto semiótico tendem a ser mais sustentáveis.

3. Aplicações da análise sociossemiótica. Do ponto de vista acadêmico, esta pesquisa fornece um estudo de caso robusto que pode ser contrastado com outros. Ela sugere que a sociossemiótica dos modos de vida em risco é um campo fértil, no qual conceitos de presença, interação e sentido revelam nuances que abordagens estritamente sociológicas ou geográficas poderiam deixar escapar. Por exemplo, a ideia de que “segurança simbólica” antecipa ou compensa a falta de segurança física pode inspirar novos estudos interdisciplinares entre semió­tica, psicologia comunitária e gestão e comunicação de riscos. Além disso, a metodologia de combinar diário de bordo sensível com análise teórica pode ser replicada em outras investigações qualitativas, contribuindo para métodos de pesquisa engajada e reflexiva nas ciências sociais.

Habitar o Boulevard da Paz mostrou-se, para seus moradores, muito mais do que simplesmente ocupar um espaço perigoso : é morar em um universo de significações que eles próprios constroem e transformam. Esses cidadãos exercem uma espécie de semiótica cotidiana, interpretando sinais do ambiente, narrando suas vidas e modulando suas ações conforme os sentidos que surgem da interação coletiva. Se o risco de desastre é uma realidade incontornável, a forma de encará-lo não é homogeneamente dada ; é uma criação social. Ao trazer tais insights, esperamos não apenas ter contribuído para a compreensão teórica desse caso, mas também ter dado voz, no registro acadêmico, a uma comunidade que elabora diariamente uma lição de resiliência e criatividade do sentido. Como desdobramento natural, futuras pesquisas poderiam acompanhar a evolução do Boulevard da Paz nos próximos anos, verificando se as tendências de empoderamento e organização se mantêm, e explorando em que medida eventuais intervenções externas incorporaram (ou não) o conhecimento aqui levantado. De toda forma, fica a certeza de que, enquanto houver presença — física, afetiva, sensível — dessa coletividade no território, haverá também narrativas de esperança tecendo um sentido que suplanta o risco.

 

Referências

Fernandes, Nilthon. Sociossemiótica dos modos de vida da população em condições de riscos de desastres no Boulevard da Paz, M’Boi Mirim, São Paulo, Tese em Comunicação e Semiótica, P.E.P.G.C.S., PUC-São Paulo, 2022 (https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/24619).

Greimas, Algirdas J., Semiótica e ciências sociais, trad. São Paulo: Cultrix, 1981.

— Sobre o sentido II : ensaios semióticos, trad. São Paulo, Edusp/Nankim, 2014.

Da imperfeição, trad. São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017.

— e Joseph Courtés, Dicionário de semiótica (1979), trad. São Paulo, Contexto, 2ª ed., 2013.

Landowski, Eric, As interações arriscadas, trad. São Paulo, Estação das Letras e das Cores, 2014.

 

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1 Cf. N. Fernandes, Sociossemiótica dos modos de vida da população em condições de riscos de desastres no Boulevard da Paz, M’Boi Mirim, São Paulo, Tese em Comunicação e Semiótica, P.E.P.G.C.S., PUC-São Paulo, 2022.

2 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de semiótica, São Paulo, Contexto, 2ª ed., 2013, pp. 382-383.

3 Cf. A.J. Greimas, Da imperfeição, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017, pp. 23-24.

4 E. Landowski, As interações arriscadas, trad. São Paulo, Estação das Letras e das Cores, 2014, p. 32.

5 N. Fernandes, Sociossemiótica dos modos de vida..., op. cit., p. 71.

6 Cf. E. Landowski, op. cit., p. 42.


Résumé : Cet article analyse la production de sens chez les membres d’une communauté vivant au sud de São Paulo dans une zone à haut risque, constamment exposée à des glissements de terrain. L’étude vise à dégager les facteurs socioculturels qui poussent les habitants à rester sur place et soulève la question du sens qu’ils attribuent à leur vie constamment menacée. Combinant immersion sur le terrain et analyse qualitative des données, l’étude est conduite selon l’approche socio-sémiotique fondée sur les concepts d’A.J. Greimas et d’E. Landowski. Elle conduit à dégager différentes attitudes face au risque, de la résignation à l’engagement collectif, et montre comment, par sa résilience, la communauté construit sa propre identité.


Resumo : Este artigo analisa, por meio de uma abordagem sociossemiótica sustentada nos conceitos de A. J. Greimas e E. Landowski, a produção de sentido de populações que vivem em condições de risco de desastres, tomando como estudo de caso a comunidade do Boulevard da Paz, localizada na região de M’Boi Mirim, zona sul de São Paulo. A permanência consciente de milhares de moradores em uma área caracterizada como de alto risco para deslizamentos de terra levanta questões sobre os fatores socioculturais que os levam a permanecer no local e as formas pelas quais eles atribuem sentido às suas vidas sob constante ameaça. O estudo identifica as interações entre poder público, líderes comunitários, moradores, crime organizado e instituições religiosas e as estratégias de interação (programação, manipulação, ajustamento e acidente) que moldam os modos de vida na comunidade. A metodologia combina uma imersão de campo com a análise dos dados. Os resultados evidenciam que a produção de sentido se origina de duas fontes interconectadas: de um lado, o abandono relativo do Estado; de outro, a presença de uma ordem social local composta por lideranças comunitárias, agentes religiosos e normas impostas pelo crime organizado, que juntos mobilizam recursos e pessoas em prol da redução dos riscos de desastres. Essa dinâmica dá origem a diferentes modos de presença dos sujeitos diante do risco — desde o engajamento coletivo na melhoria do bairro até atitudes de resignação ou fé — revelando como a comunidade constrói narrativas de sobrevivência e projetos de futuro mesmo em condições adversas.


Abstract : This article analyzes, through a sociosemiotic approach grounded in the concepts of A. J. Greimas and E. Landowski, the production of meaning among populations living in disaster risk conditions, using the Boulevard da Paz community, located in the M’Boi Mirim region of southern São Paulo, as a case study. The conscious persistence of thousands of residents in an area characterized as high risk for landslides raises questions about the sociocultural factors that lead them to remain in the location and the ways in which they attribute meaning to their lives under constant threat. The study identifies the interactions between public authorities, community leaders, residents, organized crime, and religious institutions, as well as the interaction strategies (programming, manipulation, adjustment, and accident) that shape the ways of life in the community. The methodology combines field immersion with data analysis. The results show that the production of meaning originates from two interconnected sources: on one hand, the relative abandonment by the State; on the other, the presence of a local social order composed of community leadership, religious agents, and norms imposed by organized crime, which together mobilize resources and people to reduce disaster risks. This dynamic gives rise to different modes of presence among individuals in the face of risk — ranging from collective engagement in neighborhood improvement to attitudes of resignation or faith — revealing how the community constructs narratives of survival and future projects even in adverse conditions.


Mots clefs : modes de vie, régimes interactionnels, risque, socio-sémiotique.


Auteurs cités : Algirdas J. Greimas, Eric Landowski.


Plan :

Introdução

1. Referencial teórico

2. As etapas da análise

3. A vida em suspenso: habitar o risco e (re)significar a permanência

1. Entre a vigilância e a negligência burocrática

2. Uma ecologia de regências sociais

4. Práticas de produção de sentido e resiliência coletiva

5. Resultados da pesquisa de campo

Considerações finais

 

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Recebido em 10/05/2025. / Aceito em 30/05/2025.