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Interações discursivas em vídeos curtos Carlos Alfeld Rodrigues
Publié en ligne le 31 août 2025
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Conforme a definição proposta por E. Landowski, a enunciação é “o ato pelo qual o sujeito faz o sentido ser”1. Nas produções audiovisuais, o enunciador do discurso realiza procedimentos de sincretização de distintas linguagens (verbal, musical, espacial etc.) constituintes do plano de expressão. Em relação à noção de sincretismo enquanto responsável pela construção de sentido no audiovisual, partiremos do conceito de “semióticas sincréticas” formulado por Jean-Marie Floch. Estas semióticas são caracterizadas “pela utilização de várias linguagens na manifestação. Um anúncio publicitário, um desenho animado, um jornal televisivo, uma manifestação cultural ou política são, entre outros, exemplos de discursos sincréticos”2. O autor complementa afirmando que “as semióticas sincréticas constituem seu plano de expressão — e mais precisamente a substância de seu plano de expressão — com os elementos dependentes de várias semióticas heterogêneas”. Se afirma, assim, a necessidade, e a possibilidade, de abordar esses objetos como um “todo de significação”. Por essa razão, nas análises dos procedimentos de sincretização das linguagens que compõem a enunciação audiovisual, não intencionamos individualizar ou separar o sentido que está na enunciação sonora ou na enunciação visual. Ao contrário, pretendemos dar conta da estratégia global subjacente à comunicação sincrética, pois é dela, considerada na sua complexidade, que emergirá, pelo enunciatário, uma totalidade apreensível de sentido. |
1 E. Landowski, A sociedade refletida : ensaios de sociossemiótica, São Paulo, Educ/Pontes, 1992, p. 167. 2 J. -M. Floch, “Semióticas sincréticas”, in A.J. Greimas e J. Courtés, Semiótica. |
1. Objetivo e definições de base O objetivo central é examinar como esses atos constituintes da enunciação sincrética modelam a organização discursiva do audiovisual. Isso vale em variados formatos, como vídeos curtos e filmes publicitários veiculados nas mídias sociais digitais, mas aqui concentraremos nossa atenção unicamente sobre alguns trends difundidos no Instagram. Trend é um formato de vídeo com grande destaque e potencialidade para “viralizar” pelas redes sociais digitais3. |
3 O termo “trend” (“tendência”), refere-se a algo que está em alta na internet em um determinado momento. Há diversas trends como, por exemplo, inserção de locução, efeitos de edição, vídeos de comparação, sequência de cortes, movimentos de câmera, entre outras. |
Tendo em vista esses aspectos, a análise recairá sobre as maneiras pelas quais enunciador e enunciatário interagem. Lembremos aqui a definição dada por Greimas e Courtés dessas duas instâncias discursivas : Denominar-se-á enunciador o destinador implícito da enunciação (ou da “comunicação”), distinguindo-o do narrador (o “eu”, por exemplo) que é um actante obtido pelo procedimento de debreagem e instalado explicitamente no discurso. Paralelamente, o enunciatário corresponderá ao destinatário implícito da enunciação, diferenciando-se, portanto, do narratário (por exemplo : “o leitor compreenderá que...”), reconhecível como tal no interior do enunciado. Assim compreendido, o enunciatário não é apenas destinatário da comunicação, mas também sujeito produtor do discurso, por ser a “leitura” um ato de linguagem (um ato de significar) da mesma maneira que a produção do discurso propriamente dito.4 |
4 A.J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de Semiótica (1979), trad. São Paulo, Contexto, 2013, p. 171. |
Nestas condições, o enunciador não será compreendido como o diretor de cena, o roteirista, o publicitário “criador” do anúncio, o creator em social media ou a diretora de marketing responsável pela aprovação da peça ou ainda a produtora audiovisual, pois essas são as pessoas “reais” de “carne e osso”5, são profissionais (ou empresas) que atuam no mercado do audiovisual. O enunciador, por sua parte, é uma instância discursiva e sua apreensão é resultante da enunciação que “deixa marcas no enunciado e, com elas, pode-se reconstruir o ato enunciativo”6. |
5 J.L. Fiorin, “Semiótica e Comunicação”, Galáxia, 8, 2004, p. 16. 6 Ibid., p. 17. |
Portanto, o enunciador é um actante discursivo pressuposto do enunciado e não um actante projetado dentro do enunciado, pois essa é a posição ocupada pelo narrador. Ora, se o enunciador é o “eu” implícito do enunciado — ou o “ele / ela”, a depender do tipo de debreagem realizada (enunciativa ou enunciva) —, o enunciatário é o “tu” pressuposto do enunciado, com o qual o “eu” implícito do enunciador interage na cena enunciativa. Durante o desenvolvimento das análises, é destas interações demarcadas pelos regimes de presença do enunciador e do enunciatário que explicitaremos os efeitos de sentido gerados por seus atos encenados no audiovisual. Por sua vez, o enunciatário não será tomado como o consumidor da marca ou o usuário que possui o seu perfil particular em determinada mídia social digital e, tampouco, ainda, a pessoa que assiste à televisão ou acessa à internet e é impactada por produções audiovisuais. Isso se dá pelos mesmos motivos, pois essas são posições ocupadas por pessoas “reais” e também de “carne e osso”. O enunciatário é, então, do mesmo modo compreendido como uma instância discursiva pressuposta do ato enunciativo, portanto, um “tu” ou um “eles” — que também vai depender se a debreagem é do tipo enunciativa ou enunciva — e não será confundido com o “tu” projetado no interior do enunciado, pois esse é o narratário a quem o narrador se dirige. Com efeito, ao realizar a análise das produções audiovisuais elencadas neste trabalho é possível reconstruir a imagem complexa, ideal e pressuposta dos responsáveis pela criação da série, vídeo ou publicidade como um todo de sentido (pois é de conhecimento comum que o processo de elaboração de uma produção audiovisual demanda, em geral, uma complexa e hierarquizada equipe composta por diversos profissionais que desempenham variadas funções) e do perfil de público-alvo. Faremos isso por meio da análise das marcas deixadas pela enunciação na cena enunciativa ao reconstruir as instâncias discursivas de enunciador e enunciatário. Passamos agora à análise dos tipos de interação discursiva entre enunciador e enunciatário presentes nos vídeos curtos veiculados nas mídias sociais digitais. |
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2. Os efeitos da narração em 1ª ou em 3ª pessoa Há uma complexa combinação de fatores responsáveis por fazer com que o algoritmo do Instagram direcione, ou melhor, “sugere”7 aos usuários uma publicação no feed ou na “aba buscar” da interface no aplicativo. A partir do momento em que um determinado usuário acessa o Instagram do seu smartphone, o algoritmo da plataforma realiza análises do histórico e dados de navegação, das ações (curtidas, comentários ou compartilhamentos) que este usuário teve com postagens anteriores. Estes dados são cruzados com o seu perfil demográfico, com o engajamento resultante da sua interação com conteúdos anteriores, com a popularidade da publicação, o uso de hashtags no post e com a sua rede de conexões na plataforma, ou seja, os demais perfis que este usuário e os seus seguidores estão adotando. Diante de tantos fatores, é importante, do ponto de vista do creator8 que o Instagram considere que a sua publicação é relevante para a maior quantidade de perfis possíveis para que ela possa chegar de modo sugerido para mais pessoas. Nas mídias sociais digitais como o Instagram, a combinação entre os vídeos curtos e as trends potencializa o alcance e a capacidade de retenção do usuário na publicação. Essa estratégia utilizada pelo enunciador na composição do vídeo combina dois elementos extremamente importantes — a brevidade do formato audiovisual e a adesão aos conteúdos em alta — que contribuem para que a audiência permaneça assistindo, além de aumentar os índices de engajamento de uma determinada postagem. Para exemplificar como isso acontece e explorar os efeitos de sentido produzidos pela interação entre enunciador e enunciatário, começamos por analisar a trend dos “vídeos de nutricionistas” e, por isso, convidamos o leitor a ativar o link seguinte : https://drive.google.com/file/d/17JhyMXHGo3Q5GGSusR7e7NW17xM0oGsx/view?usp=share_link. Esse vídeo dura 17 segundos. Atualmente, o tema sobre “cuidados com a alimentação”, relacionado com o da “prática de atividades físicas”, faz parte de inúmeras publicações de conteúdo no Instagram. Assim, é possível afirmar que os “vídeos de nutricionistas” dando dicas de alimentação e relacionando com os resultados alcançados constituem uma espécie de trend com altos índices de engajamento. O vídeo analisado começa com um plano próximo do nutricionista esportivo que aparece sendo filmado em um supermercado. A captação das cenas foi feita na proporção 9:16 (vertical) em resolução Full HD (1080 x 1920 pixels) que constitui o dimensionamento mais apropriado para o reels do Instagram. As imagens possuem efeitos de aceleração realizados pela edição do vídeo. O áudio também está com o efeito acelerado e deixou vazar o som ambiente do supermercado em que as cenas foram gravadas. A narração é realizada em primeira pessoa. Isso, juntamente com o modo como o nutricionista gesticula, aponta e olha para a câmera, cria efeitos de subjetividade e de proximidade ao que está sendo narrado. Desse modo, o enunciador implica o enunciatário na cena com o objetivo de convencê-lo sobre o que deve comer, beber, as combinações e quantidades dos alimentos para que obtenha resultados estéticos corporais. O enunciador, ciente das preferências do enunciatário, seleciona as bebidas e alimentos aceitáveis do ponto de vista do perfil de público-alvo ideal que possui interesse pelos temas mencionados acima ; entre as suas escolhas a seleção foi composta por refrigerante sem açúcar e água com gás (primeira prescrição), biscoitos de polvilho e de arroz (segunda prescrição), saladas e legumes (terceira prescrição) e whey protein (última prescrição). Utilizando os recursos do audiovisual, o enunciador recorre à estratégia de combinar a prescrição com o resultado esperado de maneira reiterada ao longo do desenvolvimento do vídeo. Após todas as “dicas” do modo como se alimentar que o narrador realiza — figurativizado pelo nutricionista encena —, há o reforço em sua narração com o “o shape vem”, expressão que, dentro do universo do qual o enunciatário faz parte, é entendida como uma gíria entre frequentadores de academias de musculação, referindo-se à forma física que é desejada por esse público. O enunciador utiliza de termos, expressões e promessas de resultados para mais e melhor atrair o enunciatário no ambiente altamente dispersivo das redes sociais digitais. Ao todo são oito cenas necessárias para que o nutricionista apresente as quatro “dicas” e o resultado que será alcançado. Com efeito, o consumo deste tipo de vídeo com as características de aceleração de áudio e vídeo, narração em primeira pessoa com as legendas do que está sendo narrado, interlocução com quem está assistindo em plano próximo, som ambiente, diversos cortes, prescrições sobre o modo de ser e de se alimentar e a reiteração de conteúdo com a promessa de resultados pressupõe um perfil de enunciatário adaptado ao consumo de vídeos curtos e rápidos e que não possui paciência para assistir aos vídeos mais longos, ao menos, nas mídias sociais. |
7 O Instagram utiliza a inscrição “Sugestões para você” quando o usuário recebe uma postagem pelo feed ou visualiza um post na aba buscar. Desse modo, mesmo que o usuário não esteja seguindo o perfil responsável pela postagem ou que esta postagem não tenha sido patrocinada, o próprio Instagram endereça para o usuário conteúdos que considera relevantes ao seu perfil. 8 Termo utilizado para denominar os produtores de conteúdo digital para as mídias sociais. Os principais objetivos dos creators são : obter seguidores, aumentar o engajamento de suas publicações e monetizar as suas postagens de alguma maneira. |
O ambiente das mídias sociais digitais é caracterizado por um excesso de informações e postagens, onde uma grande quantidade de conteúdos é compartilhada a cada instante. Há também a proliferação de interações decorrente dos recursos reativos da plataforma (curtidas, emojis, comentários, visualizações e compartilhamentos) que ampliam o seu alcance. Além disso, existe uma exposição pessoal que também é excessiva, muitas vezes sem considerar as implicações para a privacidade dos participantes. O consumo imediato e o desejo por resultados rápidos característicos deste enunciatário são levados em consideração pelo enunciador ao articular uma série de recursos do plano de expressão em um curto espaço de tempo. Com A.C. de Oliveira, denominamos este regime de interação discursiva sentido conquistado porque ocorre uma forma de “conquista” quando o enunciatário é convencido pelo enunciador por meio do uso das diversas estratégias discursivas analisadas acima9. |
9 Cf. A.C. de Oliveira, “As interações discursivas”, in id. (org.), As interações sensíveis, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2013, p. 247. |
Efeitos de sentido diferentes são construídos na enunciação da segunda trend selecionada para a análise, a trend sobre as “recriações ficcionais nos vídeos de pets”, cujo link é o seguinte : https://drive.google.com/file/d/1lubAcpPRNZGfxnEFpoyN9rhrf9bldX7W/view?usp=share_link (17 segundos). Esta trend obteve bastante popularidade nas suas diversas versões e adaptações em torno da “Gangue do caramelo”10. Aqui, enunciador e enunciatário interagem de modo diferente. Não temos mais a predominância do mecanismo de debreagem enunciativa constituído pelo efeito de projeção do eu-tu, no espaço do aqui e no tempo do agora, como foi o caso da primeira trend. Desta vez, o mecanismo predominante é o de debreagem enunciva que corresponde ao efeito de projeção no enunciado de um ele-eles, no espaço do lá e no tempo do então. |
10 A “gangue dos caramelos” é uma expressão que se refere aos cães vira-latas de pelagem caramelo que ganhou repercussão no Brasil em vídeos curtos nas mídias sociais digitais e em memes na internet. Na maioria dos casos o termo é empregado de maneira bem-humorada em vídeos que destacam a inteligência e o comportamento desses cães em situações engraçadas ou inusitadas. Com a repercussão desses vídeos, as trends sobre as “recriações nos vídeos de pets” foram impulsionadas em diversas versões : vídeos de gatinhos, de cachorros, de pássaros entre outros. |
Este vídeo também é composto por oito cenas que, da mesma maneira que o anterior, constituem um formato compatível com o dimensionamento ideal para o reels do Instagram. Contudo, a organização discursiva traz importantes diferenças responsáveis pela construção dos seus efeitos de sentido. Inicialmente, o narrador não está figurativizado nas cenas, pois temos a utilização da narração em off11 característica da vinheta narrada por Márcio Seixas para as produções distribuídas pela Warner Bros com a versão brasileira realizada pelos estúdios de dublagem Herbert Richards. Esta vinheta e a voz em off deste narrador estão codificadas na memória afetiva dos brasileiros por diversos pontos de contato que o público teve com este tipo de conteúdo ao longo de sua vida. |
11 O trecho da narração em off utilizado nesta segunda trend foi recortado da série de desenhos animados Superamigos baseada na Liga da Justiça, da DC Comics. Em especial, trata-se do episódio 7, Gigantes da destruição, veiculado entre os anos 70 e 80. Cf. https://drive.google.com/file/d/1TVN4LBpq-9vWAOb2ptCcE589VvQ3QlCL/view?usp=share_link. |
Outro elemento característico refere ao regime de presença do sujeito da enunciação. Neste caso, o enunciador não implica o enunciatário na cena, mas o coloca em posição privilegiada para acompanhar as travessuras do gatinho laranja em cenas domésticas. A dimensão sonora, além da narração em off, é composta pela trilha musical instrumental que, também, foi recortada do fragmento retirado da série de desenhos animados. Não há outro efeito de edição de áudio como, por exemplo, o efeito de som ambiente ou de aceleração. A edição do vídeo prioriza a experiência de consumo do enunciatário observador das cenas em que eles, os gigantes da destruição figurativizados pelos gatinhos, no espaço do em algum lugar dos espaços domésticos, se organizam no tempo do então criando um efeito de objetividade com bom humor. Estes foram os recursos disponíveis na plataforma do Instagram utilizados pelo enunciador neste segundo caso para fazer com que o enunciatário decodifique o sentido dos vídeos “engraçadinhos” de gatinhos com pelagem de cor laranja que também estão codificados por serem “arteiros”. Portanto, há uma série de códigos que o enunciador esquematizou para que o enunciatário tenha condições de decodificar e, se possível, divertir-se ao assistir os gatinhos “aprontando em cena”. Este regime de interação discursiva foi teorizado por A.C. de Oliveira como sentido codificado em que o enunciatário “re-opera o sentido”. Destaca-se aqui o papel da figuratividade na acepção stricto sensu, conforme diferencia Landowski ao chamar a atenção para as “formas figurativas” que “têm significação” e constituem objetos de “leitura” que, portanto, passam pelo processo de decodificação12. “O papel atribuído a elas consiste em permitir ao observador ter acesso aos dispositivos mais abstratos organizados pela sintaxe narrativa, graças, justamente, ao deciframento ou a decodificação — a leitura — dessa sua vestimenta discursiva”13. |
12 Por oposição aos elementos “plásticos”, que “fazem sentido” enquanto objetos de uma “apreensão”. Cf. Com Greimas. 13 Ibid. |
3. O simulacro da apreensão sensível, o sentido sentido Além dos dispositivos, das estratégias anteriores e das motivações mercadológicas, o discurso publicitário recorre a diversos outros artifícios para cumprir com os seus objetivos mercadológicos e comunicacionais da marca ou empresa anunciante. De fato, como Landowski esclarece, “a razão de ser da publicidade não é unicamente fazer comprar este ou aquele produto. Antes disso, sua tarefa é criar no público uma disposição afetiva mais difusa, um desejo em estado puro, que condiciona a passagem ao ato, ou seja, à compra”14. |
14 “O triângulo emocional do discurso publicitário”, Comunicação Midiática, 6, 2006, p. 16. |
A nossa abordagem não desconsidera, mas sim reconhece, a importância desta dimensão sensível na criação e veiculação das peças publicitárias audiovisuais nas mídias sociais digitais. Nas análises a seguir, investigamos uma das artimanhas deste tipo, a saber, a exploração de procedimentos sensíveis destinados a promover um modo de apreensão estésica por parte do enunciatário. Diferentemente dos casos anteriores, o filme publicitário da KitchenAid — https://drive.google.com/file/d/1F_q9zYnPh5ANJnKur6nU1x6DIOLh4a1B/view?usp=share_link (6 segundos) —, reconhecida marca de eletrodomésticos e utensílios de cozinha organiza um modo distinto de interação discursiva entre enunciador e enunciatário. Desta vez, o enunciador para concorrer no ambiente altamente dispersivo e excessivo do Instagram, conforme caracterizado anteriormente, utiliza a estratégia mercadológica de patrocinar15 a sua postagem juntamente com a colocação em cena de procedimentos estésicos para fazer com que o enunciatário apreenda sensivelmente as “formas plásticas” presentes no vídeo para mais e melhor capturar a atenção e convencer o enunciatário. |
15 No Instagram, uma postagem “patrocinada” refere-se a um conteúdo pago pela empresa anunciante para alcançar um público mais amplo além de seus seguidores. Essas postagens aparecem no feed dos usuários com a inscrição “Patrocinado” e fazem parte das estratégias de marketing digital, visando aumentar a visibilidade e engajamento do post ou a taxa de conversão em vendas do produto, serviço ou marca anunciado. |
Esta publicidade é composta pela articulação de importantes recursos expressivos do audiovisual arranjados sincreticamente entre as dimensões visual e sonora. Na dimensão visual, temos o plano close-up da jarra do liquidificador, o gerador de caracteres em caixa alta, o plano detalhe em câmera subjetiva mostrando o efeito das lâminas do liquidificador triturando o gelo em slow motion. Diversos desses recursos são empregados simultaneamente. Concomitantemente, na dimensão sonora, a trilha musical instrumental é utilizada associada ao efeito sonoro do motor do liquidificador e da ação das lâminas ao triturar gelo e um líquido azul. A dimensão sonora (trilha musical e efeito sonoro) foi intensificada pela edição do vídeo. O filme termina com a inscrição do logotipo na tela em um fundo preto. O enunciador, ao reunir o plano close-up, o uso da câmera subjetiva e o plano detalhe em câmera lenta juntamente com a intensificação da dimensão sonora faz com o que enunciatário possa sentir os efeitos de potência e a qualidade do produto anunciado que são valorizados pelo enunciatário. A textura, a materialidade e a alta velocidade do gelo sendo triturado tornam-se em objetos de apreensão sensível ao perfil de enunciatário que busca eletrodomésticos premium e utensílios de cozinha de alta performance para realizar as suas receitas caseiras. Para não deixar dúvidas, há ainda o reforço na dimensão verbovisual com a descrição técnica do produto presente no GC e no texto de postagem. O efeito de sentido construído pela utilização do modo de filmar, editar e sonorizar este curto filme publicitário, faz como se o público-alvo do anúncio, figurativizado pelo enunciatário, estivesse próximo e cada vez se aproximasse mais para sentir os efeitos do liquidificador em ação. A câmera lenta subjetiva em close-up e o plano detalhe associados ao efeito sonoro do motor e da trituração do gelo criam o simulacro de que enunciador e enunciatário estão próximos, ou melhor, estão em distância mínima no ato enunciativo. Desse modo, a interação entre eles acontece permeada pela apreensão estésica em que o enunciatário é sensibilizado pelo enunciador. Outro exemplo do simulacro da apreensão sensível na publicidade é o filme da Coca-Cola Zero — https://drive.google.com/file/d/1DVkVMSv4ohRirfZmZvZvZsQIgD_sK4L3/view?usp=share_link (6 segundos) — que também utiliza a estratégia de patrocínio. Neste caso, o efeito entre a câmera lenta e a edição acelerada das cenas constroem a dinâmica do filme. O filme começa com a dimensão visual que é composta por um plano detalhe em slow motion de um filet de peito de frango sendo grelhado na frigideira. Neste momento, a dimensão sonora é constituída pelo efeito sonoro do filet sendo grelhado associado a uma trilha musical instrumental em que ambos estão em alta intensidade. O enunciador faz o uso de uma hipérbole visual, pois o plano detalhe em câmera lenta é uma maneira exageradamente próxima e demarcada para apresentar o objeto filmado e de uma hipérbole sonora, pois o efeito sonoro da ação de grelhar e da trilha musical foram intensificados pelos recursos de edição. Após isso, a estratégia de sincretizar a hipérbole visual e a hipérbole sonora também é utilizada na segunda cena quando temos um plano detalhe da garrafa sendo aberta conjuntamente com o efeito sonoro em alta intensidade. Portanto, assim como no caso do filet de frango, o enunciatário é sensibilizado hiperbolicamente, pela visão e pela audição, de tal modo que o sentido é sentido. Fica somente ao enunciatário por sua vez acessar sua memória gustativa e olfativa para recordar e reconstruir o sabor e o aroma do frango e da Coca-Cola. Logo em seguida, temos a utilização do recurso da narração em off realizada por uma voz feminina com o seguinte enunciado : Até as comidas mais simples tem algo especial por trás. Durante a narração, o enunciador apresenta visualmente, em planos mais abertos, que “as comidas mais simples” são filet de frango e salada. E o “algo especial por trás”, filmado em plano detalhe, é a marca anunciante que primeiramente é encenada sendo mostrada diretamente da garrafa e, na sequência, apresentada em plano detalhe. Em um plano mais aberto, o arranjo da mesa, os utensílios utilizados, as roupas e a construção das personagens também remetem ao sistema de valores da “simplicidade” encenada pela Coca-Cola Zero que remete a uma refeição rotineira que o enunciatário é capaz de reconhecer. Portanto, em um articulado jogo entre as formas plásticas (planos mais fechados em slow motion sonorizadas hiperbolicamente) que são apreendidas sensivelmente e as formas figurativas (planos mais abertos com a dinâmica acelerada pela edição reforçada pela intensidade da trilha musical) que reconhecidamente são decodificadas, o enunciador sensibiliza o enunciatário e o faz-sentir por meio de um simulacro do que o outro está sentindo, no caso, do que os outros encenados no filme sentem, como é estar entre eles, fazer parte de uma refeição simples e experimentar pela recordação gustativa e olfativa os produtos que lhe são ofertados. Assim, o sentido é sentido pela mediação do sentir do outro. Dessa maneira, o enunciador faz o enunciatário provar o sabor “especial” do ser simples que é proposto. A análise destas distintas interações discursivas nos possibilitou compreender a necessidade de novas explorações por parte dos creators e das marcas anunciantes em relação às possibilidades abertas a partir da sistematização dos regimes de interação discursiva entre enunciador e enunciatário. Diante de um cenário digital contemporâneo cada vez mais acelerado e voraz de vídeos curtos, as interações entre os participantes e o consumo estruturam não apenas o comportamento dos usuários, mas as suas relações com os demais, a sua própria maneira de ser e de passar o seu tempo conectado a partir da organização dos regimes de interação entre enunciador e enunciatário tais como apresentados nas mídias sociais. Durante as análises foi possível relacionar os recursos expressivos do audiovisual que o enunciador utiliza para organizar a enunciação e, assim, a sua interação com o enunciatário que passa pelos regimes do sentido conquistado na trend dos vídeos de nutricionistas — que priorizam a intencionalidade do enunciador em conduzir o enunciatário —, do sentido codificado na trend das recriações nos vídeos de pets — em que, principalmente, o enunciatário decodifica o sentido — e pelo regime do sentido sentido por meio da construção simulacral nos filmes publicitários curtos, em que o enunciatário é sensibilizado pelo enunciador para que os objetivos mercadológicos e comunicacionais dos anunciantes sejam atingidos. Neste último caso, a astúcia do enunciador em articular formas plásticas e figurativas não visa apenas a promoção dos produtos anunciados, mas também a colocação do enunciatário em uma experiência sensorial que reforça a identidade, o valor e a presença das marcas nas mídias sociais digitais. O entendimento desses processos é de suma importância para aprofundar a compreensão das dinâmicas enunciativas que estão em jogo no contexto atual e as suas implicações nas relações comerciais, sociais e culturais. |
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Referências Fiorin, Jose Luiz, “Semiótica e Comunicação”, Galáxia, 8, 2004. Greimas, Algirdas J., e Joseph Courtés, Dicionário de Semiótica (1979), trad. São Paulo, Contexto, 2013. — Semiótica. Diccionario razonado de la teoria del language II. Trad. esp., Madrid, Gredos, 1991. Landowski, Eric, A sociedade refletida, São Paulo, EducPontes, 1992. — “O triângulo emocional do discurso publicitário”, Comunicação midiática, 6, 2006. — Com Greimas. Interações semióticas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017. Oliveira, Ana Claudia, “As interações discursivas”, in id. (org.), As interações sensíveis. Ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski, São Paulo, Estação das Letras e Cores e Editora do CPS, 2013. |
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______________ 1 E. Landowski, A sociedade refletida : ensaios de sociossemiótica, São Paulo, Educ/Pontes, 1992, p. 167. 2 J. -M. Floch, “Semióticas sincréticas”, in A.J. Greimas e J. Courtés, Semiótica. Diccionario razonado de la teoria del languaje II, Madrid, Gredos, 1991, pp. 233-234. 3 O termo “trend” (“tendência”), refere-se a algo que está em alta na internet em um determinado momento. Há diversas trends como, por exemplo, inserção de locução, efeitos de edição, vídeos de comparação, sequência de cortes, movimentos de câmera, entre outras. 4 A.J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de Semiótica (1979), trad. São Paulo, Contexto, 2013, p. 171. 5 J.L. Fiorin, “Semiótica e Comunicação”, Galáxia, 8, 2004, p. 16. 6 Ibid., p. 17. 7 O Instagram utiliza a inscrição “Sugestões para você” quando o usuário recebe uma postagem pelo feed ou visualiza um post na aba buscar. Desse modo, mesmo que o usuário não esteja seguindo o perfil responsável pela postagem ou que esta postagem não tenha sido patrocinada, o próprio Instagram endereça para o usuário conteúdos que considera relevantes ao seu perfil. 8 Termo utilizado para denominar os produtores de conteúdo digital para as mídias sociais. Os principais objetivos dos creators são : obter seguidores, aumentar o engajamento de suas publicações e monetizar as suas postagens de alguma maneira. 9 Cf. A.C. de Oliveira, “As interações discursivas”, in id. (org.), As interações sensíveis, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2013, p. 247. 10 A “gangue dos caramelos” é uma expressão que se refere aos cães vira-latas de pelagem caramelo que ganhou repercussão no Brasil em vídeos curtos nas mídias sociais digitais e em memes na internet. Na maioria dos casos o termo é empregado de maneira bem-humorada em vídeos que destacam a inteligência e o comportamento desses cães em situações engraçadas ou inusitadas. Com a repercussão desses vídeos, as trends sobre as “recriações nos vídeos de pets” foram impulsionadas em diversas versões : vídeos de gatinhos, de cachorros, de pássaros entre outros. 11 O trecho da narração em off utilizado nesta segunda trend foi recortado da série de desenhos animados Superamigos baseada na Liga da Justiça, da DC Comics. Em especial, trata-se do episódio 7, Gigantes da destruição, veiculado entre os anos 70 e 80. Cf. https://drive.google.com/file/d/1TVN4LBpq-9vWAOb2ptCcE589VvQ3QlCL/view?usp=share_link. 12 Por oposição aos elementos “plásticos”, que “fazem sentido” enquanto objetos de uma “apreensão”. Cf. Com Greimas. Interações semióticas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017, p. 97. 13 Ibid. 14 “O triângulo emocional do discurso publicitário”, Comunicação Midiática, 6, 2006, p. 16. 15 No Instagram, uma postagem “patrocinada” refere-se a um conteúdo pago pela empresa anunciante para alcançar um público mais amplo além de seus seguidores. Essas postagens aparecem no feed dos usuários com a inscrição “Patrocinado” e fazem parte das estratégias de marketing digital, visando aumentar a visibilidade e engajamento do post ou a taxa de conversão em vendas do produto, serviço ou marca anunciado. Résumé : Cet article analyse les interactions discursives dans de courtes vidéos sur Instagram, mettant en lumière la manière dont s’organise l’énonciation audiovisuelle et comment les relations entre énonciateur et énoncé agissent dans la construction du sens. L’analyse porte sur trois régimes d’interaction discursive précédemment relevés par A.C. de Oliveira : le sens « conquis », qui implique l’énonciataire dans des stratégies visant à le convaincre, le sens « codé », qui dépend du décodage culturel et le sens « ressenti », qui utilise, moyennant la construction d’un simulacre, l’appréhension sensible pour promouvoir des expériences de consommation au-delà de l’acte d’achat. En examinant ces éléments, l’article problématise la complexité du phénomène lié à la consommation de vidéos courtes et certaines de leurs implications sociales et culturelles. Resumo : Este artigo analisa as interações discursivas em vídeos curtos no Instagram com destaque para o modo de organização da enunciação audiovisual : como as relações entre enunciador e enunciatário atuam na construção de sentido ? A análise destaca três principais regimes de interação discursiva precedentemente destacados por A.C. de Oliveira : o “sentido conquistado”, que implica o enunciatário por meio de estratégias que visam o seu convencimento ; o “sentido codificado”, que depende da decodificação cultural ; e o “sentido sentido”, que utiliza — ainda que seja por meio da construção de simulacros — a apreensão sensível para promover experiências de consumo aquém e além do ato de comprar. Ao examinar esses elementos, o artigo problematiza a complexidade do fenômeno referente ao consumo dos vídeos curtos e algumas de suas implicações sociais e culturais. Abstract : This article analyses discursive interactions in short videos on Instagram, highlighting the way audiovisual enunciation is organised and how the relationships between enunciator and enunciatee act in the construction of meaning. The analysis focusses on three regimes of discursive interaction previously distinguished by A.C. de Oliveira : the “conquered meaning”, which involves the enunciatee through strategies aimed at convincing him/her; the “coded meaning”, which depends on cultural decoding ; and the “felt sense”, which uses (through the construction of simulacra) sensitive apprehension to promote consumption experiences beyond the act of buying. By examining these elements, the article problematises the complexity of the phenomenon relating to the consumption of short videos and some of their social and cultural implications. Mots clefs : énonciation audiovisuelle, interactions discursives, sens (codé / conquis / ressenti). Auteurs cités : José Luiz Fiorin, Algirdas J. Greimas, Jean-Marie Floch, Eric Landowski, Ana Claudia de Oliveira. Plan : 1. Objetivo e definições de base 2. Os efeitos da narração em 1ª ou em 3ª pessoa |
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Recebido em 17/11/2024. / Aceito em 30/05/2025. |