Débat : Actualité sémiotique de l’actualité ?

O espelho de Narciso : consumo da
informação no mundo digital

João Ciaco
São Paulo – ESPM
Centro de Pesquisas Sociossemióticas

 

Publié en ligne le 31 décembre 2024
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2024n8.70090
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É que Narciso acha feio o que não é espelho.
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho.
Caetano Veloso

Introdução

Não há como negar que o advento das tecnologias digitais promove uma democratização do acesso e do consumo da informação em uma escala sem precedentes. Essas tecnologias influenciam diretamente a forma de nos informarmos, interagirmos e participarmos do espaço público. Faz tempo que James Gleick já nos mostrara que “quando novas tecnologias de informação alteram a paisagem existente, elas trazem perturbações : (...) o equilíbrio entre criadores e consumidores é desfeito”1. De fato, antes da era digital, o acesso à informação era majoritariamente controlado por um número limitado de veículos tradicionais (jornal, revista, rádio, televisão), responsáveis por definir o que era notícia e quais pautas e assuntos mereciam maior destaque. Ao público — leitor, ouvinte ou expectador — cabia um papel receptivo, consumindo a informação sem grande poder de influência direta na agenda midiática.

1 J. Gleick, A informação : uma história, uma teoria, uma enxurrada, São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 421.

Com o advento das tecnologias digitais, não apenas o número de fontes de notícia cresce exponencialmente, como também qualquer indivíduo com acesso à internet passa a ter o poder de se tornar um criador e disseminador de conteúdos por meio dos blogs, dos sites, dos canais de vídeos, podcasts, canais de comunicação direta e das mídias sociais. A informação passa a ser amplamente disponível e, na maioria das vezes, de forma gratuita.

No entanto, com a democratização do acesso à informação, a digitalização promove um cenário ambivalente. Se, por um lado, abre-se a possibilidade de interação direta com o público, o acesso a fontes e dados em tempo real e a criação de formatos inovadores de storytelling, por outro há uma perda do controle sobre a narrativa jornalística pela proliferação de fontes alternativas e pelo público atuando como criador de conteúdo, um movimento em direção à desinformação e às fake news2, além de uma crise no modelo de negócios da grande mídia.

2 Cf. L. Santaella, A pós-verdade é verdadeira ou falsa ?, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2018.

Além disso, esta nova dinâmica da informação confere ao público leitor, ouvinte ou expectador um estatuto diferente : de receptor passivo da notícia, ele passa a sujeito participante na criação e disseminação das informações. As redes sociais, em particular, tornam-se espaços onde as notícias são curadas, comentadas, compartilhadas e contestadas, em tempo real. Assim, o novo sujeito da informação passa a interagir diretamente com as notícias por meio de comentários, likes, reações e compartilhamentos, passa também a contribuir com informações por meio de narrativas alternativas, além de influenciar a agenda midiática a cobrir certos temas e assuntos por meio de campanhas digitais, hashtags ou boicotes.

Podemos inicialmente pensar, mais semioticamente, que de sujeitos manipulados ou pelo menos manipuláveis pelas mídias, no consumo das notícias — quando não os entendermos apenas como elementos programados para aderirem às linhas editoriais dos produtores de conteúdos jornalísticos —, os sujeitos agora assumem a competência modal de manipuladores da própria notícia, criando, recriando e transmitindo conteúdos que reorganizam as informações e os valores que sustentam as próprias editorias dos grandes produtores de notícias. Mas precisamos — e não apenas semioticamente — ir além dessa observação imediata da organização do acesso e consumo da informação na dinâmica contemporânea.

1. As práticas do consumo das notícias

Sabemos que o consumo das notícias e o manter-se informado — “seguir a atualidade” —são atividades que, ao longo da história, têm sido moldadas por práticas sociais e hábitos que refletem tanto as dinâmicas do contexto tecnológico quanto os padrões culturais e cotidianos das sociedades. Antes da internet, as formas de acesso e consumo das informações estavam fortemente vinculadas a práticas sociais que envolviam temporalidade, espacialidade e mesmo as interações cotidianas. O horário “nobre” do jornal televisivo noturno, por exemplo, se estruturava no espaço físico doméstico : a família se reunia em frente à TV — ou jantava enquanto assistia às notícias — e essa rotina delimitava o tempo do encerrar o dia. O mesmo acontecia com a leitura matinal do jornal impresso, prática associada ao café da manhã e que operava como uma introdução ao dia novo que começava.

 

Como Greimas já nos mostrara, as práticas sociais — ou semióticas — apresentam-se como sequências significantes de comportamentos somáticos organizados, cujas realizações vão dos simples estereótipos sociais até as programações de forma algorítmica, que podem ser analisadas enquanto programas narrativos3. Assim, podíamos entender que o jornal impresso ou o noticiário televisivo eram programas narrativos massivos de comunicação pelos quais o mesmo conteúdo era consumido por milhões de pessoas ao mesmo tempo. Desse consumo sincrônico resultava um efeito de construção coletiva do espaço público e privado.

3 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de Semiótica, São Paulo, Cultrix, s/d, verbete “Práticas semióticas”, p. 344.

Com o advento da internet e a difusão das redes sociais, a temporalidade e a espacialidade que antes organizavam as práticas sociais do consumo de mídia foram substituídas por uma lógica de acesso contínuo, estando as informações disponíveis a qualquer hora e em qualquer lugar, gerando uma nova configuração no modo de manter-se atualizado, muito mais fragmentada e personalizada. Desta forma, se antes o consumo de notícias se dava por um programa coletivo, regulado pelo tempo social e marcado pela sincronicidade, hoje ele se torna um programa narrativo em grande medida individual, no qual cada um tem autonomia para escolher quando, como e onde se atualizar. Esta transição estabelece um deslocamento de posição daquele que quer se informar, de um lugar organizado e programado para receber a notícia, para a direção de um sujeito que desempenha a competência modal de curador da sua própria experiência informacional.

Para melhor apreender as dinâmicas atuais do mundo da informação e da notícia, talvez seja preciso apontar, ademais, que o receptor passivo das notícias da mídia dos tempos pré-internet era sobretudo engajado por uma motivação do tipo que Landowski qualifica de “consensual” — aquela que leva à realização ou ao acompanhamento de programas de comportamento socialmente regulados4 —, ao passo que os que buscam a informação pelas dinâmicas do mundo digital parecem se organizar muito mais por uma motivação de ordem “decisional” ou “crítica”, ou seja o tipo de motivação que leva os sujeitos a redefinirem por si mesmos o sentido das coisas ao seu redor enquanto universo significante5. Mas essa primeira visão requer muitos matizes. Precisamos avançar para melhor compreender os regimes de interação e de sentido que intervêm — até mesmo se misturam — no mundo contemporâneo da informação.

4 Cf. “Duas formas de motivação”, Interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014, pp. 41-45.


5 Cf. E. Landowski, “A política do gosto”, in E. Landowski e J.L. Fiorin (orgs.), O gosto da gente, o gosto das coisas, São Paulo, EDUC, 1997, pp. 128-129.

2. As formas da atualidade

Quais são os desafios mais significativos que a grande mídia, antigamente hegemônica no papel de “informante da atualidade”, deve enfrentar com a diversificação das fontes de informação e o surgimento de novas tecnologias, em especial das redes sociais e dos agregadores de notícias ? A fragmentação do público e a concorrência com fontes alternativas — muitas vezes amadoras e sem critérios editoriais definidos — geram uma crise no modelo tradicional dos negócios do jornalismo. Como sabemos, hoje as pessoas abandonam o jornalismo como fonte primária de informação em um cenário no qual alguns influenciadores digitais, youtubers e TikTokers têm mais alcance e audiência que os jornais e canais de TV.

Neste novo cenário, o papel dessas mídias — o jornal, a televisão, a revista, o rádio, dentre outros — como mediadoras da realidade é cada vez mais desafiado por outros atores, incluindo aqueles que produzem e compartilham informações nas redes sociais. Como nos aponta Landowski no seu texto nesta edição das Acta Semiotica, podemos diferenciar a informação apreensível em um presente vivido na rotina e na cotidianidade dos sujeitos e outra informação advinda de outro tempo que acontece longe, distante, cuja apreensão se dá apenas pelos meios de comunicação6. As notícias e os conteúdos recebidos, produzidos e compartilhados pelos sujeitos nas suas interações com devices tecnológicos — o celular, o computador, o tablet, o smart watch —, prática que se insere nas atividades diárias, estariam, assim, mais próximas da primeira instância da vida cotidiana, enquanto as notícias recebidas pela grande mídia mais relacionadas às informações da atualidade.

6 E. Landowski, “Suivre l’actualité — pourquoi ?
Sens et insignifiance d’une pratique”,
Acta Semiotica, IV, 8, 2024.

Landowski ainda observa que enquanto se experimenta o presente vivido do cotidiano, apenas se recebem as informações e a atualidade, já que elas não são, por si só, um dado da experiência e não podem ser apreensíveis de imediato, já que são construídas e difundidas principalmente pelo discurso dos meios de comunicação. Embora o que seja considerado atualidade só possa ser acessível mediante um deslocamento espaço-temporal que leve o sujeito a um lugar e a um então que só se tornam conhecidos por meio das mídias, as novas práticas do mundo digital, além do fato que tornam essa atualidade acessível à tela do telefone celular, por exemplo, permitem que esse novo sujeito, dotado da competência modal de fazer saber à sua rede de relacionamento a notícia mostrada, também a complemente, a modifique e a atualize, no momento mesmo que essa atualidade é apreendida.

Será que então teríamos uma atualidade apreensível na prática cotidiana, nas interações entre as pessoas e suas máquinas, aquelas disponibilizadas, compartilhadas e complementadas nas telas dos celulares e nos toques dos dedos, e outra construída para ser integralmente recebida a partir das mídias jornalísticas ? Se temos duas práticas sociais — aquela do vivenciar e operar a informação no fazer cotidiano e a outra de conhecer a atualidade como representação alternativa do presente, construída e difundida pelos meios de comunicação —, é necessário compreender qual o sentido que se dá para o ato de “estar informado” em cada uma dessas práticas, especialmente considerando que a primeira cresce de modo exponencial no mundo digital.

3. A curadoria editorial nas práticas midiáticas

O processo de produção e circulação de conteúdo realizado pelos meios de comunicação é bastante conhecido e as práticas de consumo e apreensão da notícia e das informações são muito discutidas e amplamente estudadas. A mídia, enquanto espaço de produção e circulação de informações, desempenha um papel central na formação da opinião pública e na construção de discursos que organizam o tecido social. Como tão bem sabemos, a organização da mídia não é um processo neutro ; ela está imbuída de valores e objetivos que orientam a produção e a priorização do conteúdo noticioso.

A linha editorial de um veículo de comunicação é a manifestação explícita ou implícita desse conjunto de valores, crenças e princípios que enquadram a produção e a hierarquização das notícias. Esse enquadramento é resultado de uma série de vontades : quais fatos serão cobertos, quais vozes serão ouvidas, quais ângulos serão privilegiados e quais serão omitidos e esquecidos.

Com a crescente complexidade das sociedades contemporâneas, também se observa que a mídia se especializou em uma série de nichos temáticos. A proliferação de veículos especializados — voltados para áreas como economia, política, esportes, cultura ou ciência — oferece ao público a possibilidade de consumir notícias que correspondam aos seus interesses particulares. Essa especialização possibilita que determinados segmentos do público encontrem suas próprias fontes de informação, adaptadas às suas necessidades e expectativas. Essa especialização promove uma pluralidade de vozes no cenário midiático, ampliando o debate público sobre temas que, em outras épocas, podiam ser relegados ao segundo plano editorial.

As linhas editoriais também são responsáveis pela maneira como diferentes grupos e temas são representados no espaço midiático. A política da representação envolve questões éticas de como as minorias raciais, étnicas, de gênero ou sociais são retratadas pela imprensa. Uma linha editorial que privilegia determinadas representações, em detrimento de outras, reforça certos estereótipos e invisibiliza aspectos cruciais da realidade social.

Assim, quando se escolhe este ou aquele jornal para se receber diariamente, assistir ao telejornal nesta ou naquela emissora de televisão, no fundo, se opta por uma curadoria editorial que reflita, mesmo que não racionalmente, a visão de mundo sobre como esta representação do presente está sendo construída e difundida. Nesta perspectiva, o “estar informado” através dos meios de comunicação é fruto de uma escolha, voluntária ou não, de como o presente vai sendo representado, construído e distribuído até nós.

4. A curadoria algorítmica

Mas a web que navegamos também nos navega. Redes sociais como o Facebook e o Instagram sistematizam nossa navegação, nossas preferências, nossos tempos de login e outras métricas para nos entregar anúncios. O Google rastreia nossas pesquisas e personaliza o que obtemos como resposta. A Amazon construiu seu império pela combinação inteligente do armazenamento massivo de dados comportamentais, análise de correlação de compras e uso de marketing preditivo para construir um sistema que antecipa as necessidades do consumidor e maximiza as oportunidades de vendas. A Netflix aprende com os dados de uso de cada assinante para refinar continuamente suas sugestões, oferecendo experiência personalizada que maximize o tempo de permanência na plataforma.

O ato de “se informar” na era digital é, nesta configuração, paradoxal. Se, por um lado, a web nos oferece uma quantidade quase ilimitada de informações disponíveis a qualquer momento, por outro, aqueles que buscam as notícias enfrentam o grande desafio de distinguir o que é relevante, confiável e verdadeiro. Adicionalmente, o formato das notícias também se transformou. Ao invés de artigos completos e análises críticas, passa-se a acessar conteúdos mais curtos e rápidos, como os posts, tweets e vídeos de pequena duração. A atenção fragmentada e o consumo de notícias por meio de resumos ou manchetes podem prejudicar um entendimento mais profundo da atualidade.

 

O ativista da internet Eli Pariser nos relembra ainda outra questão7. Ele argumenta que, conforme os algoritmos personalizam o conteúdo, os usuários são expostos apenas àquilo que os agrada ou que reforça suas opiniões pré-existentes, limitando sua visão de mundo e, potencialmente, exacerbando polarizações sociais e políticas. Como sabemos, os algoritmos invisíveis de filtragem de conteúdo nos colocam em contato apenas com o que queremos ver e não necessariamente com o que deveríamos ver. Esse fenômeno foi denominado, por Pariser, de filter bubbles. Essas são o resultado direto da personalização algorítmica. Ao procurar otimizar a experiência do usuário com base nos dados do seu próprio comportamento digital, o sistema prioriza conteúdos que tenham chances maiores de agradar o receptor. De uma maneira bastante simplista, podemos entender os algoritmos como um conjunto de instruções matemáticas, operacionais, um conjunto de fazeres e regras para se atingir um determinado resultado em um dado tempo.

O problema das filter bubbles, que operam uma curadoria algorítmica sobre o que pode ser apreendido pelo sujeito em busca de informação e notícias, é que ela começa a eliminar perspectivas que não se alinham diretamente com os padrões pré-existentes de comportamento desse sujeito, resultando em uma exposição limitada a ideias novas ou contraditórias. Isso limita a pluralidade de informações e opiniões, promovendo uma espécie de “isolamento ideológico”. As pessoas acabam imersas em um mundo espelhado, onde encontram apenas aquilo que já desejam ou estão predispostas a aceitar.

Os algoritmos não seguem uma linha editorial determinada, mas sim critérios de personalização e maximização do tempo de uso. A seleção de notícias, artigos e postagens que aparecem no feed de um usuário nas diversas plataformas das suas redes sociais é orientada pela curadoria algorítmica, que se baseia exclusivamente nas suas interações anteriores, nos seus interesses e nos seus comportamentos online. Enquanto a curadoria editorial é guiada por critérios editoriais definidos, cujo objetivo é fornecer informações relevantes e contextualizadas, o objetivo central da curadoria algorítmica é aumentar o tempo de engajamento do usuário nas plataformas, fornecendo conteúdo personalizado que o mantenha sempre envolvido e conectado. Não há, assim, necessariamente, uma preocupação com a veracidade ou relevância social da informação, mas tão somente com a sua pertinência individual.

5. O espelho de Narciso e a ilusão do consenso

Isso não é tudo, pois, no cenário digital atual, não somente os algoritmos de plataformas sociais como Instagram, Facebook, TikTok e X promovem conteúdos com base em dados de comportamento dos usuários, mas, além disso, os grupos criados em aplicativos de mensagens instantâneas como o Whatsapp, Telegram e Discord normalmente reúnem pessoas do mesmo círculo de relacionamento, o que faz com que o perfil de usuários do grupo guarde características e comportamentos semelhantes. Como resultado, o indivíduo fica exposto a uma versão da realidade e, em particular, do que é “atualidade”, que reflete apenas uma dada fração dela, aquela que mais se alinha aos seus interesses e à sua visão de mundo.

Na mesma direção, as ferramentas de busca como Google, Yahoo, Bing e YouTube (sistemas de softwares projetados para pesquisar informações na internet), apesar do efeito democratizante na seleção das informações, operam usando complexos algoritmos que classificam e organizam informações baseados na relevância da informação para o usuário e guiados por fins mercadológicos, especialmente pela publicidade (pay-per-click, leilão de palavra-chave, anúncios display, remarketing, dentre outras formas de monetização) e pela venda de dados e insights.

É, portanto, possível entender que as bolhas criadas pelos algoritmos promovem uma certa construção da informação e da realidade que opera como um espelho que reflete as crenças, os valores e as vontades daqueles que as olham e contemplam, estabelecendo um mecanismo que tende somente a fortalecer sua visão de mundo enquanto o espelho cumpre a função de retratar tão somente aquilo que se espera vislumbrar — um mero reflexo de Narciso sobre as águas. Como resultado, a construção da realidade informacional e, consequentemente, da opinião, é fragmentada e polarizada.

Assim, se um indivíduo demonstra interesse por teorias conspiratórias, os algoritmos podem priorizar conteúdos relacionados, mostrando vídeos, postagens e artigos que reforçam essas ideias. Já quanto à política, um indivíduo que consome frequentemente conteúdos de viés político específico verá cada vez mais postagens que reforçam sua visão. Desta forma, um eleitor progressista pode ser constantemente exposto a argumentos que criticam adversários conservadores, e vice-versa. Essa retroalimentação cria a sensação de que a visão defendida é amplamente aceita e validada, enquanto opiniões divergentes são ignoradas ou apresentadas de forma distorcida. No campo do consumo, o efeito do espelhamento também é evidente. Alguém que pesquisa produtos relacionados a um estilo de vida específico, como esportes ao ar livre ou marcas de luxo, será continuamente impactado por anúncios e conteúdos que promovem esse mesmo estilo de vida. Essa prática não só reforça os hábitos de consumo, mas também molda identidades e preferências.

A arquitetura digital atual, na dinâmica da curadoria algorítmica, promove então a criação de bolhas de consenso, onde pontos de vista alternativos ou divergentes são cada vez menos acessados. Devido à repetição ininterrupta do mesmo, criam-se crenças fixas e inflexíveis que alimentam a formação de práticas insensíveis a tudo que contrarie os limites da bolha. Estabelece-se, pelo isolamento da autoimagem refletida, um solo fértil para a polarização, pois, desde que as pessoas interagem apenas com as ideias e posições com as quais já concordam, são geralmente as visões mais extremadas que acabam sendo privilegiadas.

A exposição seletiva à informação pode ainda reforçar preconceitos na ilusão do consenso. Quando os usuários só interagem com conteúdos que reafirmam suas visões pré-existentes, há pouca margem para diálogo e debate construtivo. Além disso, o espelhamento das bolhas pode contribuir para a desinformação, uma vez que conteúdos sensacionalistas ou falsos que se alinham com as preferências do usuário têm maior chance de serem promovidos pelos algoritmos, em detrimento de fontes mais rigorosas e controversas.

A tendência desse espelho de Narciso de reforçar narrativas específicas tem implicações sociais bastante significativas. Ela contribui para a polarização política, dificulta o diálogo entre grupos com visões divergentes e enfraquece a capacidade dos indivíduos de avaliar criticamente a realidade e o presente. Além disso, o controle exercido pelos algoritmos sobre o fluxo de informações levanta questões sobre a transparência e a ética no manejo dos dados e no estar informado na sociedade contemporânea.

6. Os regimes de interação na dinâmica informacional

Essas formas de consumo da informação instituem diferentes práticas e, consequentemente, diferentes regimes de interação. Entre, por um lado, o acesso aos dados por meio da curadoria editorial, mais afeita às mídias tradicionais (termo já um tanto em desuso, mas ainda adequado para aos jornais, revistas, canais de televisão e de rádio, bem como aos portais digitais de informação normalmente vinculados a grandes editorias de conteúdo) e, por outro, o dispositivo mais atual da curadoria algorítmica (que diz respeito às práticas informacionais relacionadas aos meios digitais), ao menos dois regimes de interação podem ser observados. Evidentemente, eles não são mutuamente excludentes. Os dois modos de consumo da informação podem ser utilizados, pelos sujeitos informados, concomitantemente, ou fazer o objeto de escolha, dependendo da ocasião, da necessidade e da velocidade requerida para a obtenção de dada informação.

O regime de interação promovido pela curadoria editorial opera sob uma lógica centralizada, na qual jornalistas, editores e produtores de conteúdo, com base em critérios editoriais próprios, explícitos ou implícitos, decidem quais fatos devem ser noticiados, como serão apresentados e qual a sua relevância para o público. Trata-se de um modelo que pressupõe um alto nível de mediação, com um forte papel da mídia como intermediária entre os fatos e os sujeitos a serem sobre eles informados. Neste regime, o indivíduo interage com as informações de uma maneira mais receptiva, embora possa editar, complementar e distribuir o conteúdo recebido para outras pessoas, mas confiando na autoridade e na credibilidade do veículo. Esse regime é marcado por uma prática de consumo que privilegia a hierarquização dos conteúdos e a percepção de imparcialidade, ainda que sujeita a muitos vieses editoriais, como bem sabemos. A linearidade e o controle do fluxo de informações, nesse regime, proporcionam uma visão mais uniforme do presente, reduzindo a fragmentação e, de certo modo, a sobrecarga informacional. Podemos dizer que no regime da curadoria editorial temos o presente construído pelo próprio presente, em procedimentos pelos quais a informação se propõe a ser uma abstração do presente na direção do fazer saber sobre ele ao sujeito a ser informado.

Já no regime proporcionado pela curadoria algorítmica (por definição baseado no uso de algoritmos para personalizar a experiência do usuário em plataformas digitais como redes sociais, ferramentas de busca e aplicativos), os conteúdos são selecionados e exibidos com base em dados coletados sobre o comportamento e as preferências do usuário, manifestadas por cliques, curtidas, interações e histórico de navegação. A lógica de operabilidade desse regime é descentralizada e altamente individualizada, proporcionando uma interação ativa entre o indivíduo e as informações recebidas, permitindo-lhe moldar, ainda que indiretamente, o fluxo de notícias que recebe. Assim, podemos entender que o presente da curadoria algorítmica é criado pelo passado, pela história e pelas práticas que o indivíduo construiu e que são permanentemente reproduzidas pelos algoritmos. Essa prática fragmenta a realidade construída pela notícia e promove um consumo informacional pautado pela relevância individual, e não pelo interesse público. A lógica deste regime não é prioritariamente informar, mas sim aumentar o engajamento do internauta às plataformas e redes.

Esses dois regimes de interação refletem não apenas diferentes formas de consumo da informação, mas também distintas visões de mundo. A curadoria editorial, ao propor uma visão mais estruturada da realidade e permitir uma maior dissidência e discussão sobre as informações do presente apresentadas, tende a reforçar a noção de comunidade e de esfera pública compartilhada e coletiva. Já a curadoria algorítmica, ao privilegiar o individualismo e a personalização, alimenta a fragmentação e a polarização social. No âmbito da formação da opinião pública, a curadoria editorial promove um debate mais uniforme, pautado por temas amplos e de interesse geral ; a opinião pública é, assim, baseada na discussão e no questionamento. Em contrapartida, a curadoria algorítmica intensifica a criação de microesferas de opinião, nas quais grupos específicos discutem assuntos de interesse próprio, muitas vezes isolados de visões divergentes. É, assim, uma opinião construída no consenso, sem qualquer vislumbre do novo e do não esperado.

Podemos dizer que a curadoria editorial, desta maneira, estaria mais próxima da lógica do regime da manipulação, em que as linhas editoriais das mídias reconhecem o leitor / expectador como sujeito capaz de interação, diálogo e mesmo divergência de opinião. Não é de hoje a busca pelos “dois lados do fato” na construção das informações, as seções dedicadas à opinião dos leitores tanto na mídia impressa como televisiva e os debates de opinião promovidos por esses produtores de conteúdo jornalístico. Esses sujeitos manipulados pela construção e difusão da informação podem ser, ao mesmo tempo, sujeitos também manipuladores da informação ao aderirem ao debate e ao editarem e compartilharem as notícias e as suas posições sobre elas.

Quanto aos mecanismos de operação da curadoria algorítmica, parece não haver reconhecimento do outro como sujeito a ser informado. O que efetivamente interessa nessa lógica interacional é apenas o conjunto de variáveis que os algoritmos são programados para identificar, processar e priorizar. Essas variáveis derivam, em grande parte, dos dados comportamentais e das interações digitais de cada usuário, tais como o comportamento de navegação, as interações sociais e digitais e as preferências declaradas ou implícitas no histórico de navegação. Em suma, os algoritmos se interessam por tudo aquilo que é digitalmente rastreável e utilizam essas informações para construir um retrato comportamental detalhado do usuário para sobre ele operar, priorizando conteúdos que, com alta probabilidade, atrairão sua atenção ou levarão a alguma ação (como cliques, compras ou interações).

Em outras palavras, a curadoria algorítmica opera exatamente sob o regime da programação, com a operacionalização da construção e distribuição da informação para maximizar o engajamento e atenção por meio da melhor aproximação entre desejos e expectativas do receptor e aquilo que lhe é oferecido. A edição e a replicação das informações operadas por esse actante têm a finalidade maior de promover a manutenção do seu grupo de relacionamento e, consequentemente, o consenso no que diz respeito ao conteúdo difundido.

Por fim, sublinhamos novamente que esses regimes não são excludentes, mas coexistem em um contexto de transição cultural e tecnológica. O sujeito contemporâneo, ao transitar entre entre eles, ajusta suas práticas informacionais conforme suas necessidades e o contexto em que está inserido.

Conclusão

No mundo contemporâneo, o acesso à informação atravessa um terreno acidentado caracterizado pela coexistência e, por vezes, pelo embate entre os regimes de curadoria editorial e curadoria algorítmica. Cada um possibilita vantagens e limitações, mas ambos desafiam os indivíduos a navegar por um cenário informacional fragmentado, no qual a sobrecarga de dados e as dinâmicas das bolhas ensimesmadas podem distorcer percepções e obscurecer a compreensão ampla da informação. O desafio maior está em desenvolver uma consciência crítica sobre como esses regimes moldam práticas de acesso à informação, entendendo as implicações de confiar exclusivamente em um deles.

A curadoria editorial, tradicionalmente associada à editoria profissional dos meios de comunicação, apresenta-se frequentemente como um pilar ancorado em princípios éticos e métodos rigorosos. No entanto, sofre atualmente com uma crise de credibilidade e uma crescente desconfiança do público, além das pressões econômicas que afetam a sustentabilidade do seu modelo de operação. Por outro lado, a curadoria algorítmica, amplamente dependente de dados e impulsionada por interesses comerciais, tem o mérito de oferecer informações personalizadas e em tempo real, mas frequentemente reforça visões limitadas e polarizadas, comprometendo a necessária diversidade de perspectivas e olhares.

Diante desse cenário, manter-se informado exige um esforço ativo de diversificação de fontes e de estratégias ; de navegação entre os regimes de interação, portanto. Alternar entre diferentes plataformas e buscar fontes que se alinhem a padrões éticos, mas que também desafiem visões preexistentes, é fundamental para escapar de um único reflexo no espelho. Além disso, iniciativas recentes que investem na promoção de plataformas que conciliam inteligência artificial com princípios editoriais de curadoria desenham mais um caminho que pode ser promissor.

Os desafios não estão apenas na escolha das fontes de informação ou na busca por diversidade de perspectivas, mas também na necessidade de vencer a comodidade da personalização excessiva e o isolamento cognitivo promovido pelas bolhas digitais. Em uma era onde as narrativas disputam espaço e poder, o acesso à informação ampla, plural e verificável se torna um ato de cidadania indispensável para a preservação do diálogo democrático e para a construção de uma sociedade mais crítica e consciente.

7 E. Pariser, The Filter Bubble : what the Internet is hiding from you, New York, The Penguin Press, 2011.


Referências

Gleick, James, A informação : uma história, uma teoria, uma enxurrada, São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

Greimas, Algirdas J., e Joseph Courtés, Dicionário de Semiótica (1979), trad. São Paulo, Cultrix, s/d.

Landowski, Eric, e Jose Luiz Fiorin (orgs.), O gosto da gente, o gosto das coisas, São Paulo, EDUC, 1997.

— Interações arriscadas (2005), trad. São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014.

“Suivre l’actualité – pourquoi? Sens et insignificance d’une pratique”, Acta Semiotica, IV, 8, 2024.

Pariser, Eli, The Filter Bubble: what the Internet is hiding from you, New York, The Penguin Press, 2011.

Santaella, Lúcia, A pós-verdade é verdadeira ou falsa? , São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2018.

 

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1 J. Gleick, A informação : uma história, uma teoria, uma enxurrada, São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 421.

2 Cf. L. Santaella, A pós-verdade é verdadeira ou falsa ?, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2018.

3 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de Semiótica, São Paulo, Cultrix, s/d, verbete “Práticas semióticas”, p. 344.

4 Cf. “Duas formas de motivação”, Interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014, pp. 41-45.

5 Cf. E. Landowski, “A política do gosto”, in E. Landowski e J.L. Fiorin (orgs.), O gosto da gente, o gosto das coisas, São Paulo, EDUC, 1997, pp. 128-129.

6 E. Landowski, “Suivre l’actualité — pourquoi ? Sens et insignifiance d’une pratique”, Acta Semiotica, IV, 8, 2024.

7 E. Pariser, The Filter Bubble : what the Internet is hiding from you, New York, The Penguin Press, 2011.


Résumé : L’article examine comment la digitalisation, en décentralisant les moyens de communication et en transformant les récepteurs en créateurs ou diffuseurs de contenus, a transformé la production de l’information et ses modes d’accès. « Être informé » prend alors un sens nouveau. Tandis que le système informationnel classique suppose des choix délibérés concernant la hiérarchisation des nouvelles, l’édition algoríthmique, fondée sur le comportement de l’usager, personnalise les contenus et crée des bulles informationnelles qui renforcent les croyances préexistantes. En termes de régimes d’interaction, l’un relève de la manipulation, l’autre de la programmation. Les deux influencent les pratiques sociales, mais alors que l’un favorise le débat entre les opinions distinctes, l’autre intensifie la fragmentation et la polarisation sociales.


Resumo : O texto examina como a digitalização transformou a produção e o acesso à informação, descentralizando os meios de comunicação e permitindo que indivíduos se tornem criadores e curadores de conteúdo. O texto argumenta que os meios digitais criam outro sentido para o ato de “estar informado” por meio de duas curadorias distintas. A curadoria editorial envolve escolhas conscientes de como as notícias são priorizadas, enquanto a curadoria algorítmica, baseada unicamente no comportamento do usuário, personaliza o conteúdo e cria bolhas informacionais que reforçam crenças pré-existentes. As duas estratégias estabelecem distintos regimes de interação, que oscilam entre a manipulação e a programação. Ambos os regimes influenciam as práticas sociais quanto à informação, mas a curadoria algorítmica tende a intensificar a fragmentação e a polarização social, enquanto a editorial favorece o debate e a diversidade de opiniões.


Abstract : The text examines how digitalisation has transformed the production and access to information, decentralising the media and allowing individuals to become creators and curators of content. It argues that digital media creates a new meaning for the act of “being informed” through two distinct curations. Editorial curation involves conscious choices about how news is prioritised, while algorithmic curation, based solely on user behavior, personalises content and creates informational bubbles that reinforce pre-existing beliefs. Both strategies establish distinct regimes of interaction, oscillating between manipulation and programming ; both influence social practices regarding information, but algorithmic curation tends to intensify fragmentation and social polarisation, while editorial curation favors debate and diversity of opinions.


Mots clefs : algorithme, digitalisation, information, programmation.


Auteurs cités : James Gleick, Algirdas J. Greimas e Joseph Courtés, Eric Landowski e Jose Luiz Fiorin, Eli Pariser, Lúcia Santaella.


Plan :

Introdução

1. As práticas do consumo das notícias

2. As formas da atualidade

3. A curadoria editorial nas práticas midiáticas

4. A curadoria algorítmica

5. O espelho de Narciso e a ilusão do consenso

6. Os regimes de interação na dinâmica informacional

Conclusão

 

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Recebido em 10/11/2024. / Aceito em 10/12/2024.