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Corpos (des)vestidos Renata Fabbris
Publié en ligne le 31 décembre 2024
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Conhecida como uma das Universidades proeminentes do Brasil pela sua qualidade de ensino, produção de conhecimento e posicionamento político, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) conta com uma circulação de aproximadamente 15.000 pessoas todos os dias nos períodos de atividades acadêmicas. Dentro das práticas de vida universitária é comum a realização de manifestações e reivindicações enquanto exercício político democrático. Em março de 2024 presenciamos uma manifestação dos alunos em reivindicação à instalação de equipamentos de ar-condicionado nas salas de seus cursos de graduação. O evento foi imediatamente midiatizado pelos principais meios de comunicação locais como G1, UOL News e SBT News, entre outros, reforçando a questão climática de extremo calor vivenciado na cidade de São Paulo no verão de 2024 com temperaturas que ultrapassaram 40 graus na selva de pedras e cimento, materiais que intensificam ainda mais a sensação térmica. O que deu grande holofote para o evento foi o modo de vestir e performar dos manifestantes. Com biquinis, bermudas, toucas e óculos de natação — como se estivessem tomando sol na praia na principal via de circulação interna do campus central, no Bairro das Perdizes — eles transgrediram o modo convencional do trajar universitário. A ação, denominada de “Biquinaço”, interrompeu a programação das atividades acadêmicas e retirou alunos e professores das salas de aula. As escolhas vestimentares carregaram o ato reivindicatório de irreverência e ironia em tom provocativo, o que aumentou a sua difusão e engatou mil reflexões sobre a mudança climática e os modos de vestir-se com adequação. Dado esse contexto, analisa-se o impacto da dimensão sensível desta experiência vivida. Com o escopo teórico e metodológico da semiótica de Greimas, da sociossemiótica de Landowski, das análises plásticas de Floch e o detalhamento das qualidades sensíveis da ambientação e das vestimentas de Oliveira, objetivamos analisar como o dito “biquinaço” configura uma ação política relativa às melhorias conclamadas pelos estudantes. Na prainha da PUC-SP, corpos (des)vestidos A princípio, esta manifestação seria mais uma entre outras recorrentes onde se discutem situações das práticas universitárias institucionais. Todavia, no caso, o protesto contou especialmente com o apelo à expressão plástica e estésica com dezenas de corpos simulando uma situação de estar na praia em meio à principal via de circulação da Universidade, rompendo com os padrões do vestir, gerando um novo sentido. Vista em perspectiva dos alunos manifestantes. O lugar, tradicionalmente chamado de “Prainha”, foi escolhido criteriosamente por ser o de mais intensa circulação devido à ligação entre as edificações do campus, que é também uma área em que se concentram Centros Acadêmicos dos estudantes com lanchonetes, papelaria e fotocopiadoras sob a administração destes. Ainda a escolha deste espaço se justifica por ele ter sido, no tempo da ditadura, o lugar de uma manifestação comparável, onde uma praia foi simulada com despejo de areia, guarda-sóis e também alunos com trajes de praia. No presente protesto, os alunos, em sua maioria jovens e brancos, portam vestes de praias, as mulheres vestem biquínis coloridos ou tops com shorts, os rapazes usam sungas ou shorts, alguns trazem o tom irônico pelo uso de óculos de natação na testa e portarem toucas, com destaque para um rapaz com top de biquíni estendido em uma toalha no chão como se quisesse bronzear as costas. Um tal espetáculo não pode não produzir uma dupla ruptura : uma descontinuidade no espaço ao mesmo tempo que uma suspensão no tempo. A apreensão sensível impacta imediatamente os frequentadores do espaço. Atingindo primeiro a visão das pessoas que estão circulando e começam a ver um aglomerado de pessoas, passa pela audição do som da música alta e microfonia, voltando-se novamente para a visão, ao se aproximar para observar a performance dos corpos semideitados lado a lado nas escadarias de circulação, com vestimentas coloridas e itens de natação, se abanando com leques, que é reforçado pela apreensão tátil sentida na alta temperatura e com o corpo todo afetado que acompanha o que sente.
1. No nível discursivo, instaurado sobre o regime da visibilidade, os manifestantes têm como tema uma reivindicação para climatização das salas de aula. Pelo incomodo modo de estar em ambientes que não apresentam adequadas condições para o andamento das aulas e até as prejudicam, os discentes buscaram difundir essas condições a um maior número de destinatários a fim desses verem, ouvirem, serem tocados e compreenderem o que estava sendo reivindicado, uma vez que por outras vias não foram atendidos. Utilizam da construção de um enunciado sincrético que inclui equipamentos de som com alto-falantes para as palavras entoadas atingirem outros espaços, músicas com temática do verão, placas com frases de impacto ou faixas reivindicatórias para situar os que passam e param em busca de saber o que acontece. Esse dispositivo complexo — som, localização, posições, vestimenta — articulado em um todo objetiva um “não poder não ser percebido”, no qual o que mais chamou a atenção sem dúvida centra-se na plasticidade ousada dos corpos (des)vestidos. Um objeto de culto em nossa sociedade que tem nos corpos seminus nas praias um objeto de valor do verão é instalado no próprio centro da vida acadêmica puquiana. Os manifestantes atuam enquanto sujeito coletivo enquanto alunado que têm o poder além do saber para reinvindicar condições ambientais condizentes com os custos da instituição. Ao quebrar as convenções do vestir universitário, esse sujeito coletivo cria uma descontinuidade na vida universitária. Ademais, o modo plástico e estésico da construção reivindicatória faz com que essa saia da universidade e seja captada pelas mídias e redes sociais. No plano da expressão, plasticamente, há o formante matérico constituído pela materialidade da pele dos corpos semidesnudos e pelos materiais das vestimentas que se modelam a esses corpos. O formante eidético é mostrado pelas curvas dos corpos que aparecem semideitados. O cromático é dado pelos tons de pele, pelas cores dos cabelos e pelas cores das vestimentas e acessórios coloridos do verão. O formante rítmico se dá pela distribuição dos alunos na topologia da prainha onde eles se postam lado a lado em posições similares. E pelo compassado abanar constante dos leques mostra-se que o estar em banho de sol não é um posicionar-se que resulta da inquietude gerada pelo saber que instiga e envolve o movimento do pensamento nas salas de aula, mas pelo desconforto térmico que dificulta a concentração exigida para o aprendizado. Entra também na articulação dos feixes de formantes da manifestação o formante estésico que é sentido pelo calor experimentado nas salas de aula que faz com que essas se tornem não salas de construção do saber mais de curtição do calor e instauram a sensação de languidez. Por fim, a categoria da expressão horizontalidade vs verticalidade intervem com a exposição dos corpos alongados a céu aberto nos degraus, mostrando, no plano do conteúdo, uma descontração, um relaxamento que se opõem à rigidez associada à verticalidade. Assim constroi-se a figuratividade do ambiente beira-mar onde paradoxalmente só há concreto. Em determinado momento da manifestação, a ironia é reiterada quando se toca a música “Ombrim” da cantora Marina Senna : “Ai, que delícia o verão / A gente mostra o ombrim / A gente brinca no chão, aha-hã / Queimando profundo, o sol me cobriu / Atiçando labaredas na minha mente / Caindo no mundo / Pelada no rio, meu bem / Eu quero esse clima quente”. A escolha da música conecta-se diretamente com a manifestação, seja no uso do refrão que “a gente brinca no chão” (o corpo discente de fato estira-se no chão do campus), quanto o sol que atiça labaredas na mente e não permite o estudo, além do humor que traz um novo sentido para a música. Assim, atrás da ironia, a categoria que aparece recobrindo o todo é a da insubmissão, que se opõe à categoria de convenção, da regulação.
2. O nível narrativo é marcado pelo enfrentamento entre os manifestantes, frequentadores do campus, e a Instituição. Recorrendo aos regimes de interação e de sentido da sociossemiótica é possível identificar a presença tanto da lógica de junção quanto da lógica da união nesta manifestação reivindicatória. O protesto é todo organizado pelo regime da Programação, pela regularidade. Trata-se de uma operação programada com local, horário e data para acontecer, onde será executada a performance programada visando a atenção da instituição. Porém, para esse programa ser posto em ação ele é antes elaborado segundo o regime dito da Manipulação (ou da estratégia) que rege essa narratividade, atuando conforme o princípio da intencionalidade. Intenciona-se que os sujeitos alunos protestantes façam o sujeito instituição fazer climatizar as salas de aula que é o objeto de valor intencionado por meio de uma estratégia de provocação de forma tanto disfórica para a autoridade reitoral visada, quanto euforica para os manifestantes. O local foi cuidadosamente escolhido : a conhecida “Prainha” é uma área de alta visibilidade e circulação fundamental dentro do campus Monte Alegre, e, como mencionado anteriormente, o proprio nome leva à memória da transgressão durante a ditadura. O regime do Ajustamento também está presente no ato. Ele é fundado na sensibilidade, onde há o risco de haver ou não a sensibilização dos demais alunos, docentes, funcionários na reivindicação. Na incerteza do sucesso da manifestação, os alunos protestantes se põem a performar a cena de praia e ganham a atenção e apoio dos frequentadores do campus num fazer junto, na lógica da união. No ambiente vivido — música, relaxamento, alta temperatura — um sentir comum tende a se alastrar por todos os cantos mediante uma forma de contagio sensível. Mas, conforme o modelo interacional, tudo, num tal contexto, pode acontecer. Esses corpos quase desnudos portando-se de forma irreverente poderiam muito bem ser veementemente repreendidos pela instituição ! Não era inicialmente garantido que o ato seja tão amplamente midiatizado como foi o caso. Punição ou repercussão positiva, o resultado da luta não estava previsível adiantadamente, conforme o regime interacional do Acidente, de que este manifesto também dependia.
3. Enfim, no que refere ao nível fundamental, sabemos que as altas temperaturas atingem a população como um todo, produzindo sensação de desconforto generalizado. Aproveitando-se disso, o tema da reinvindicação ganhou uma ampla divulgação. Ao trazer a questão climática externa para a Universidade e levar para fora dos portões uma questão interna referente à climatização das salas de aula, os alunos conseguiram colocar em zona de alerta e atenção máxima a ruptura que provocaram para além da Instituição ao atingir a mídia externa, alcançando seu objetivo mais amplo. Neste nível fundamental são reveladas as axiologias que alicerçam as ações dos manifestantes, ou seja, os valores que circulam no discurso. Numa situação de protesto, o fazer ser ouvido pelas reivindicações é central, pois outras tratativas são realizadas antes de um protesto através dos sistemas convencionais de comunicação institucional como recorrência à Ouvidoria, Abaixo-assinados etc. Dessa forma, temos a oposição de base de ações de transformações : o protesto enquanto premência necessária de mudança versus a permanência das situações existentes, onde não há um investimento em climatização das salas feito pela Instituição. Como termos subcontrários há o entendimento de necessidades de mudanças, mas que ainda não se concretizam enquanto ações, que se opõe à postergação de ações para que tais mudanças ocorram. Como termos complexos à oposição de base há um posicionamento político definido por ambos os lados da relação. E como termo complexo dos subcontrários, há um repensar de ações que trazem uma dinâmica no processo. Entre o entendimento de necessárias mudanças e a real tomada de ações, o termo complexo se faz pelo movimento de descontinuidade pela vontade de mudança. Já o termo complexo na permanência e postergação de mudanças é dado pela continuidade, de manter-se como está atualmente. Posicionamentos e valores em circulação na universidade. Abordamos no estudo o advir de um novo sentido que surge quando, em meio a um dia de aulas na cidade mais rica do país, alunos se travestem de forma lúdica e reivindicatória e tomam sol abanando-se para protestar contra salas de aula sem ar condicionado em meio a um intenso período de calor no país. O ato transpõe os portões universitários e é noticiado nas mídias. Nosso interesse foi o de mostrar como o corpo vestido de modo inadequado ao contexto universitário concentra a estratégia manipulatória da reinvindicação buscada e como essa contagia a comunidade. O corpo vestido segue as codificações do lugar e do fazer impostos pelo social e, assim, os trajes praianos portados na centralidade da PUC-SP fazem tanto os demais estudantes entrarem no protesto reivindicatório, que não podem não ver, na medida em que esse intercepta os seus passos nos deslocamentos pelo território. Assim promove um sentir que desencadeia um estar em solidariedade. Dois modos de levar a esta forma de adesão estão postos em cena, um centrado no fazer viver a absurdidade de estar na universidade como na praia o que inviabiliza as condições de estudo ativo e o outro que faz compreender e se por a refletir sobre os investimentos da universidade no seu espaço físico para atender os seus alunos pagantes e oferecer-lhes condições adequadas para o estudo. Da apreensão sensível à reflexão inteligível, a análise semiótica do ato reivindicatório dos corpos vestidos mostrou os mecanismos usados para alcançar a transgressão das normas e práticas sociais e agregar força a essa manifestação política. No palco reivindicatório da prainha, as vozes contra a ditadura militar ecoam e fazem emergir as marcas do que nela está inscrito e essa memória transgressora qualifica a voz do hoje. |
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Referências Castilho, Kathia, e Mareclo M. Martins, “Produção de sentidos na relação sujeito-corpo-roupa”, in Yvana Fechine et al. (orgs.), Semiótica nas Práticas Sociais: Comunicação, Artes, Educação, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014. Floch, Jean-Marie, “La iconicidad : exposicion de uma enunciación manipulatoria. Análisis semiótica de uma fotografia de Robert Doisneau”, in id., Figuras y estrategias. En torno a uma semiotica de lo visual, trad. Gabriel Hernández Aguilar, Mexico, Siglo Veintiuno, 1994. Greimas, Algirdas J., Da Imperfeição (1987), trad. e pref. Ana Claudia de Oliveira, apresentaçoes de Paolo Fabbri, Raul Dorra, Eric Landowski, São Paulo, Hacker Editores, 2002. — e Joseph Courtés, Dicionário de Semiótica (1979), trad. Alceu Dias Lima et al., São Paulo, Contexto, 2008. Landowski, Eric, Interações arriscadas (2005), trad. Luisa Helena Oliveira da Silva, São Paulo, Estação das Letras e Cores - Centro de Pesquisas Sociosemióticas, 2014. Oliveira, Ana C. de, “Corpo e roupa nos discursos de aparência”, Anais do 16° encontro anual da COMPÓS, Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 2007 (https://proceedings.science/compos/compos-2007/trabalhos/corpo-e-roupa-nos-discursos-da-aparencia?lang=pt-br). — “Corpo, roupa nas inter-relações semióticas da comunicação”, revista dObras[s], 3, 2009. — “Corpo vestido no social. Contribuições da semiótica para o estudo da aparência e da identidade”, Revista dObra[s], 31, 2021 (https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/1282). |
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______________ Résumé : En mars 2024, une manifestation très particulière, connue sous le nom de « Biquinaço », eut lieu au centre du principal campus de la PUC, à São Paulo. Par un jour de canicule, pour revendiquer l’installation de l’air conditionné dans les salles de cours, un grand nombre d’étudiants, ironiquement vêtus de biquinis et autres acoutrements de plage, occupèrent l’allée centrale de l’universié, interrompant le cours de la vie académique habituelle et attirant l’attention de la presse. L’article analyse en termes socio-sémiotiques le déroulement discursif et narratif de cet acte provocateur et en montre la portée sur le plan des valeurs universitaires et politiques en jeu. Resumo : A manifestação conhecida como “Biquinaço” ganhou destaque nas mídias do país ao apresentar a figuratividade dos corpos vestidos em protesto por meio de vestimentas usadas na performance em ambiência praiana, que se deu em um dia comum de aulas no campus principal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e que fez entrever os sentidos reivindicatórios do modo de vestir. O ato de ruptura é abordado pela semiótica discursiva na vertente da sociossemiótica com análise da expressão na abordagem do regime de visibilidade das configurações dos corpos vestidos em ação política. Abstract : In March 2024, a period of intense heat, a rally known as “Biquinaço” took place on a common day of classes on the main campus of the Pontifícia Universidade Católica, in São Paulo. It gained prominence in the country’s media by presenting a large number of students ironically dressed in bikinis and other beach attire at the very center of the campus, interrupting academic life. The article anayses in sociosemiotic terms the discoursive and narrative aspects of this humouristic act of protest and stresses its relevance as regards values involved in university policies and conflicts. Mots clefs : formants plastiques, manifestation politique, régimes interactionnels, sociosémiotique, vêtement. Auteurs cités : Jean-Marie Floch, Algirdas J. Greimas, Eric Landowski. Plan : Na prainha da PUC-SP, corpos (des)vestidos enquanto manifesto político |
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Recebido em 30/10/2024. / Aceito em 10/12/2024. |