Dossier — Altérité / Diversité

O mesmo e o diverso.
A construção discursiva
do povo na política : notas
a partir do caso brasileiro

Paolo Demuru
São Paulo, Universidade Paulista

 

Publié en ligne le 30 juin 2023
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2023n5.62454
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Introdução

Nesse artigo, procuro refletir sobre os processos de construção e articulação da identidade e da alteridade no discurso político contemporâneo. Para tanto, parto do caso do Brasil, buscando compreender como a figura do “povo brasileiro” foi sendo concebida e confeccionada pelos campos da extrema-direita populista e da frente ampla liderada por Lula que venceu as eleições em outubro de 2022. No entanto, o escopo desse trabalho não é unica e meramente analítico, nem se circunscreve aos confins do país sul-americano. Não me interessa desvendar e discutir em detalhe as estratégias de cada um dos atores acima mencionados. Ao contrário, minha intenção é esboçar, com base nesses exemplos, uma teia de conceitos interdefinidos suscetível de ser desenvolvida para dar conta das diferentes formas de produção do sentido do povo (mais especificamente, do “povo nacional”) e das maneiras como ele concebe e lida com a sua diversidade interna e externa.

As fundamentas teórico-metodológica desse projeto encontram-se no texto de apresentação do Forum de Discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas de dezembro de 2021, no qual Eric Landowski desenvolve suas reflexões sobre a “gramática da alteridade” previamente elaboradas no capítulo “Formas de alteridade e estilo de vida” de Presenças do outro, e no terceiro capítulo de Semiótica e ciências sociais, intitulado “A construção de objetos semióticos. Análise semiótica de um discurso jurídico : a lei comercial sobre as sociedades e os grupos de sociedades”, que aborda a problemática do actante coletivo1.

A hipótese que defendo é que o populismo de extrema-direita constrói discursivamente o povo como uma “totalidade integral”, composta por uma massa indistinta de iguais, por meio de uma operação de neutralização das diferenças, enquanto a esquerda (explicarei adiante o que entendo com esse termo) deveria projetar o povo como uma “totalidade partitiva” (ou melhor, “participativa”), fundada no pluralismo, na complexificação e na articulação do diverso.

1 E. Landowski, “Uma gramática da alteridade”, texto de apresentação do Forum de discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, dez. 2021 (uma versão atualizada encontra-se no presente dossiê sob o título “Pour une grammaire de l’altérité”) ; id., “Formas de alteridade e estilos de vida”, Presenças do outro. Ensaios de Sociossemiótica (1997), São Paulo, Perspectiva, 2002. A.J. Greimas e E. Landowski, “A construção de objetos semióticos. Análise semiótica de um discurso jurídico : a lei comercial sobre as sociedades e os grupos de sociedades”, in A.J. Greimas, Semiótica e ciências sociais (1976), São Paulo, Cultrix, 1981.

1. Uma gramática da alteridade

Em “Gramática da alteridade”, Landowski formula um modelo que visa dar conta das maneiras como sujeitos individuais e/ou coletivos enxergam outros sujeitos com os quais se deparam ao longo de suas existências. O semioticista identifica quatro “visões”, que dispõe ao longo de um quadrado semiótico na intenção de abordar, ao lado de suas singularidades, suas possíveis relações.

Cada “visão” funda-se em um preciso regime de interação e de sentido e gera, por sua vez, diferentes “práticas de relacionamento” com a alteridade.

No primeiro caso, o outro é visto como “idêntico a si”. Trata-se de uma perspectiva uniformizante, baseada na lógica da “programação”, isto é, em crenças e práticas social e culturalmente sedimentadas, consideradas como inquebráveis e imutáveis. Dentro dessas coordenadas, o outro só tem uma escolha : assimilar-se. Ou aprende a agir e pensar como o grupo dominante, negando sua identidade, ou é excluído.

No segundo caso, o outro é visto como “semelhante a si”. Para ser aceito, ele não precisa se conformar, pois o grupo dominante “admite em seu próprio seio uma certa estranheza”2. No entanto, a diferença há de ser exercida dentro limites a serem negociados, o que resulta em operações de manipulação do sujeito com o qual se interage.

2 “Formas de alteridade e estilos de vida”, op. cit., p. 49.

No terceiro caso, o outro é visto como “inteiramente outro”. Aqui não há espaço para a assimilação ou admissão da alteridade. O outro que marca sua diferença e não se submete à visão dominante, é percebido como um “acidente”, uma entidade ameaçadora, que precisa ser segregada e/ou eliminada do campo social.

No quarto caso, o outro é visto como “simplesmente outro”. O que prevalece aqui é a lógica da “disponibilidade”, que funda, por sua vez, uma relação de ajustamento entre sujeitos que se percebem como “iguais”. A partir desses pressupostos, a interação ganha os contornos de uma autêntica cooperação, suscetível de gerar processos de co-criação e de reinvenção da vida em sociedade. Conforme sugere Landowski, uma vez que a presença do outro deixa de ser cercada por determinismos e/ou regras sociais coercitivas (assimilação), negociações de interesses divergentes (admissão) ou visões excludentes (exclusão), “a vida pode ser vivida, concebida ou pelo menos sonhada como uma aventura gratificante — livre e criativa — onde na imanência das relações entre entidades independentes e sensíveis umas às outras. (...) Cada um busca se realizar mediante o cumprimento correlativo do potencial próprio do outro ou dos outros”3.

3 “Uma gramática da alteridade”, art. cit., p. 7 (trad. minha).

Mas como o arcabouço proposto por Landowski pode nos ajudar a compreender os modos de produção da identidade e alteridade no campo político, e, mais especificamente, os diferentes processos de construção do “povo” operados pelo populismo de extrema-direita e pela esquerda ? É disso que vou me ocupar agora.

2. Identidade e alteridade no populismo de extrema-direita

Comecemos com o populismo de extrema-direita, tomando como exemplo o caso do bolsonarismo4. Esse constrói discursivamente o povo como uma massa indistinta de unidades identicas, isto é, nos termos de Greimas e Landowski, como uma “totalidade integral”, um actante coletivo coeso e incindível no qual as partes abdicam de suas especificidades para dar vida a um sujeito uniforme5.

4 Para uma abordagem semiótica de bolsonarismo, cf. Y. Fechine e P. Demuru, Um bufão no poder. Ensaios sociossemióticos, Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2022.


5 A.J. Greimas e E. Landowski, “Análise semiótica de um discurso jurídico”, op. cit.

A produção de um tal efeito de sentido baseia-se em duas operações semióticas. Em primeiro lugar, na exclusão das alteridades que não se sujeitam aos processos de uniformização dos poderes dominantes. Aqueles que escolhem marcar sua diversidade são percebidos e classificados como “inteiramente outros” e, portanto, não aptos a fazer parte do todo. Em segundo lugar, na “neutralização das diferenças”. Para ser incluído na “totalidade integral”, o outro, aquele que, no senso comum, é entendido como diverso, deve, em certa medida, renunciar a si mesmo, apagar os “traços distintivos” de sua identidade que não se encaixam nos arranjos de valores, temas, figuras e até traços plásticos do “povo” em construção. Vejamos agora como funciona concretamente cada uma dessas operações.

Como apontei em estudos precedentes, Bolsonaro e a extrema-direita brasileira apropriaram-se das cores e dos símbolos nacionais que começaram a despontar nas ruas e nas redes durante as assim chamadas “jornadas de junho de 2013”, afirmando-se, nos anos sucessivos, como emblemas de um suposto levante patriótico contra Lula, Dilma Rousseff, o Partido dos Trabalhadores (PT) e outros presumidos “inimigos da nação”, liderado, na eleição presidencial de 2018, pelo próprio Bolsonaro6. Por meio dessas tramas discursivas, a imagem que se afirmou no debate público foi aquela de uma polarização não entre duas partes políticas, mas entre o Brasil e seus “antissujeitos”, que variavam conforme as exigências do momento. O slogan da campanha “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, utilizado pelo ex-presidente em inúmeras ocasiões, é mais uma amostra dessa estratégia de cooptação da nação (e da religião, mas esse é um outro assunto) para fins particulares.

6 P. Demuru, “Simboli nazioni, regimi di interazione e populismo mediatico : prospettive sociosemiotiche”, Estudos Semióticos, 15, 1, 2019.

Mas o que isso tem a ver com a construção discursiva do povo e, mais precisamente, com os processos de exclusão e neutralização das diferenças ? Vejamos as fotos abaixo, publicadas por Bolsonaro em seu perfil do Twitter em maio e setembro de 2021. O que emerge, aqui, por meio da articulação entre a linguagem verbal e a linguagem visual, é a ideia de um sujeito-coletivo unido, de uma massa de pessoas que constitui um corpo único, caracterizado por precisos formantes plásticos e figurativos, associados, por sua vez, a temas e valores específicos. O “povo brasileiro”, conforme demonstra a bandeira colocada ao lado da expressão, é aquele que veste o verde-amarelo e se une ao ex-presidente em suas “motociatas”, usando as mesmas cores e roupas (Figura 1). O “povo brasileiro” que levanta o emblema nacional é composto pelos “cidadãos de bem”, que temem a Deus, prezam pela “família tradicional” e são a favor do armamento. Desse “corpo social” são excluídos uma série de outros atores, como, por exemplo, os que apreciam o “vermelho”, como os adversários do PT, dos movimentos do Sem Terra e dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), os integrantes da comunidade LGBTQIA+, que manifestam escolhas de gênero e sexualidade diversas daquelas dominantes (homens e mulheres cis e heterossexuais), indígenas que falam suas línguas, usam suas vestimentas tradicionais e defendem a demarcação de suas terras, entre outros. Bolsonaro e o bolsonarismo não se limitaram a apontar tais sujeitos como “rivais”, mas os representaram como “bárbaros”, entidades que não só não possuíam elos e vínculos com o “o povo brasileiro”, mas que ameaçavam sua “integridade”. “Outros”, portanto, voltando a Landowski, vistos e descritos como “inteiramente outros”, seres inconciliáveis com o sistema por eles erigido.

Figura 1. O povo segundo Bolsonaro.
Fonte : @jairbsolsonaro

Para os “diversos” que, movidos por um dever ou um querer específicos, resolvem fazer parte do povo, é reservado um tratamento especular : suas diferenças são “neutralizadas”, no sentido semiótico do termo, isto é, ofuscadas através de sua (con)fusão em uma grandeza outra, como no caso do pronome “eles”, que pode englobar, ao mesmo tempo, o feminino Maria e o masculino João, neutralizando a categoria de gênero7. Como afirmou Bolsonaro “As minorias têm que ser curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem” (serão excluídas, na acepção de Bolsonaro).

7 A.J. Greimas e J Courtés, Dicionário de Semiótica (1979), São Paulo, Contexto, 2008, p. 338.

Um exemplo de neutralização é aquele do deputado bolsonarista Hélio Lopes, conhecido como Hélio Negão ou “Negão Bolsonaro” (Figura 2). O mote elegido por Lopes para promover sua candidatura resume bem o processo de ocultamento da diversidade operada pelo populismo de extrema-direita : “minha cor é a cor do Brasil”. Na direção oposta àquela traçada pelos movimentos que lutaram, ao longo dos anos de 2010 e 2020, contra o racismo e por uma maior visibilidade e presença de pessoas pretas no poder público e na sociedade, Hélio Lopes eclipsa sua cor e a história de opressão e resistência que ela encarna. O preto é escondido. Mais do que isso : ele só pode existir se se confundir com as cores do Brasil, com o verde-amarelo da bandeira.

Figura 2. Minha cor é a cor do Brasil.
Fonte: @depheliolopes

Outro caso é representado pela live de Bolsonaro em suas redes sociais de 26 setembro de 2019, com Ysani Kalapaio, mulher indígena do Xingù (Figura 3). Ao seu lado, encontra-se outra mulher, interprete de Libras, a língua de sinais brasileira. Em um determinado momento, Bolsonaro afirma: “Qual é a diferença dessas duas aqui? O que tem dentro desta cabeça aqui [da intérprete de Libras] ? A mesma coisa que tem dentro desta cabeça aqui [Ysani Kalapaio]. Temos duas mulheres, dois seres humanos que são iguais, inclusive são brasileiras”. Mais uma vez, a especificidade é cancelada, esquecida. Para Bolsonaro não importa que os povos originários sejam diversos e tenham exigências particulares justamente pelo fato de serem povos originários, “outros” em relação aos brasileiros brancos de origem europeia. O que importa é o “igual”.

Figura 3. Minha cor é a cor do Brasil.
Fonte: @jairbolsonaro

Chegamos, aqui, a outras duas questões fundamentais. A primeira diz respeito à figura da nação, manifestadas pelas cores da bandeira, pelo hino nacional ou outros objetos aos quais é atribuída a capacidade de representar o país enquanto unidade indivisível. Trata-se, semioticamente, de uma figura que atua como um “espaço neutralizador”. É à nação, entidade bastante abstrata, que os populistas de extrema-direita se dirigem para encontrar um lugar capaz de aniquilar as diferenças concretas, constitutivas do povo brasileiro, na tentativa de obscurecer os traços distintivos de suas componentes. O que prevalece e tem que prevalecer é sempre e simplesmente o “todo”. As partes não podem falar por si, mas apenas pela totalidade que as engloba.

A segunda questão, decorrente da primeira, tange às hierarquias presentes no nacionalismo-populista, disfarçadas por uma suposta presunção de igualdade entre as partes que compõem o todo-nação (brancos, pretos, indígenas e a assim por diante). O que Bolsonaro aparenta dizer em sua fala sobre os cérebros iguais de Ysani Kalapaio e da intérprete de Libras é que seu governo trata as duas da mesma maneira, que ambas possuem, como brasileiras, os mesmos direitos, o mesmo espaço. No entanto, por baixo da superfície da narrativa bolsonarista, escondem-se estruturas de poder sedimentadas, que ele contribui a reforçar. O “todo-nação” não é um espaço aberto e democrático onde as partes se equivalem e têm as mesmas garantias e privilégios, mas um espaço onde uma parte específica — a saber, o homem-branco — impôs seus valores, cores, figuras e traços plásticos como “normais”, identificando como “sujeitos desviantes” aqueles que fogem das regras por ele estabelecidas. No Brasil de Bolsonaro, ser indígena, negro, trans, entre outras possíveis identidades, significa se submeter aos ditames do homem branco. Parafraseando a declaração de Bolsonaro acima citada, as partes têm que se curvar ao todo. Um todo, que, entretanto, não é inclusivo, mas exclusivo e autoritário, um todo que define arbitrariamente que seus critérios são os melhores e os maiores, que obriga o outro a se conformar e exclui quem não se conforma. Por isso parece possível e, creio, necessário falar do “povo nacional” concebido pelo populismo de extrema-direita não apenas como uma “totalidade integral”, mas também como uma “totalidade integralista”, regida, conforme aponta Landowski, pela sintaxe da programação (que regulamenta os comportamentos de suas unidades para que sejam todas iguais) e por práticas de assimilação.

3. Rumo à esquerda : elogio do complexo e do plural

No documentário L’Abécédaire de Gilles Deleuze, o filósofo define o que, para ele, significa “ser de esquerda” :

Ser de esquerda é ser ou devir minoria. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda. Por uma razão muito simples : a maioria é algo que supõe (...) a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é : homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar esse padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem nesse padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho etc. As mulheres vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a esse padrão. Mas, ao lado disso, o que há ? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir animal. As crianças também têm um devir criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários. Só os homens não têm devir homem. Não, pois é um padrão majoritário (...). Ser de esquerda é isso : saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir.8

8 G. Deleuze, “L’abécédaire de Gilles Deleuze”, entrevista a Claire Parnet, Paris, Video Edition Montparnasse, 1996 (trad. nossa).

Quero partir dessas considerações, e de alguns exemplos concretos também extraídos do cenário político brasileiro, para traçar um caminho que possa contribuir prática e concretamente a elaborar princípios semióticos suscetíveis de projetar o povo como um sujeito político complexo e plural, oposto àquele do populismo de extrema-direita antes descrito.

Em sua reflexão, Deleuze evidencia um ponto chave do discurso populista : a redução da diferença a um padrão que, sem nenhum direito, se autoafirma como “norma” e “maioria” — no ocidente, o padrão do homem adulto, macho, cidadão (“de bem”, poder-se-ia acrescentar utilizando outra formula abusada pelo bolsonarismo, branco, hétero, e assim por diante). Ser de esquerda, contina Deleuze, é exatamente o oposto. É se tornar minoritário, abraçar a minoria como filosofia e horizonte do político. Isso significa, antes de tudo, a recusa de um padrão ao qual partes que compõem uma dada comunidade — seja um coletivo estudantil, seja uma nação — deveriam se conformar. Ao contrário, quem se diz de esquerda deveria optar pela coexistência do diverso, pelo pluralismo, pela complexidade, pelo destaque da especificidade de cada uma das unidades na construção do todo. Como afirma Landowski, é preciso considerar o outro como “simplesmente outro”, se abrir ao seu potencial, ainda que não se enxergue nele nada de próximo ou similar :

O outro, simplesmente outro : esse é o núcleo de uma configuração que, paradoxalmente, talvez não seja a mais fácil de compreender. Ver o outro como simplesmente outro é, em primeiro lugar, deixar de focar nas diferenças óbvias e avaliá-las, algumas como bem-vindas, outras como no máximo toleráveis, ou pior, injustificáveis, insuportáveis, inadmissíveis. E, em vez disso, antecipar a presença de um potencial sui generis a ser descoberto em seu parceiro, ao qual se deve, portanto, dar a possibilidade de se revelar e cuja atualização, longe de prejudicar as potencialidades que se acredita possuir, poderia muito bem, pelo contrário, condicionar seu desenvolvimento, acionando um jogo de estímulos e respostas mútuas.9

9 “Uma gramática da alteridade”, art. cit., p. 7 (trad. minha).

Como dar corpo a essa declaração de intenções ? Para responder a essas perguntas, vamos começar traçando de maneira mais clara e esquemática os fundamentos semióticos que devem reger o processo de construção do “povo” em uma perspectiva de esquerda.

Em primeiro lugar, é preciso abandonar a lógica da “totalidade integral”. Do ponto de vista de uma esquerda que olha para o outro enquanto simplesmente outro, o coletivo deve ser entendido como uma “totalidade partitiva”, isto é, como um todo formado por partes que mantém a sua identidade, conforme proposto por Greimas e Landowski10. Essa, contudo, é uma condição mínima, que é preciso complementar teórica e metodologicamente. No modelo proposto pelos semioticistas falta ainda, à totalidade partitiva, um princípio de articulação que funde e alimente seu devir enquanto grupo.

Ora, tal princípio pode ser procurado no conceito semiótico de “participação”, assim como proposto inicialmente por Hjelmslev em suas postulações a respeito das “oposições participativas”11. No caso das “oposições participativas” não estamos diante de relações semânticas exclusivas (A vs não A), mas de liames nos quais o valor de cada elemento linguístico se constrói pela participação com os valores que a eles se opõem (A vs A + não A). Conforme aponta Claudio Paolucci, a quem se deve uma releitura do conceito hjelmsleviano finalizada à reflexão sobre a categoria de “pessoa”, “as oposições participativas propõem um modelo alternativo e uma solução para a incapacidade tipicamente ocidental de definir as coisas — entes, objetos, categorias — sem negar o seu contrário”12.

10 “Análise semiótica de um discurso jurídico”, op. cit., p. 86.


11 Cf. L. Hjelmslev, Nouveaux essais, Paris, P.U.F., 1985.


12 C. Paolucci, Persona : soggettiva nel linguaggio e semiotica dell’enunciazione, Milano, Bompiani, 2022.

Uma construção semiótica do “povo” oposta àquela do populismo de extrema-direita deve fazer desse princípio seu norte. Como é possível perceber, estamos muito além do estado de coisas descrito pelo conceito de “totalidade partitiva”. O que ganha forma aqui é um todo onde as partes não apenas convivem ao lado uma das outras preservando suas respectivas particularidades, mas onde elas “participam”, “cooperam” e “co-criam” enriquecendo-se reciprocamente, para retomarmos os termos de Landowski apresentados incialmente na descrição de sua gramática da alteridade. Em suma : a totalidade que emerge aqui não é uma mera totalidade partitiva, mas uma verdadeira “totalidade participativa”. O povo de esquerda há de ser uma rede de alteridades em conexão, cada uma das quais age diretamente na construção das outras e, consequentemente, do coletivo que as engloba, um coletivo construído não mais verticalmente, mas horizontalmente.

Nesse quadro, o que se sobressai é a lógica da complexificação, oposta àquela da neutralização. No povo assim pensado e elaborado, as alteridades marcam sua presença, pronunciam seus nomes, destacam suas peculiaridades e buscam “planos de traduzibilidade” onde as diferenças possam co-existir e se conectar.

Um exemplo de um discurso que segue esse principio é representado pelos tweets abaixo, postados em 2021 por Guilherme Boulos, deputado federal do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Para ele, não existe apenas o “povo brasileiro”, mas o “povo da periferia”, o “povo evangélico”, o “povo dos trabalhadores sem teto”, dos “sem terra”, “das cidades”, “do campo”, e assim por diante. Cada um desses sujeitos é explicitamente nomeado e tem um lugar específico na rede que ajuda a compor. Toda diferença é marcada e é diferença que faz o povo. O todo emerge pelas interdefinição das partes.

A nação, nesse caso, torna-se um espaço “complexificador”, que promove, multiplica e acolhe o diverso. Nela, as alteridades convivem e são valorizadas. É o que se viu na posse do governo Lula, em 1 de janeiro de 2023. A ideia de “Brasil” como uma “arquitetura da diferença” ganhou corpo seja no discurso pronunciado pelo presidente, seja, e de modo plástica e figurativamente emblemático, no ritual da entrega da faixa presidencial. Na ausência de Bolsonaro, ex-presidente que, como de praxe, deveria cumprir essa tarefa, foram 8 integrantes do povo brasileiro que passaram a faixa para Lula, entre os quais o Cacique Raoni, líder indígena Kayapó e Aline Sousa, mulher negra, catadora de recicláveis. Dessa forma, Lula valoriza e destaca a diversidade cultural e social do país, reconhecendo que a construção do povo nacional e do Estado Democrático de Direito deve levar em consideração as múltiplas vozes presentes na sociedade. Além disso, essa escolha pode ser vista como uma maneira de aproximar o Estado das demandas de grupos historicamente marginalizados e excluídos da política nacional. Nesse sentido, a cerimônia da posse do presidente Lula pode ser compreendida como um ritual político que reforça a ideia de um povo brasileiro plural e diverso, onde as diferenças são valorizadas e consideradas fundamentais para a construção de um projeto coletivo inclusivo e democrático. Nas palavras de Lula, isso queria significar que “Uma nac?a?o na?o se mede apenas por estati?sticas, por mais impressionantes que sejam. Assim como um ser humano, uma nac?a?o se expressa verdadeiramente pela alma de seu povo. A alma do Brasil reside na diversidade iniguala?vel [de sua] gente e [suas] manifestac?o?es culturais”13. Uma fala, aliás, que retoma a logomarca de seu segundo mandato, onde se destaca o solgan : “Brasil, um país de todos”.

13 L.I. Lula da Silva, Discurso de posse no Congresso Nacional, 01/01/2023.

Figura 4. Logomarca do Governo Federal (2007-2010).
Fonte : Governo Federal.

Conclusão

Em definitiva, o populismo de extrema-direita constrói discursivamente o povo com base nos seguintes critérios :

— o povo como massa indistinta de unidades idênticas ;

— totalidade integralista ;

— exclusão das alteridades que marcam sua diferença e não se assimilam ;

— lógica da neutralização ;

— a nação como espaço neutralizador onde se apagam as diferenças.

Ao contrário, em uma perspetiva da esquerda, as diretrizes que norteiam a construção do povo são outras :

— o povo como rede de alteridades em conexão ;

— totalidade participativa ;

— pluralismo e construção de planos de traduzibilidade locais entre sujeitos que preservam e reafirmam suas diferenças ;

— lógica da complexificação ;

— a nação como termo/espaço complexificador onde as diferenças convivem.

O que estou projetando aqui foi e continua sendo objeto de debate em outros campos do saber. A ideia de que o povo não é um sujeito homogêneo e que todas as diferenças não são reduzidas (nem reduzíveis, salvo alguma forma ou outra de repressão) a uma unidade, mas sim mantidas e articuladas em um processo de tradução, ou, nos termos por ela utilizado, foi recentemente defendida e desenvolvida, entre outros, por Chantal Mouffe. Para a filósofa :

Como uma vontade coletiva criada através de uma cadeia de equivalência, o povo não é um sujeito homogêneo em que todas as diferenças são reduzidas a uma unidade de alguma forma. Não estamos diante, como frequentemente afirmado, de uma “massa” em que todas as diferenciações desaparecem para criar um grupo totalmente homogêneo. Em vez disso, encontramo-nos dentro de um processo de articulação em que uma equivalência é estabelecida entre uma multiplicidade de demandas heterogêneas de uma forma que mantém a diferenciação interna do grupo.14

14 C. Mouffe, For a left populism, Londres, Verso, 2018 (trad. nossa).

A formação de um projeto coletivo não deve excluir as diversas vozes e identidades presentes na sociedade. Ao contrário, é necessário valorizar a heterogeneidade e buscar a construção de uma unidade que leve em conta as demandas e necessidades dos diferentes segmentos sociais. Nesse sentido, a reflexão sobre o fazer político a partir da valorização da diversidade se faz cada vez mais necessária. Uma sociossemiótica que se propõe a modelizar os modos de produção de sentido da identidade e da alteridade, do mesmo e do diverso, pode sem dúvida contribuir nessa tarefa elucidando as gramáticas e os outros processos que orientam esse processo.

 

Bibliografia

Deleuze, Gilles. “L’abécédaire de Gilles Deleuze”, entrevista a Claire Parnet, Paris, Video Edition Montpanasse, 1996.

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Greimas, Algirdas J., e J Courtés, Dicionário de Semiótica (1979), São Paulo, Contexto, 2008.

— e E. Landowski, “A construção de objetos semióticos. Análise semiótica de um discurso jurídico : a lei comercial sobre as sociedades e os grupos de sociedades”, in A.J. Greimas, Semiótica e ciências sociais (1976), São Paulo, Cultrix, 1981.

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Landowski, Eric, “Formas de alteridade e estilos de vida”, Presenças do outro. Ensaios de Sociossemiótica (1997), São Paulo, Perspectiva, 2002.

— “Uma gramática da alteridade”, texto de apresentação do Forum de discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, dez. 2021.

Mouffe, Chantal, For a left populism, Londres, Verso, 2018.

Paolucci, Claudio, Persona : soggettiva nel linguaggio e semiotica dell’enunciazione, Milano, Bompiani, 2022.

 


1 E. Landowski, “Uma gramática da alteridade”, texto de apresentação do Forum de discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, dez. 2021 (uma versão atualizada encontra-se no presente dossiê sob o título “Pour une grammaire de l’altérité”) ; id., “Formas de alteridade e estilos de vida”, Presenças do outro. Ensaios de Sociossemiótica (1997), São Paulo, Perspectiva, 2002. A.J. Greimas e E. Landowski, “A construção de objetos semióticos. Análise semiótica de um discurso jurídico : a lei comercial sobre as sociedades e os grupos de sociedades”, in A.J. Greimas, Semiótica e ciências sociais (1976), São Paulo, Cultrix, 1981.

2 “Formas de alteridade e estilos de vida”, op. cit., p. 49.

3 “Uma gramática da alteridade”, art. cit., p. 7 (trad. minha).

4 Para uma abordagem semiótica de bolsonarismo, cf. Y. Fechine e P. Demuru, Um bufão no poder. Ensaios sociossemióticos, Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2022.

5 A.J. Greimas e E. Landowski, “Análise semiótica de um discurso jurídico”, op. cit.

6 P. Demuru, “Simboli nazioni, regimi di interazione e populismo mediatico : prospettive sociosemiotiche”, Estudos Semióticos, 15, 1, 2019.

7 A.J. Greimas e J Courtés, Dicionário de Semiótica (1979), São Paulo, Contexto, 2008, p. 338.

8 G. Deleuze, “L’abécédaire de Gilles Deleuze”, entrevista a Claire Parnet, Paris, Video Edition Montparnasse, 1996 (trad. nossa).

9 “Uma gramática da alteridade”, art. cit., p. 7 (trad. minha).

10 “Análise semiótica de um discurso jurídico”, op. cit., p. 86.

11 Cf. L. Hjelmslev, Nouveaux essais, Paris, P.U.F., 1985.

12 C. Paolucci, Persona : soggettiva nel linguaggio e semiotica dell’enunciazione, Milano, Bompiani, 2022.

13 L.I. Lula da Silva, Discurso de posse no Congresso Nacional, 01/01/2023.

14 C. Mouffe, For a left populism, Londres, Verso, 2018 (trad. nossa).

 

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Résumé : Le présent article analyse les processus de construction de l’identité et de l’altérité dans le discours politique d’aujourd’hui. A cet effet, le cas du Brésil est pris pour objet en vue de comprendre comment la figure du « peuple brésilien » est conçue et élaborée respectivement par les représentants de l’extrême-droite populiste et par le large front conduit par Lula, vainqueur des élections présidentielles d’octobre 2022. Les résultats montrent que tandis que le populisme d’extrême-droite construit discursivement le peuple comme une masse indistincte d’unités identiques, excluant par là la manifestation des différences, le camp progressiste de gauche en fait un réseau d’altérités interconnectées, fondé sur le pluralisme et la pleine participation de la « diversité ».


Resumo : O presente artigo aborda os processos de construção da identidade e da alteridade no discurso político contemporâneo. Para tanto, parto do caso do Brasil, buscando compreender como a figura do “povo brasileiro” foi sendo concebida e confeccionada pelos campos da extrema-direita populista e da frente ampla liderada por Lula que venceu as eleições em outubro de 2022. Os resultados mostram que, enquanto o populismo de extrema-direita constrói discursivamente o povo como uma massa indistinta de unidades idênticas, excluindo os outros que marcam a sua diferença, o campo progressista de esquerda o projeta como uma rede de alteridades em conexão fundada no pluralismo e na participação do diverso.


Abstract : This article explores the processes of constructing identity and alterity in contemporary political discourse. In order to do that, I examine the case of Brazil, seeking to understand how the figure of “Brazilian people” was respectively developed and shaped by the populist far-right and the broad front led by Lula, who won the elections in October 2022. The results show that while far-right populism portrays the people as an indistinct mass of identical units, excluding others who mark their differences, the left-wing progressive discourse presents it as a network of alterities grounded on pluralism and participation.


Riassunto : Il presente articolo pretende affrontare i processi di costruzione dell’identità e dell’alterità nel discorso politico contemporaneo. A tal fine, esamino il caso del Brasile, cercando di capire come la figura del “popolo brasiliano” è stata sviluppata dai campi del populismo di estrema destra e della coalizione ampia guidata da Lula che ha vinto le elezioni nell’ottobre 2022. I risultati mostrano che mentre il populismo di estrema destra costruisce discorsivamente il popolo come una massa indistinta di unità identiche, escludendo coloro che rimarcano le proprie differenze, il campo progressista di sinistra lo presenta come una rete di alterità in connessione.


Mots clefs : altérité vs identité, diversité, peuple, populisme, totalité (intégrale, partitive, participative).


Auteurs cités : Gilles Deleuze, Louis Hjelmslev, Algirdas J. Greimas, Eric Landowski, Chantal Mouffe, Claudio Paolucci.


Plan :

Introdução

1. Uma gramática da alteridade

2. Identidade e alteridade no populismo de extrema-direita

3. Rumo à esquerda : elogio do complexo e do plural

Conclusão

 

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Recebido em 13/02/2023. / Aceito em 13/04/2023.