Bonnes feuilles

Políticas do encanto.
Extrema direita e fantasias de conspiração

Paolo Demuru
São Paulo, Elefante, 2024, 142 p.

 

Publié en ligne le 31 décembre 2024
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2024n8.70102
Version PDF

 

 

Prelúdio*
Política (é) semiótica

Entre tantas outras coisas, este é um livro de semiótica1. Ou melhor, que usa a semiótica como lente para entender como age e se articula o discurso político das primeiras décadas do século XXI. Seu escopo é duplo : por um lado, visa compreender as estratégias de comunicação dos líderes e dos movimentos de extrema direita do nosso tempo; por outro, serve-se da semiótica para imaginar formas de enfrentá-las.

As páginas que seguem fogem dos limites da escrita acadêmica, normalmente seguidos em artigos e congressos. Não há, nelas, qualquer definição protocolar de conceitos semióticos, nenhuma revisão filológica da obra dos estudiosos do campo, nenhuma explicação formal de seus modelos. O leitor alheio ao léxico específico da semiótica pode ficar tranquilo : o que ele tem diante de seus olhos é um texto redigido para um público amplo, não necessariamente especialista no assunto. No entanto, este livro só existe porque há, por trás dele, um pensamento semiótico. Embora utilize a semiótica de forma muitas vezes velada, tudo nele é fruto do olhar semiótico, pois, antes de ser uma disciplina com um arcabouço de noções, princípios e fundamentos científicos, a semiótica é uma maneira de pensar, um modo analiticamente poderoso e socialmente transformador de observar e vivenciar o mundo.

* Extrato : pp. 21-23.


1 A semiótica não é uma, as semióticas são muitas. Entre elas há afinidades e divergências que não cabe aqui explicar. A semiótica que eu pratico parte das bases teóricas, epistemológicas e metodológicas da semiótica da escola de Paris, fundada por Algirdas Julien Greimas, e dialoga com a semiótica interpretativa de Umberto Eco e a semiótica da cultura de Jurij M. Lotman, assim como com muitas outras disciplinas e autores do campo das ciências humanas e sociais preocupados com o problema da construção social do sentido. Este livro é o resultado dessa trama de relações intelectuais.

Enquanto disciplina que estuda a linguagem e a comunicação humana, o objeto da semiótica é o sentido. Sua tarefa é jogar luz sobre os mecanismos através dos quais todos nós produzimos e interpretamos sentidos. Para isso, ela desenvolveu uma teoria e um método que permitem compreender como o sentido — seja aquele de uma mensagem de WhatsApp, de uma receita de cozinha, de um discurso presidencial, de uma teoria da conspiração, de um filme, de um quadro, de uma música, de uma peça de teatro, de uma dança, de uma missa, de uma manifestação política e muitas outras coisas — é construído e apreendido pelas pessoas. “Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido”, dizia o filósofo Maurice Merleau-Ponty2. Pode-se ir além : porque estamos no mundo, “estamos condenados a construir o sentido”, como diz o semioticista Eric Landowski3.

2 Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 18.


3 As interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014, p. 15.

Tanto a produção de sentido, que se dá, por exemplo, quando escrevemos um post no Instagram, quanto a interpretação de sentidos produzidos por outros são atos de criação de sentido. A intepretação de sentido pode ser, inclusive, mais criativa que a sua produção. É o que acontece com as teorias da conspiração, cuja leitura do mundo baseia-se em imaginações dignas de roteiristas hollywoodianos. Todo sentido é produzido, emerge e se torna perceptível a partir de uma ou mais linguagens que o manifestam : a linguagem verbal, sonora, visual, audiovisual, teatral, pictórica, fotográfica, urbanística, arquitetônica, a linguagem do corpo, com suas pulsões, emoções e afetos4. Aliás, a dimensão sensível e passional das linguagens e dos processos de comunicação é decisiva para entendermos os populismos conspiratórios de extrema direita do século XXI5.

O sentido nunca é dado. O sentido é sempre o resultado de uma construção histórica, cultural, social, política, econômica. O sentido nunca é fixo. O sentido é dinâmico: muda, evolve, vai para frente, volta atrás. O sentido é um campo de disputa. Toda luta sobre o sentido é uma luta política. Toda luta política é uma luta sobre o sentido. O sentido surge da relação e da interação entre as coisas e as pessoas deste mundo. Antes da relação e da interação entre as coisas e as pessoas deste mundo, não há sentido.

4 A.C. de Oliveira e L. Teixeira (org.), Linguagens na comunicação : desenvolvimentos de semiótica sincrética, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2009.


5 Para uma abordagem semiótica do populismo, ver E. Landowski, “Critica semiótica do populismo”, Galáxia, 44, 2020 ; S.M. Barreneche, The Social Semiotics of Populism, London, Bloomsbury, 2023 ; F. Sedda e P. Demuru, “Da cosa si riconosce il populismo”, Actes Sémiotiques, 121, 2018.

A semiótica estuda como certos sentidos tornam-se verdadeiros, ainda que sejam falsos. Para a semiótica, a verdade é um problema de eficácia discursiva6. A pergunta que ela se coloca não é “por que essa notícia é falsa ?”, mas “de que modo essa notícia, embora falsa, consegue se passar por verdadeira ?”. Nesse sentido, conforme uma célebre definição de Umberto Eco7, a semiótica é aquela disciplina que estuda tudo aquilo que pode ser utilizado para mentir.

Para a semiótica, o sentido é uma questão narrativa. Todo texto, mesmo aquele aparentemente mais técnico e objetivo, como uma bula de remédio, carrega uma história. Enquanto teoria do sentido, a semiótica aborda as formas de construir e contar histórias. Porque somos humanos, somos também, e quiçá sobretudo, as histórias que contamos. Tudo que é humano tem uma história. Este livro tem também a sua.

6 A.J. Greimas, Sobre o sentido, v. II, São Paulo, Edusp / Nanquim, 2014.


7 U. Eco, Tratado geral de semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1980.

Prelude**
Politics is a Matter of Semiotics,
and Semiotics is a Matter of Politics

Among many other things, this book is about semiotics — or rather, it employs semiotics as a lens to explore how the political discourse of the early 21st century operates and is structured. Its scope is twofold : first, it seeks to understand the communication strategies employed by contemporary far-right leaders and movements ; second, it harnesses semiotics to envision strategies for countering these forces.

The following pages transcend the traditional boundaries of academic writing typically found in papers and conference presentations. Readers will not find formal definitions of semiotic concepts, philological reviews of foundational works, or detailed explanations of theoretical models. Those unfamiliar with the specialized lexicon of semiotics need not worry : this text is designed for a broad audience, not necessarily well-versed in the field. Nevertheless, the book’s foundation is firmly rooted in semiotic thought. Though semiotics is sometimes employed implicitly, the entire work reflects a semiotic perspective. Before being a discipline with a framework of concepts, principles, and methodologies, semiotics is fundamentally a way of thinking that provides transformative insights into the world.

** Extract : pp. 21-23.

As a discipline centered on language and human communication, the primary object of semiotics is meaning. Its mission is to uncover the mechanisms by which we produce and interpret meaning. To achieve this, semiotics has developed theories and methods that enable an understanding of how meaning—whether found in a WhatsApp message, a recipe, a political speech, a conspiracy theory, a film, a painting, a piece of music, a theatrical performance, a dance, a religious service, or a political protest—is constructed and perceived. As the philosopher Maurice Merleau-Ponty stated, “Because we are in the world, we are condemned to meaning”8. Semiotician Eric Landowski builds on this idea, asserting that “because we are in the world, we are condemned to construct meaning”9.

8 Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 18.


9 As interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014, p. 15.

Both the production of meaning, such as composing an Instagram post, and the interpretation of others’ meanings are acts of creation. In some cases, interpretation can be even more imaginative than production. This is exemplified by conspiracy theories, which interpret reality through narratives as intricate and fantastical as a Hollywood screenplay.

Meaning always emerges from one or more languages that articulate it—whether verbal, visual, audiovisual, theatrical, pictorial, photographic, architectural, urban, or bodily, encompassing drives, emotions, and affections10. Indeed, the emotional and affective dimensions of language and communication are critical for understanding the conspiratorial populism of the 21st-century far-right.

10 A.C. de Oliveira e L. Teixeira (org.), Linguagens na comunicação : desenvolvimentos de semiótica sincrética, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2009.

Meaning is never inherent or static. It is always the product of historical, cultural, social, political, and economic processes. Dynamic and contested, meaning evolves, shifts, and is subject to disputes. Every struggle over meaning is inherently political, and every political struggle is a contest over meaning. Meaning arises from relationships and interactions between people and things ; without these connections, meaning does not exist.

Semiotics investigates how certain meanings are constructed as “truths,” even when they are demonstrably false. For semioticians, truth is a matter of discursive efficacy11. The pertinent question is not, “Why is this news false ?” but rather, “How does this piece of news, although false, succeeds in presenting itself as true ?” In this sense, as Umberto Eco observed, semiotics studies everything that can be used to lie12.

11 A.J. Greimas, Sobre o sentido, v. II, São Paulo, Edusp / Nanquim, 2014.


12 U. Eco, Tratado geral de semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1980.

Semiotics also reveals that meaning is fundamentally narrative. Every text—even the most ostensibly technical and objective, such as a medication leaflet—carries a story. As a theory of meaning, semiotics examines how stories are constructed and communicated. To be human is to tell stories, and our narratives shape who we are. This book, like all human endeavors, has its own story to tell.

 

______________


Indice

 

prelúdio

Distrarre. Alternative al senso

entre realidade e fantasia      9

o populismo conspiratório      15

política (é) semiótica      19

 

primeiro ato — da magia do extremismo

encantar      23

transe      41

ódio      52

 

interlúdio — contra o suprematismo da razão      64

 

segundo ato — quebrar o feitiço

sensibilizar      73

inventar      87

reencantar-se      105

 

referências      133

 


* On trouvera une bibliographie, exhaustive pour la période s’étendant de 1959 à 2021 (pas moins de 687 items !), dans Semiotika, 16, 2021, pp. 389-483.

** Extract : pp. 21-23.

1 A semiótica não é uma, as semióticas são muitas. Entre elas há afinidades e divergências que não cabe aqui explicar. A semiótica que eu pratico parte das bases teóricas, epistemológicas e metodológicas da semiótica da escola de Paris, fundada por Algirdas Julien Greimas, e dialoga com a semiótica interpretativa de Umberto Eco e a semiótica da cultura de Jurij M. Lotman, assim como com muitas outras disciplinas e autores do campo das ciências humanas e sociais preocupados com o problema da construção social do sentido. Este livro é o resultado dessa trama de relações intelectuais.

2 Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 18.

3 As interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014, p. 15.

4 A.C. de Oliveira e L. Teixeira (org.), Linguagens na comunicação : desenvolvimentos de semiótica sincrética, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2009.

5 Para uma abordagem semiótica do populismo, ver E. Landowski, “Critica semiótica do populismo”, Galáxia, 44, 2020 ; S.M. Barreneche, The Social Semiotics of Populism, London, Bloomsbury, 2023 ; F. Sedda e P. Demuru, “Da cosa si riconosce il populismo”, Actes Sémiotiques, 121, 2018.

6 A.J. Greimas, Sobre o sentido, v. II, São Paulo, Edusp / Nanquim, 2014.

7 U. Eco, Tratado geral de semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1980.

8 Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 18.

9 As interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014, p. 15.

10 A.C. de Oliveira e L. Teixeira (org.), Linguagens na comunicação : desenvolvimentos de semiótica sincrética, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2009.

11 A.J. Greimas, Sobre o sentido, v. II, São Paulo, Edusp / Nanquim, 2014.

12 U. Eco, Tratado geral de semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1980.

 

______________


Pour citer ce document, choisir le format de citation : APA / ABNT Vancouver

 

Recebido em 24/06/2024. / Aceito em 10/10/2024.