Dossier — Altérité / Diversité

Face à diversidade brasileira,
as disputas políticas em torno
da cultura

Yvana Fechine
Universidade Federal do Pernambuco,
São Paulo, Centro de Pesquisas Sociossemióticas

Maria Eduarda da Mota Rocha
Universidade Federal do Pernambuco

 

Publié en ligne le 30 juin 2023
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2023n5.62455
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Introdução

Como as relações de identidade e alteridade entre distintos grupos sociais determinam práticas políticas ? O propósito deste artigo é trazer, mediante uma abordagem sociossemiótica, elementos para compreendermos os embates entre os projetos ideológicos da Esquerda e da Extrema-direita no Brasil, especialmente na cultura, campo por excelência das disputas entre o que seria uma “identidade nacional” e o que é, de fato, a diversidade brasileira. A particularidade da abordagem aqui apresentada é partir de duas categorias do nível fundamental da produção de sentido — identidade e alteridade — para chegar a uma sintaxe das práticas políticas capaz de lançar luz sobre os processos interacionais subjacentes aos posicionamentos ideológicos. São estas práticas, umas mais democráticas, outras mais autoritárias que adubam políticas públicas apoiadas em uma maior diversidade ou, ao contrário, mais uniformizantes. É na concepção das políticas culturais — e, nelas, o que se concebe como identidade nacional — que estas disputas se traduzem, dando lugar ao apelo ao sectarismo ou à busca de diálogo. Efetivamente, em uma perspectiva semiótica, parece possível identificar no nível mais abstrato de qualquer fazer político um intricado jogo de correlações e gradações entre identidades e alteridades que sustenta práticas autoritárias ou democráticas. É sobre este jogo que a semiótica pode lançar alguma luz, pensando a diversidade “estruturalmente” como termo complexo de uma sintaxe definida em torno de relações de igualdade e diferenças, que estão “na base” de práticas interacionais também na política, seja no passado ou no presente.

1. Identidade nacional, diversidade e cultura :
os termos da discussão

Ao longo do século XX, as políticas culturais do governo brasileiro se tornaram uma variável importante no jogo político, elaborando e legitimando imagens do país, esvaziando outras representações possíveis e, deste modo, reforçando posições nos campos político e cultural, enfim, se tornando um objeto privilegiado para pensar a própria dinâmica da sociedade. Pensando o contexto mais recente, é possível mapear o campo político a partir da antítese entre os termos “Diversidade” e “Nação”, mas é no plano cultural que esta oposição deita raízes. A partir dos anos de 1930, quando as políticas culturais foram se institucionalizando, a prática modernista de problematizar a identidade nacional foi incorporada à tradição do “nacional-popular”1, para a qual a figura do “povo” era indispensável, objeto de preocupação do Estado, dos produtores culturais da nascente indústria e até mesmo das vanguardas estéticas esquerdistas2.

1 Cf. L.G. Barboza, “A agonia do nacional popular”, Novos Rumos, 56, 2, 2019. J. Wisnik, O nacional e o popular na cultura brasileira — música, São Paulo, Brasiliense, 1982.


2 Cf. M. Ridenti, Em busca do povo brasileiro — artistas da revolução, do CPC à era da TV, Rio de Janeiro-São Paulo, Record, 2000.

Em um primeiro momento, tratava-se de oferecer gêneros e produtos nos quais os diferentes tipos sociais que afluíam para compor o “povo brasileiro” pudessem se reconhecer, a partir da reelaboração de suas matrizes culturais de origem, como na relação entre a música ritual das religiões afro-brasileiras e o samba. O cinema e a música podiam ser, então, a fonte de reconhecimento em uma situação social complexa e cambiante, mas a lógica de apropriação das diferentes produções culturais tendia a diluir o lugar de origem de cada uma delas, esfumaçando, por exemplo, a marca da negritude no componente da brasilidade.

Além disso, foi demorada a própria legitimação dessas produções como dignas da nacionalidade, já que o modo de incorporação das culturas populares privilegiou, em um primeiro momento, a sua conversão em matéria-prima para a composição de obras eruditas pelos artistas de vanguarda ou o seu engessamento sob a forma estanque da tradição pelo folclorismo. Analisando, por exemplo, a produção musical brasileira da primeira metade do século XX, Wisnik aponta uma aliança entre estes dois polos da produção cultural na instituição de uma linha “sanitário-defensiva” que deveria demarcar claramente os limites entre a música “boa” e a “ruim”3. Tínhamos, de um lado, a aliança entre esses polos privilegiados pelo Estado em suas políticas e, de outro, a música popular urbana comercial e a erudita europeizante, que não se prestavam àquela apropriação, descartadas porque não passavam no teste de autenticidade quanto ao seu caráter nacional. Desde a era do Rádio, nos anos 1940, a visão essencializante de “povo” levava ao descarte da produção musical comercial por aquele projeto ideológico do nacional-popular. Mas a ênfase no “povo brasileiro” como objeto preferencial da cultura se espalhou para além das políticas culturais do Estado e acabou penetrando a lógica de produção comercial, até culminar, por exemplo, na telenovela “brasileira”, que aos poucos encontrava uma tonalidade própria em contraste com a soap opera estadunidense e com outras vertentes latino-americanas.

3 J. Wisnik, op. cit., p. 134.

A descoberta do “povo” tampouco ficou restrita a um lado do espectro político. Desde a década de 1950, a sua representação sofreu uma inflexão entre os artistas e intelectuais de diferentes posições ideológicas e o conceito de cultura passou a ser associado também à transformação social. Mesmo após o golpe militar de 1964, quando refluíram as atividades destes grupos, uma gama de conceitos políticos e filosóficos forjados naquela época encontrou popularidade nos setores de esquerda4. Em ambos os lados do espectro político, portanto, encontrávamos uma concepção tradicionalista de “povo”.

4 Cf. R. Ortiz, A moderna tradição brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1988.

Durante a Ditadura, o Estado consolidou os mecanismos para fazer da cultura o espaço de afirmação de sua hegemonia, que passava pela unificação de um mercado de bens simbólicos e pela integração nacional, tentando reunir todas as diferenças regionais, culturais e políticas, em torno de um projeto de desenvolvimento. Assim, a cultura é meio de integração sob constante controle. Nas últimas décadas do século XX, a visão de uma identidade brasileira estanque passa a ser cada vez mais problematizada a partir de sua associação ao Regime Militar, em um contexto no qual novas gerações de produtores culturais se abriam para um mercado mundial e estabeleciam conexões que podiam prescindir do “nacional”.

Nesse momento, merecem destaque as pesquisas do antropólogo Hermano Vianna sobre o funk carioca e as festas de subúrbio agora em sua fase “hip hop” : ele tornou-se uma espécie de “tradutor” do funk para a Zona Sul, levando discoteca?rios para tocar la? e dando opiniões aos DJs5. Por esta atuação, Vianna foi convidado a compor o Núcleo Guel Arraes da TV Globo, no qual um projeto de “visibilidade estético-política da periferia” tomou forma e se manifestou em diferentes produtos, como o Central da Periferia, o Programa Legal e o Esquenta6.

5 H. Vianna, O baile funk carioca, Dissertação de Mestrado, PPGAS, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1987, p. 5


6 Cf. M.E. Rocha, “O Núcleo Guel Arraes, da Rede Globo, e a consagração cultural da ‘periferia’”, Sociologia & Antropologia, 3, 2013. O diretor de TV e Cinema Guel Arraes, filho de uma importante liderança de esquerda, que fugiu do país com a família depois do Golpe Militar, trabalhou com o conhecido etnólogo e documentarista francês Jean-Rouch antes de retornar ao Brasil.

Desde as décadas de 1960 e 1970, a ampliação de mercados culturais nos quais passaram a circular o rock e a música negra estadunidense teve um papel importante na disseminação destes ritmos no Brasil, até o ponto em que eles passaram a ser produzidos e reelaborados também no país. O adensamento desta cultura pop é uma condição material importante para a compreensão desta geração, que passou a utilizar estes ritmos para se diferenciar do nacionalismo, já muito associado ao Governo Militar. A democratização dos 1980 e 1990 abriu espaço para o questionamento do que Yúdice chamou de uma “cultura do consenso”, que transformou o samba, o pagode, a capoeira, o candomblé e a umbanda em símbolos de uma certa identidade nacional, contestada especialmente pelos movimentos de periferia da juventude negra7.

7 G. Yúdice, A conveniência da cultura — usos da cultura na era global, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2004.

Enquanto outros setores continuam investindo no nacionalismo cultural, inclusive a pro?pria Globo, a “juventude subalterna” abriu novos caminhos em contato com formas culturais transnacionais, nem sempre de maneira ta?o politizada quanto o rap. Yúdice sustenta que a diversificação das culturas jovens é, em si mesma, a reivindicação de uma diferença no interior da “cultura do consenso”, de um espaço próprio que não seja subsumido à identidade nacional.

De certa maneira, as políticas culturais do governo Lula (2003-2006 e 2007-2010) institucionalizaram essa concepção de cultura, ao ampliarem o espaço para o financiamento de experiências que não se resumem à produção erudita ou que podem ser subsumidas à chave da identidade nacional. Desde o seu discurso de posse, em 2003, o titular do Ministério da Cultura (MinC), Gilberto Gil deixou clara a nova concepção que deveria nortear a atuação do Estado : cultura deveria contemplar a produção constante de significados, hábitos, valores e identidades que surgem a partir das interações sociais8. Tal concepção acabou reverberando no Plano Nacional de Cultura, que diz :

A Cultura não se resume tão-somente ao campo das belas-artes, da filosofia e da erudição, nem tampouco ao mundo dos eventos e efemérides. A Cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos que caracterizam um determinado grupo social. Além das artes, da literatura, contempla, também, os modos de vida, os direitos fundamentais do homem, os sistemas de valores e si?mbolos, as tradições, as crenças e o imaginário popular.9

8 Discurso do ministro Gilberto Gil na solenidade de transmissão do cargo, Brasília, 2 de jan. de 2003, http://www.cultura.gov.br/site/categoria/o-dia-a-dia-da-cultura/discursos/.


9 Ministério da cultura, Plano Nacional de Cultura, 2009, p. 5.

Temos, assim, duas nuances : primeiro, uma visão mais ampla do que poderia ser financiado ; segundo, a função identitária da cultura não necessariamente se projeta na direção do nacionalismo. Tal concepção antropológica de cultura apareceu no cenário mundial associada à ideia de diversidade apregoada pela UNESCO, que havia conferido à área cultural uma maior densidade institucional, a partir de uma série de convenções, declarações e outros instrumentos jurídicos. No âmbito desta instituição, tomou corpo um grande apelo a novas políticas públicas de cultura que pudessem promover a identidade e a diversidade cultural, frente à padronização decorrente dos avanços das indústrias culturais e da globalização. Esse processo teve seu auge com a aprovação, em 2001, do texto da Declaração Universal Sobre a Diversidade ; e depois com a aprovação da Convenção Sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, em 2005. Alves lembra que o governo brasileiro apareceu como protagonista no processo de aprovação da convenção a partir de dois interesses10 : primeiro, a necessidade de incorporar à estrutura da administração cultural o valor da diversidade cultural, inserindo-o em políticas culturais voltadas para as culturas populares ; e, segundo, a liderança na formação de um novo discurso que passa pela consolidação de novas categorias como indústrias da criatividade, diversidade cultural, patrimônio imaterial etc.11. No Plano Nacional de Cultura em 2009, a questão da diversidade aparece em destaque, com a adoção de um novo referencial conceitual acerca da compreensão da cultura :

10 E.P.M.Alves, A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina, Maceió, Edufal, 2011.


11 Cf. M. Santana e M. E. Rocha, “Do cânone modernista à noção antropológica de cultura : o conceito de cultura nas políticas culturais do governo Lula (2003-2011)”, Estudos de Sociologia, 24, 2019.

A diversidade étnico-cultural é a nossa riqueza : Que política cultural queremos para um País marcado por forte diversidade cultural, fruto de nossa formação histórico-social ? Entendida a diversidade cultural como a construção social e histórica das diferenças, como fazer para que as diferentes formas do fazer cultural dos variados grupos étnico-culturais estejam presentes no Plano Nacional de Cultura ? Como fazer para que a construção de uma política pública de cultura não tome a identidade nacional como um conjunto monolítico e único, mas que reconheça e valorize as nossas diferenças culturais, como fator para a coexistência harmoniosa das várias formas possíveis de brasilidade ? (p. 4).

Em contraste com uma visão mais plural de Brasil, começou a ganhar força, já no governo Temer, o discurso patriótico que embasaria a ascensão de Bolsonaro ao poder para a qual os ataques às diferenças nas redes sociais seria um combustível muito eficiente. Não por acaso, registrou-se no mesmo governo Temer as primeiras tentativas de desmonte institucional da área cultural, como o próprio MinC, que não foi extinto por causa da reação provocada, que entretanto, não conseguiu evitar os cortes orçamentários e os ataques aos Pontos de Cultura e ao Sistema Nacional de Cultura12.

12 C.G. Dias, A cultura que se planeja : políticas culturais, do Ministério da Cultura ao governo Bolsonaro, Rio de Janeiro, Mórula, p. 262.

Uma vez eleito Bolsonaro, avançaram o desmonte e a privatização, mas isso não pode ofuscar o quanto a área cultural foi estratégica na lógica de “guerra híbrida” que impulsiona este grupo político, cuja base é a “concretização da lógica moral que preconiza o extermínio da diferença, em consonância com o avanço predatório do capital13. Como explica Dias, “é na afirmação de uma postura unívoca diante da diferença que parece ser constituído o inimigo” (p. 245), e isso que se traduz na postura bélica do bolsonarismo em relação a tudo que diz respeito às pautas morais, especialmente aquelas ligadas ao ge?nero e à raça.

Voltaremos mais adiante (infra, secção 3) ao tratamento dado pelo bolsonarismo à cultura e ao modo como, justamente por ser se transformado em um “cenário de batalha”, esta recebeu do terceiro mandato de Lula, em contraposição, um lugar privilegiado, inclusive em termos de orçamento. Por ora, nos interessa destacar o quanto há nos projetos personificados por Lula e por Bolsonaro um fazer político que se traduz de modo ainda mais direto nas políticas culturais, razão pela qual não se pode falar de diversidade brasileira sem considerá-las. Podemos entender melhor o fazer político destes distintos atores se levarmos em conta uma “gramática da alteridade” subjacente às suas práticas.

13 C.G. Dias, op. cit., pp. 264-265.

2. Uma “gramática da alteridade”

Nosso ponto de partida é o modelo apresentado por Eric Landowski no ensaio “Formas de alteridade e estilos de vida”, publicado na França em 1997 e posteriormente no Brasil no livro Presenças do outro, em 2002. O modelo foi depois reformulado e apresentado em palestra proferida no Fórum de Discussões do Centro de Pesquisas Sociossemióticas em dezembro de 2021 na forma de uma “gramática da alteridade” articulada em torno da oposição entre o “mesmo” e o diferente, o “outro”14. Do ponto de vista lógico, só pode haver diferença e, em outros termos, alteridade, entre dois elementos que sejam comparáveis em relação a um mesmo aspecto — interesses, valores, visões etc. — que em função disso podem entrar em relação. Desse modo, um deles pode, nas práticas interacionais, aparecer como um “outro” ou, na perspectiva contrária, como idêntico a si. Mas, como explica Landowski, existem gradações entre estas posições :

14 “Une grammaire de l’altérité”, 2021, cópia cedida pelo autor. Uma versão atualizada encontra-se no presente volume.

Entre, por um lado, um parceiro que seria considerado como potencialmente idêntico a si mesmo e tratado como tal, ou apenas semelhante, e, por outro lado, um interagente que, apesar de uma comunidade de pertencimento subjacente mínima, seria considerado como completamente diferente de si mesmo, ou simplesmente como outro, todas as gradações da relação imaginária de distância-proximidade são possíveis. (2021, tradução livre).

É com base nessas gradações e correlações que o autor constrói uma “gramática”, organizada na forma de um quadrado semiótico15, que nos servirá como referência para propor, logo a seguir, o que podemos considerar também como uma sintaxe fundamental de práticas políticas definida a partir do contexto brasileiro.

Esquema 1. “Gramática da alteridade” proposta por E. Landowski (2021).

15 Este quadrado é uma representação visual das relações de contrariedade (eixos horizontais) e de contradição (eixos diagonais) constitutivas de uma dada categoria semântica.

Partindo deste modelo para pensar as práticas políticas, e obedecendo a sua lógica, é preciso definir qual o aspecto em relação ao qual distintos atores podem ser comparáveis. No contexto político brasileiro, a disputa foi claramente assumida como um embate entre posições ideológicas, de uma Esquerda democrática e de uma Extrema-direita autoritária16 encarnadas, respectivamente, pelos dois grandes adversários na eleição presidencial de 2022 : Bolsonaro e Lula. É, portanto, quanto a este mesmo aspecto — o dos posicionamentos ideológicos, sobretudo aqueles concernentes às pautas morais e à cultura — que nos propomos a pensar o fazer político destes líderes e seus apoiadores, tomando identidade e alteridade como categorias de base de um projeto de país orientado pela valorização ou desvalorização da diversidade em suas variadas formas de manifestação sociocultural. Cabe antes definir o que estamos tratando como “ideologia”. A abordagem semiótica a define como uma visão de mundo ancorada em construções discursivas correspondentes a cada formação social :

A partir do nível fenomênico da realidade, constroem-se as ideias dominantes numa dada formação social. Essas ideias são racionalizações que explicam e justificam a realidade. (...) A esse conjunto de ideias, a essas representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com outros homens é o que comumente chamamos de ideologia (...) A ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade. Não é um conjunto de ideias que surge do nada ou da mente privilegiada de alguns pensadores. (...) cada uma das visões de mundo apresenta-se em um discurso próprio.17

16 Esta dicotomia não dá conta de toda a complexidade política do Brasil, mas são as designações pelas quais os campos ideológicos em torno de Bolsonaro e Lula vêm sendo genericamente identificados por comentaristas políticos. Seguiremos o mesmo caminho. Estamos tratando da disputa entre um projeto democrático (associado hoje ao que chamamos de Esquerdas) e um outro autoritário (identificado à Extrema-direita).


17 J.L. Fiorin, Linguagem e ideologia, 7ª ed., São Paulo, Ática, 2002, pp. 28-31.

Com a preocupação de refletir sobre o fazer político de Bolsonaro e Lula, nosso ponto de partida é pensar a identidade e a alteridade entre estas lideranças e seus apoiadores, a partir das semelhanças e diferenças entre seus posicionamentos ideológicos, notadamente na concepção e tratamento dado à cultura na “guerra híbrida” deflagrada pela Extrema-direita. Em política, como em qualquer outro domínio, para pensar semelhanças e diferenças é necessário também considerá-las em suas gradações. Semelhanças e diferenças nem sempre são totais, mas podem ser apenas parciais. No caso que nos interessa, podemos ter uma semelhança ideológica, de certo modo, total ou parcial e, igualmente, uma diferença ideológica total ou parcial.

Com isso chegamos à construção de outro quadrado semiótico que, inspirado no modelo de Landowski, pode ser tratado como uma sintaxe fundamental das práticas políticas, partindo das relações entre identidade / alteridade e igualdade / diferença. Este novo quadrado semiótico nos permite organizar os posicionamentos ideológicos associados a práticas interacionais ora mais democráticas ora mais autoritárias. No eixo superior, temos um posicionamento totalmente igual contrário ao posicionamento totalmente diferente ; no inferior, um posicionamento parcialmente igual contrário ao posicionamento parcialmente diferente. Na estrutura relacional do quadrado semiótico, podemos ainda considerar que um posicionamento totalmente igual corresponde, logicamente, à negação de um posicionamento parcialmente diferente. A mesma relação de contradição opõe um posicionamento totalmente diferente a um posicionamento parcialmente igual.

Esquema 2. Proposta de sintaxe fundamental das práticas políticas.

Não ignoramos que os comportamentos dos sujeitos históricos e reais não são rigorosamente idênticos ou inteiramente diferentes, visto que a origem social e a trajetória pessoal de cada um estão implicadas em seus posicionamentos. O emprego aqui dos termos “total” ou “totalmente” remete, no entanto, ao alinhamento estreito com um determinado projeto político e, evidentemente, com as posições ideológicas gerais que o sustentam. Não pressupomos, no entanto, condutas “matematicamente” definidas, embora haja um certo “automatismo” nessas interações de caráter totalizante. Estas correspondem ao que Landowski, em Interações arriscadas, trata como interações “programadas” em função, entre outras coisas, do seu dogmatismo18. É com este significado, que remete ao dogmatismo ideológico, que a ideia de “totalidade” (totalmente igual ou diferente) é entendida na nomeação e descrição das categorias dispostas nos polos do quadrado semiótico do Esquema 2.

Definidas nossas categorias “de base”, a partir de uma sintaxe da identidade e alteridade, chegamos ao ponto em que podemos correlacioná-las com as práticas interacionais políticas. Comecemos então por nos perguntar o que significa identidade do ponto de vista do fazer político. No contexto histórico brasileiro cabe ressaltar que a noção de “identidade nacional”, tal como foi apropriada desde os anos 60 por projetos políticos sustentados pelas Forças Armadas, possui uma correspondência imediata com o polo do “totalmente igual”, uma vez que foram — e ainda são — histórica e socialmente ancorados na negação das diferenças de classe e raça19. Trata-se, antes como hoje, de uma condição na qual, como adiantamos, há um posicionamento ideológico totalmente alinhado com as propostas, crenças e valores do seu líder, a partir do qual se constitui um sujeito coletivo, que se manifesta como um grupo ou corrente políticos homogêneos. Qualquer dissonância maior com este ideário transforma o adepto em um dissidente que pode, imediatamente, ser jogado no polo contrário, aquele em que se encontra o inteiramente “outro”, aquele cujo posicionamento é totalmente diferente e em relação ao qual este se coloca em completa alteridade, chegando a alçá-lo à condição mesma de “inimigo”. O que temos neste caso, portanto, são comportamentos ancorados em concepções que estamos considerando como totalizantes : ou o sujeito “é visto como idêntico a si” ou “é visto como inteiramente outro”20.

18 O modelo que apresenta Landowski também estabelece a relação das categorias propostas na “gramática da alteridade” com quatro regimes de interação e sentido : a programação, o assentimento, a manipulação e o ajustamento (cf. Interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014). Reservaremos, no entanto, esta discussão para trabalhos futuros por julgar que envolveriam um percurso argumentativo maior que o pretendido nos limites deste artigo.


19 Antes mesmo da Lei de Segurança Nacional de 1969, em 1965, a portaria que transferiu o Contel, conselho responsável pela fiscalização e censura dos meios de comunicação, para o Departamento Federal de Segurança Pública, evidenciava os critérios em nome dos quais o controle seria feito durante a Ditadura : o “fortalecimento da moral nacional”, o propósito de evitar conflitos, o fomento de sentimentos cívicos, a defesa da ordem. Ela listava 23 tipos de transgressões relacionadas à moral e à política, estabelecendo penas para a veiculação de mensagens que incitassem a sensualidade ou lutas de classe e raciais. Cf. O. Jambeiro, A TV no Brasil do século XX, Salvador, Edufba, 2001, p. 82 e ss.


20 É importante ressalvar também que o emprego do termo “totalizante”, neste texto, não remete aos regimes políticos totalitários, caracterizados pelo controle absoluto de um partido ou de um líder sobre toda nação, apoiados sobre um forte militarismo, pela doutrinação, intimidação e violência contra os dissidentes. Há, no entanto, uma proximidade inegável das práticas identitárias aqui descritas com o tipo de autoritarismo político dos regimes totalitários.

É a “lógica” da totalidade — “todo igual” ou “todo diferente” — que está na base das práticas interacionais que conduzem, em última instância, à polarização entre as forças políticas que apoiam tanto Bolsonaro quanto Lula. É importante, no entanto, não incorrer no erro cometido, deliberadamente ou não, por muitos comentaristas políticos da chamada “grande mídia” ao tratar como equivalentes as posturas e comportamentos de apoiadores de um ou de outro. É possível, sim, apontar a mesma “lógica” da totalidade em posicionamentos e práticas de seguidores mais ardorosos de Lula (“lulistas de carteirinha”) e de Bolsonaro (“bolsonaristas-raiz”), mas é preciso distingui-los quanto aos projetos, “métodos” e gradações, ou seja, ao modo como manifestam suas posições.

Não por acaso os adeptos da Extrema-direita foram protagonistas de numerosos casos de perseguição e de violência política contra opositores, sobretudo, em 2022, ano da disputa presidencial21. Isso ocorre porque suas práticas interacionais são diretamente influenciadas pelo sectarismo dos seus líderes que, ao mesmo tempo, resulta ou impulsa seus projetos políticos autoritários. Enquanto o governo e a campanha à reeleição de Bolsonaro foram marcados pelos discursos de ódio, fartamente denunciados pela própria mídia que antes o havia apoiado, Lula direcionou seus esforços para se mostrar como aquele que promove o amor, a união, a esperança22. Não dá para ignorar que há igualmente sectarismos e práticas autoritárias entre as Esquerdas, mas estes não podem ser propriamente atribuídos ao projeto político ou persona do seu líder.

21 Um dos casos mais extremos de violência política foi o assassinato de Marcelo Arruda, dirigente do PT em Foz do Iguaçu, em 9 de julho de 2022, pelo policial bolsonarista Jorge José da Rocha Guaranho.


22 Cf. https://www.poder360.com.br/eleicoes/propaganda-do-pt-mostra-opostos-com-bolsonaro-odio-ou-amor/.

Se a identidade ou alteridade radicais conduzem inevitavelmente a uma certa homogeneidade ideológica, a configuração de posições parcialmente semelhantes ou diferentes resulta, ao contrário, em uma maior diversidade de pensamento e a condutas mais próprias das práticas democráticas. É a heterogeneidade existente neste eixo que explica, por exemplo, a crítica livre que se observa mais entre as Esquerdas e que, não raro, levam às disputas que dividem esse campo político. A diversidade exige o convívio com o que é apenas parcialmente semelhante ou parcialmente diferente, ou seja, com a heterogeneidade. O “exclusivismo” e o “purismo” vão na direção contrária das práticas democráticas em qualquer âmbito. Definir os limites do que pode ser admitido como parcialmente igual ou diferente é parte do jogo político e das correlações de força entre os que estão ou os que almejam o Poder.

Se, como sustentamos antes, práticas identitárias ancoram práticas políticas, em que medida estas primeiras se “traduzem” também em diretrizes de Governo quando um líder chega ao Poder ? O segundo esquema apresentado mais acima já antecipa esta resposta na medida em que homologa as práticas autoritárias com a valorização da homogeneidade em posições ideológicas, que levam ao sectarismo, e, ao contrário, associa as práticas democráticas com a diversidade, que pressupõe uma maior abertura ao outro, ou mesmo a aceitação do outro como simplesmente outro. Quando buscamos responder a esta pergunta olhando para o contexto de enfrentamento entre Lula e Bolsonaro, a correlação entre as práticas identitárias e as diretrizes de seus governos fica bem evidente ao olharmos suas políticas culturais e seus discursos de posse no Congresso Nacional. Comecemos pelos discursos de posse porque neles já há uma espécie de “carta de intenções” do presidente empossado, o que inevitavelmente se reflete em suas políticas culturais.

3. Diversidade e uniformidade como diretrizes

Com a ascensão de Bolsonaro ao Poder o que se viu no Brasil foi a completa negação da diversidade e, em uma evidente contraposição — também em termos semióticos —, o que se instaurou em seus quatro anos de mandato foi o apelo ao sectarismo em suas diferentes formas de manifestação. O slogan adotado por Bolsonaro desde a campanha eleitoral e repetido no começo e no encerramento do seu discurso de posse já antecipava este valor : “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. Há nesta construção uma postura claramente autoritária que se expressa, de modo mais óbvio, pela imposição de determinados valores religiosos que perpassam a tríade “Deus, Pátria, Família” (aliás, uma única concepção de família). Mas, não se pode desconsiderar também o peso de palavras como “Tudo” e “Todos”, termos que por si sós já remetem a práticas com orientação totalizante. Isso fica bem-marcado no discurso quando ele deixa claro, no trecho abaixo, que seu governo privilegiará determinados segmentos : aqueles que comungam do seu “Deus”, o deus da tradição judaico-cristã e seus valores a serem conservados ; os que são contra a “ideologia de gênero”, já sinalizando o desrespeito com a população LGBTQI+ ; os que foram às ruas para fazer campanha para ele (responsáveis pelo “movimento cívico verde-amarelo”, como ele diz em outro momento do texto).

Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um País livre das amarras ideológicas. (...) Pretendo partilhar o poder, de forma progressiva, responsável e consciente, de Brasília para o Brasil ; do Poder Central para Estados e Municípios. Minha campanha eleitoral atendeu ao chamado das ruas e forjou o compromisso de colocar o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.23

23 Discurso de posse no Congresso Nacional, 01/01/2019.

Merece ainda destaque no trecho acima a frase em que ele promete que “O Brasil voltará a ser um País livre das amarras ideológicas”, compromisso que é reforçado quando afirma que livrará o Brasil da “submissão ideológica” ou que fará um Governo “sem viés ideológico”. Ora, se todos sabemos que não há sujeito sem ideologia e, muito menos governo, é evidente que Bolsonaro se refere diretamente ao combate a posições ideológicas de Esquerda que haviam sido atacadas e objeto de fake news fartamente denunciadas por agências de checagem. O discurso é, portanto, marcado por sectarismos de toda ordem que ficam ainda mais explícitos quando ele nomeia os grupos sociais que irá privilegiar — o “cidadão de bem” (designação que alude diretamente aos que defendem o punitivismo e o uso privado de armas), os policiais e os militares :

O cidadão de bem merece dispor de meios para se defender, respeitando o referendo de 2005, quando optou, nas urnas, pelo direito à legítima defesa. (...) Vamos honrar e valorizar aqueles que sacrificam suas vidas em nome de nossa segurança e da segurança dos nossos familiares. Contamos com o apoio do Congresso Nacional para dar o respaldo jurídico para os policiais realizarem seu trabalho. Eles merecem e devem ser respeitados ! (...) Nossas Forças Armadas terão as condições necessárias para cumprir sua missão constitucional de defesa da soberania, do território nacional e das instituições democráticas, mantendo suas capacidades dissuasórias para resguardar nossa soberania e proteger nossas fronteiras.

Para frear este ciclo autoritário, Lula precisou garantir a vitória na disputa eleitoral com um discurso de defesa da democracia e a construção de uma frente política ampla, que congregou muitos adversários políticos históricos, a começar pelo seu vice, Geraldo Alckmin. A promessa de um governo preocupado com a diversidade foi demonstrada já na escolha dos ministros e ocupantes de cargos administrativos diretos, nos quais há representatividade de mulheres, negros, povos originários e transgêneros. Em várias cerimônias oficiais que marcaram a troca de comando nos ministérios, a linguagem neutra foi empregada, dando mais uma sinalização da abertura do novo governo à população LGBTQI+. O recado mais eloquente foi dado na festa de posse em primeiro de janeiro de 2023 quando Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto com “representantes do povo” — uma criança negra, um indígena, um jovem com deficiência e uma catadora de lixo, que foi a escolhida para lhe entregar a faixa.

Posse de Lula (subida da rampa do Palácio do Planalto).
Fonte : Site oficial de Lula – www.lula.com.br

Os registros oficiais dos dois presidentes com os auxiliares do primeiro escalão também foram amplamente comparados nas redes sociais como prova da vocação uniformizadora no Governo Bolsonaro, traduzida na falta de representatividade dos diversos segmentos sociais, em contraposição à diversidade e maior representatividade sinalizada pelo Governo Lula na composição da sua equipe. Esta homogeneidade versus heterogeneidade revela-se, inclusive, na configuração plástica das fotos seguintes.

Fotos oficiais dos ministros de Bolsonaro e Lula em montagem comparativa nas redes sociais digitais. Fonte : Facebook.

No discurso de posse, ao prometer governar com uma frente mais ampla do que o campo político em que havia se formado, mas mantendo o “firme compromisso” com suas origens, Lula reconhece tacitamente o complexo jogo entre a não-identidade (com os novos aliados, que defendem bandeiras com as quais não comunga) e a não-alteridade (com os “companheiros” sindicalistas com quem mantém parte dos seus compromissos24), que caracterizam as práticas democráticas. Também no discurso de posse, fez questão de realçar o valor da diversidade, destacou a criação do Ministério da Igualdade Racial, do Ministério dos Povos Indígenas e a recriação do Ministério da Cultura, pastas nas quais o alinhamento entre práticas identitárias e políticas salta aos olhos. Como mostra o trecho abaixo, para ele, as práticas democráticas não admitem discriminações nem os sectarismos produzidos pela lógica da identidade ou da alteridade radicais (totais).

Uma nação não se mede apenas por estatísticas, por mais impressionantes que sejam. Assim como um ser humano, uma nação se expressa verdadeiramente pela alma de seu povo. A alma do Brasil reside na diversidade inigualável da nossa gente e das nossas manifestações culturais. (...) Estamos refundando o Ministério da Cultura, com a ambição de retomar mais intensamente as políticas de incentivo e de acesso aos bens culturais, interrompidas pelo obscurantismo nos últimos anos. (...) Uma política cultural democrática não pode temer a crítica nem eleger favoritos. Que brotem todas as flores e sejam colhidos todos os frutos da nossa criatividade. Que todos possam dela usufruir, sem censura nem discriminações.25

24 Um exemplo disso foram as críticas de Lula, durante a campanha, à reforma trabalhista aprovada no governo Michel Temer com a apoio das forças políticas que apoiaram a deposição da presidente Dilma Roussef em 2026, inclusive o seu vice, Geraldo Alckmin. Depois da repercussão negativa na coligação que o apoiava, ele retirou o termo “revogação” da reforma trabalhista do plano de governo, mas manteve a promessa de rever “medidas regressivas”, atendendo às pressões dos sindicatos. Cf. https://exame.com/brasil/lula-critica-reforma-trabalhista-apos-pt-prometer-revogacao/; https://noticias.r7.com/brasilia/critica-de-lula-a-reforma-trabalhista-repercute-mal-no-meio-empresarial-10112022; https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2022/06/14/coligacao-de-lula-tira-revogacao-de-reforma-trabalhista-de-plano-de-governo.htm.


25 Discurso de posse no Congresso Nacional, 01/01/2023 (grifos nossos).

Em outros trechos (abaixo), Lula admite que governar exige a construção de consensos em meio a “interesses divergentes” e, com isso, nada mais faz do que defender identidades e alteridades parciais como condição mesma do diálogo. Nisso reside, na sua práxis, o próprio exercício da democracia, e não é outra a razão pela qual ele associa o autoritarismo à própria negação da política :

Este processo eleitoral também foi caracterizado pelo contraste entre distintas visões de mundo. A nossa, centrada na solidariedade e na participação política e social para a definição democrática dos destinos do país. A outra, no individualismo, na negação da política, na destruição do estado em nome de supostas liberdades individuais. A liberdade que sempre defendemos é a de viver com dignidade, com pleno direito de expressão, manifestação e organização. A liberdade que eles pregam é a de oprimir o vulnerável, massacrar o oponente e impor a lei do mais forte acima das leis da civilização. O nome disso é barbárie. (...) Reafirmo, para o Brasil e para o mundo, a convicção de que a Política, em seu mais elevado sentido – e apesar de todas as suas limitações – é o melhor caminho para o diálogo entre interesses divergentes, para a construção pacífica de consensos. Negar a política, desvalorizá-la e criminalizá-la é o caminho das tiranias26.

26 Grifos nossos.

Se os discursos de posse de Lula e de Bolsonaro mostram o quanto suas práticas políticas espelham suas práticas identitárias, o modo como se despedem torna isso ainda mais evidente ao realçar o caráter inclusivo ou excludente dos seus pronunciamentos. Enquanto a saudação final de Lula é “Viva o povo brasileiro”, dirigindo-se indistintamente a todos os segmentos sociais, Bolsonaro reafirma o slogan de campanha, “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, que exclui a parte da população que não acredita em Deus ou no seu Deus que, estando “acima de todos” autorizaria “tudo” que é feito e/ou dito em seu nome pelo presidente27.

27 Cf. T. Leite e K. Leite, “Slogan, fe? e po?s-facada : a construção discursiva de um ‘milagre’”, Tempo da Ciência, 28, 56, 2021 (https://e-revista.unioeste.br/index.php/tempodaciencia/article/view/29047).

A concepção inclusiva ou excludente daqueles para quem o presidente empossado se dirige sinaliza, consequentemente, a maior ou menor diversidade das diretrizes do seu governo. No Governo Lula, além da recriação das pastas destinadas a cuidar da cultura, do combate à fome e do trabalho, que existiam em seus primeiros mandatos, foram propostos os ministérios da Igualdade Racial, da Mulher, dos Povos Indígenas e dos Direitos Humanos. Este último possui agora em seu organograma uma Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa LGBTQI+, entregue pioneiramente a uma mulher trans, Simmy Larret, a quem cabe a responsabilidade de retomar diretrizes de Direitos Humanos que haviam sido retiradas no Governo Bolsonaro. Com essas medidas, o Governo Lula sinaliza seu projeto político orientado pelo valor da diversidade pelo menos no que concerne a setores nos quais, como já mencionamos, as práticas identitárias e políticas são indissociáveis.

Já no Governo Bolsonaro, além da extinção do MinC, a responsabilidade pelas políticas de inclusão das minorias foi repassada para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, entregue à polêmica e histriônica pastora Damares Alves, que à frente do cargo continuou sua “cruzada” contra a chamada “ideologia de gênero”28. Ela negligenciou, entre outras violações dos direitos humanos, a crise humanitária dos índios Yanomamis, vítimas do garimpo ilegal. Bolsonaro chegou ao cúmulo de atribuir a demarcação das terras indígenas ao Ministério da Agricultura entregue aos ruralistas. Estas são apenas algumas medidas que, ao contrário dos “recados” de abertura dados por Lula na composição da sua equipe, demonstram a vocação excludente do governo do seu antecessor.

Com a ascensão de Bolsonaro, o que vimos foi, em suma, uma completa recusa da alteridade, reduzindo a “identidade nacional” ao que ele chamou em seu discurso de posse de “um movimento cívico verde-amarelo”, com a pretensão de uniformizar o país em torno de valores conservadores bem traduzidos na tríade “Deus. Pátria. Família”.

28 Por exemplo, https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/relembre-as-polemicas-da-ministra-damares-alves,e39919c669f1a41d9bdc48ec93b867c21a7urtnq.html.

4. Políticas culturais e práticas interacionais

Em governos orientados por diretrizes tão distintas, é de se esperar que suas políticas culturais espelhem projetos ideológicos igualmente díspares. A extinção do Ministério da Cultura por Bolsonaro já evidencia a disposição para interromper os avanços dos governos petistas em direção às políticas públicas orientadas pela diversidade, a partir de uma noção ampliada de cultura. Apoiado em uma “visão unicista de Brasil”, Bolsonaro retoma em novo patamar a forma de construção da “identidade nacional” das políticas culturais da Ditadura Militar na qual o reconhecimento da diversidade — assim como das desigualdades — tornava-se uma ameaça. Como explica Dias, ao analisar o “desmonte” das políticas culturais no mandato do ex-capitão do Exército, a cultura converte-se no campo no qual a sua cruzada moral se efetiva :

(...) temas afeitos ao posicionamento estatal relativo às diferenças socioculturais ganharam centralidade no debate eleitoral de 2018. Questões de gênero e diversidade sexual subsidiaram ataques em múltiplas frentes. A garantia do acesso à universidade para populações negras e pobres através das políticas de cotas, assim como o financiamento estatal de atividades culturais, tornaram-se primordiais nos debates públicos.29

29 C.G. Dias, op. cit., p. 238.

A construção da cruzada moral bolsonarista depende de uma atuação ideológica. Característica da guerra híbrida em sua faceta cultural, é na afirmação de uma postura unívoca diante da diferença que parece ser constituído o inimigo. E, na sua eliminação, tem-se a possibilidade de vitória na guerra. Essa última contraface da cultura produz, no entanto, uma atuação precisa junto àquela institucionalizada na administração pública. Ou seja, a guerra híbrida antecede qualquer interesse pela cultura como setor produtivo ou como nicho de políticas públicas. Seu desmonte é necessário, porém, para dar forma e encenar a guerra no governo do presidente eleito. Se há interesse em materializar os posicionamentos morais que basearam sua vitória na estrutura de sua administração de modo geral, a cultura afirma-se como lugar estratégico para fazê-lo.30

30 Ibid., p. 246.

De fato, na cultura, as práticas autoritárias do Governo Bolsonaro foram ainda mais marcantes. Na Secretaria Especial de Cultura, que substituiu o ministério extinto, os nomes escolhidos para comandar o setor acumularam polêmicas31. Roberto Alvim, um dos primeiros a ocupar o cargo, publicou um vídeo no qual citava Joseph Goebbels sobre as artes. Outro dos secretários da Cultura, o ator Mário Frias, defendia publicamente o uso de armas e postava vídeos com revólver em punho ao lado do filho do presidente. Ele chegou a ser acusado de despachar na Secretaria com a arma visível na cintura em uma clara intimidação aos divergentes de suas posições, além de ficar conhecido por perseguir e agredir artistas “inimigos” nas redes sociais32. A Lei Rouanet, de incentivo à cultura, aprovou projetos de eventos, produtos audiovisuais e livro pró-armas enquanto propostas com temáticas apresentadas por críticos ao Governo eram negadas33.

Outro exemplo expressivo do mesmo sectarismo foi a atuação da Fundação Cultural Palmares, criada em 1988, vinculada ao MinC com o principal objetivo de fomentar políticas públicas de igualdade racial34. Para presidir o órgão, Bolsonaro indicou o jornalista negro Sérgio Camargo, cuja nomeação para o cargo chegou a ser suspensa temporariamente, por suas declarações racistas, entre as quais ironizava inclusive o dia da Consciência Negra. Além de atacar o movimento negro e de questionar a importância de heróis e heróinas negros da história do Brasil, Camargo condicionou a aprovação de projetos de rappers submetidos à Fundação à “rigorosa checagem da vida pregressa dos artistas”, sugerindo sua vinculação com a criminalidade, e assumiu seu preconceito contra as religiões de matriz africana, declarando que a Fundação não daria “nenhum centavo pra macumbeiro”.

No Governo Lula, O MinC não somente voltou a ser priorizado, como teve seu comando pela recriação da pasta entregue a uma mulher negra e lésbica, a cantora Margareth Menezes, ícone do carnaval da Bahia, referência do afropop brasileiro e fundadora de uma associação sem fins lucrativos focada na economia criativa. As demais nomeações para órgãos vinculados ao Ministério sinalizam na mesma direção, a exemplo da escolha do presidente do bloco afro Olodum, João Jorge, para presidir a Fundação Palmares. A preocupação com políticas públicas orientadas pelo respeito às diferenças fica clara também na composição da pasta, que foi recriada com seis secretarias, entre elas a Cidadania e Diversidade Cultural, que havia sido escanteada no Governo Bolsonaro. No seu discurso de posse, Margareth Menezes fez questão de se apresentar como “uma cidadã brasileira de raízes afro-indígenas”, “criança criada na periferia” e, também, como


31 Cf. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/12/de-cocozinho-de-indio-a-pum-do-palhaco-relembre-a-cultura-sob-jair-bolsonaro.shtml.


32 Cf. https://www.uol.com.br/splash/noticias/2021/05/25/mario-frias-anda-armado-grita-e-assusta-funciona rios-da-cultura.htm.


33 Por exemplo https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/lei-rouanet-vira-armadilha-na-cruzada-bolsonarista-contra-os-infieis/ ; https://www.uol.com.br/splash/noticias/2021/05/04/em-live-secretario-de-fomento-orienta-artistas-cristaos-sobre-lei-rouanet.htm ; https://esportes.yahoo.com/noticias/frias-nega-persegui%C3%A7%C3%A3o-projetos-inscritos-183600794.html.


34 Cf. https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2022/Funda%C3%A7%C3%A3o-Cultural-Palmares-presidentes-e-a%C3%A7%C3%B5es.

artista popular que traz dentro do peito um amor por este Brasil diverso, por este povo lindo forjado na resistência, símbolo da alegria de viver e da diversidade que tanto nos orgulha pela capacidade de sínteses abertas e de reinvenções infinitas. (...) Precisamos cada vez mais de visibilidade às nossas raízes diversas : negras, indígenas, europeias, asiáticas ; as bases populares que resultam de nossas tantas misturas. (...) Identidade esta nunca fechada, mas híbrida, diversa, resultado de séculos encontros de pessoas de todos os continentes.35

35 M. Menezes, Discurso de posse, 02/01/2023, https://www.youtube.com/watch?v=zxp-zbTzWio.

A Ministra associa o reconhecimento dessa heterogeneidade étnica e cultural como valores inerentes ao próprio exercício da democracia, o que explicaria a extinção no Minc pelo governo de Bolsonaro :

E por que o Minc foi extinto ? Obviamente não é porque ele é irrelevante. É justamente pelo contrário. Quem o extinguiu sabe da nossa importância. Combate-se a cultura quando se quer um país calado, obediente. A cultura incomoda, a cultura mexe, a cultura desobedece e floresce e, por isso, ela é também expressão de democracia e direitos (...) [a cultura] é a consciência de todos que aprenderam a entender o valor da democracia.36

36 Ibid.

A Cultura, como setor estratégico na afirmação das identidades, evidencia, como vimos, o “projeto de país” orientado pela uniformidade, que tenta silenciar as diferenças, ou pela diversidade, que faz delas seu substrato. Se no terceiro mandato de Lula, a promessa é, de certo modo, uma retomada da “coexistência harmoniosa das várias formas possíveis de brasilidade”, perseguidas em seus governos anteriores, com Bolsonaro é a “caracterização da necessidade de retorno aos valores calcados na família”37 e em uma concepção monolítica de “identidade nacional” que orienta o tratamento dado à Cultura. Para Bolsonaro, é preciso libertar o país de “uma situação de sequestro, fundada na sujeição a perspectivas totalizantes afeitas a uma lógica cultural tida como marxista”38. Para Lula, como ele mesmo diz no discurso de posse, é preciso reconstruir o que foi destruído por “adversários inspirados no fascismo”, a começar pelo reconhecimento da “diversidade inigualável da nossa gente”.

37 C.G. Dias, op. cit., p. 240.


38 Ibid.

Conclusão

A aparição do “si” pressupõe como uma condição necessária à construção do “outro”, pois é neste jogo de reconhecimento do que é total ou parcialmente igual ou diferente entre “nós”, identitária e ideologicamente, que parece residir um tipo de sintaxe possível da política — uma sintaxe que, como tal, pode nos ajudar a pensar outras tantas práticas sociais nas quais o modo como lidamos com a alteridade é determinante.

Por isso mesmo, antes de encerrarmos, vale destacar ainda que, a partir desta “gramática da alteridade”, Landowski identifica ainda o que ele denomina de políticas de assimilação e de exclusão ou de admissão e de segregação39. Cabe apontar sua respectiva correlação com as práticas autoritárias ou democráticas aqui descritas. Na assimilação, o “outro” é praticamente eliminado na medida em que se torna “idêntico a mim” ou radicalmente igual a um determinado grupo de pertencimento. Ou seja, “torne-se um de nós e terá seu lugar entre nós”40. No segundo caso, o discurso de exclusão é taxativo : “você não é e nunca será igual a nós”. O autoritarismo em uma ou outra situação é evidente. As práticas democráticas, ao contrário, podem ser correlacionadas a políticas de admissão e segregação. Nesta última, “o grupo admite em seu próprio seio a existência de uma certa estranheza”41, de um elemento perturbador, ou seja, reconhece algo de parcialmente diferente nos posicionamentos do outro, mas sem excluí-lo, reconhecendo-o como simplesmente outro. Na admissão, por sua vez, o grupo é levado a descobrir no outro “elementos de uma complementaridade benéfica” em razão de posicionamentos parcialmente iguais. Neste caso, o “outro” é visto como semelhante a si, mas sem que este contato o reduza ao “mesmo”, o que corresponderia a assimilá-lo. Estas aproximações, ao contrário, resultam, por vezes, na “plena expansão de sua própria identidade”, resultando em condutas de mútua colaboração42.

39 “Formas da alteridade e estilos de vida”, art. cit.


40 Ibid., pp. 48-49.


41 Ibid., p. 49.


42 Ibid., p. 49.

São estas, portanto, outras quatro formas de manifestação das práticas identitárias que, em trabalhos futuros, podem ser mais exploradas, contribuindo para compreensão tanto dos discursos de ódio, próprios da Extrema-direita, quanto da celebração da diversidade, que se tornou uma das principais pautas de Esquerda e só tem condições de brotar em um ambiente democrático.

 

Referências

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1 Cf. L.G. Barboza, “A agonia do nacional popular”, Novos Rumos, 56, 2, 2019. J. Wisnik, O nacional e o popular na cultura brasileira — música, São Paulo, Brasiliense, 1982.

2 Cf. M. Ridenti, Em busca do povo brasileiro — artistas da revolução, do CPC à era da TV, Rio de Janeiro-São Paulo, Record, 2000.

3 J. Wisnik, op. cit., p. 134.

4 Cf. R. Ortiz, A moderna tradição brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1988.

5 H. Vianna, O baile funk carioca, Dissertação de Mestrado, PPGAS, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1987, p. 5.

6 Cf. M.E. Rocha, “O Núcleo Guel Arraes, da Rede Globo, e a consagração cultural da ‘periferia’”, Sociologia & Antropologia, 3, 2013. O diretor de TV e Cinema Guel Arraes, filho de uma importante liderança de esquerda, que fugiu do país com a família depois do Golpe Militar, trabalhou com o conhecido etnólogo e documentarista francês Jean-Rouch antes de retornar ao Brasil.

7 G. Yúdice, A conveniência da cultura — usos da cultura na era global, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2004.

8 Discurso do ministro Gilberto Gil na solenidade de transmissão do cargo, Brasília, 2 de jan. de 2003, http://www.cultura.gov.br/site/categoria/o-dia-a-dia-da-cultura/discursos/.

9 Ministério da cultura, Plano Nacional de Cultura, 2009, p. 5.

10 E.P.M.Alves, A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina, Maceió, Edufal, 2011.

11 Cf. M. Santana e M. E. Rocha, “Do cânone modernista à noção antropológica de cultura : o conceito de cultura nas políticas culturais do governo Lula (2003-2011)”, Estudos de Sociologia, 24, 2019.

12 C.G. Dias, A cultura que se planeja : políticas culturais, do Ministério da Cultura ao governo Bolsonaro, Rio de Janeiro, Mórula, p. 262.

13 C.G. Dias, op. cit., pp. 264-265.

14 “Une grammaire de l’altérité”, 2021, cópia cedida pelo autor. Uma versão atualizada encontra-se no presente volume.

15 Este quadrado é uma representação visual das relações de contrariedade (eixos horizontais) e de contradição (eixos diagonais) constitutivas de uma dada categoria semântica.

16 Esta dicotomia não dá conta de toda a complexidade política do Brasil, mas são as designações pelas quais os campos ideológicos em torno de Bolsonaro e Lula vêm sendo genericamente identificados por comentaristas políticos. Seguiremos o mesmo caminho. Estamos tratando da disputa entre um projeto democrático (associado hoje ao que chamamos de Esquerdas) e um outro autoritário (identificado à Extrema-direita).

17 J.L. Fiorin, Linguagem e ideologia, 7ª ed., São Paulo, Ática, 2002, pp. 28-31.

18 O modelo que apresenta Landowski também estabelece a relação das categorias propostas na “gramática da alteridade” com quatro regimes de interação e sentido : a programação, o assentimento, a manipulação e o ajustamento (cf. Interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014). Reservaremos, no entanto, esta discussão para trabalhos futuros por julgar que envolveriam um percurso argumentativo maior que o pretendido nos limites deste artigo.

19 Antes mesmo da Lei de Segurança Nacional de 1969, em 1965, a portaria que transferiu o Contel, conselho responsável pela fiscalização e censura dos meios de comunicação, para o Departamento Federal de Segurança Pública, evidenciava os critérios em nome dos quais o controle seria feito durante a Ditadura : o “fortalecimento da moral nacional”, o propósito de evitar conflitos, o fomento de sentimentos cívicos, a defesa da ordem. Ela listava 23 tipos de transgressões relacionadas à moral e à política, estabelecendo penas para a veiculação de mensagens que incitassem a sensualidade ou lutas de classe e raciais. Cf. O. Jambeiro, A TV no Brasil do século XX, Salvador, Edufba, 2001, p. 82 e ss.

20 É importante ressalvar também que o emprego do termo “totalizante”, neste texto, não remete aos regimes políticos totalitários, caracterizados pelo controle absoluto de um partido ou de um líder sobre toda nação, apoiados sobre um forte militarismo, pela doutrinação, intimidação e violência contra os dissidentes. Há, no entanto, uma proximidade inegável das práticas identitárias aqui descritas com o tipo de autoritarismo político dos regimes totalitários.

21 Um dos casos mais extremos de violência política foi o assassinato de Marcelo Arruda, dirigente do PT em Foz do Iguaçu, em 9 de julho de 2022, pelo policial bolsonarista Jorge José da Rocha Guaranho.

22 Cf. https://www.poder360.com.br/eleicoes/propaganda-do-pt-mostra-opostos-com-bolsonaro-odio-ou-amor/.

23 Discurso de posse no Congresso Nacional, 01/01/2019.

24 Um exemplo disso foram as críticas de Lula, durante a campanha, à reforma trabalhista aprovada no governo Michel Temer com a apoio das forças políticas que apoiaram a deposição da presidente Dilma Roussef em 2026, inclusive o seu vice, Geraldo Alckmin. Depois da repercussão negativa na coligação que o apoiava, ele retirou o termo “revogação” da reforma trabalhista do plano de governo, mas manteve a promessa de rever “medidas regressivas”, atendendo às pressões dos sindicatos. Cf. https://exame.com/brasil/lula-critica-reforma-trabalhista-apos-pt-prometer-revogacao/; https://noticias.r7.com/brasilia/critica-de-lula-a-reforma-trabalhista-repercute-mal-no-meio-empresarial-10112022; https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2022/06/14/coligacao-de-lula-tira-revogacao-de-reforma-trabalhista-de-plano-de-governo.htm.

25 Discurso de posse no Congresso Nacional, 01/01/2023 (grifos nossos).

26 Grifos nossos.

27 Cf. T. Leite e K. Leite, “Slogan, fé e pós-facada : a construção discursiva de um ‘milagre’”, Tempo da Ciência, 28, 56, 2021 (https://e-revista.unioeste.br/index.php/tempodaciencia/article/view/29047).

28 Por exemplo, https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/relembre-as-polemicas-da-ministra-damares-alves,e39919c669f1a41d9bdc48ec93b867c21a7urtnq.html.

29 C.G. Dias, op. cit., p. 238.

30 Ibid., p. 246.

31 Cf. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/12/de-cocozinho-de-indio-a-pum-do-palhaco-relembre-a-cultura-sob-jair-bolsonaro.shtml.

32 Cf. https://www.uol.com.br/splash/noticias/2021/05/25/mario-frias-anda-armado-grita-e-assusta-funciona rios-da-cultura.htm.

33 Por exemplo https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/lei-rouanet-vira-armadilha-na-cruzada-bolsonarista-contra-os-infieis/ ; https://www.uol.com.br/splash/noticias/2021/05/04/em-live-secretario-de-fomento-orienta-artistas-cristaos-sobre-lei-rouanet.htm ; https://esportes.yahoo.com/noticias/frias-nega-persegui%C3%A7%C3%A3o-projetos-inscritos-183600794.html.

34 Cf. https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2022/Funda%C3%A7%C3%A3o-Cultural-Palmares-presidentes-e-a%C3%A7%C3%B5es.

35 M. Menezes, Discurso de posse, 02/01/2023, https://www.you tube.com/watch?v=zxp-zbTzWio.

36 Ibid.

37 C.G. Dias, op. cit., p. 240.

38 Ibid.

39 “Formas da alteridade e estilos de vida”, art. cit.

40 Ibid., pp. 48-49.

41 Ibid., p. 49.

42 Ibid., p. 49.

 

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Résumé : Cet article a pour objectif de rendre compte, selon une perspective socio-sémiotique, de l’opposition entre les projets idéologiques de la Gauche et de l’Extrême-droite brésiliennes en ce qui concerne le domaine de la culture, champ de confrontation par excellence entre ce que serait « l’identité nationale » et ce qu’on appelle la « diversité brésilienne ». La démarche prend pour point de départ la catégorie élémentaire « identité vs altérité » et débouche sur une syntaxe de la praxis politique qui éclaire les processus interactionnels sous-jacents aux prises de position idéologiques. La confrontation entre pratiques politiques plus ou moins démocratiques ou au contraire autoritaires se traduit dans des politiques culturelles diamétralement opposées, les unes privilégiant l’idée d’une identité nationale unifiée et donnant lieu au sectarisme, les autres s’appuyant sur la diversité sociale et recherchant le dialogue.


Resumo : Ao propor a discussão de como as relações de identidade e alteridade entre grupos sociais determinam práticas políticas, o propósito deste artigo foi, com uma abordagem sociossemiótica, trazer elementos para compreendermos os embates entre os projetos ideológicos da Esquerda e da Extrema-direita no Brasil, especialmente na cultura, campo por excelência das disputas entre “identidade nacional” e “diversidade brasileira”. A análise parte do nível mais fundamental da produção de sentido (identidade vs alteridade) para chegar a uma sintaxe das práticas políticas capaz de lançar luz sobre os processos interacionais subjacentes aos posicionamentos ideológicos. São estas práticas mais democráticas ou mais autoritárias que adubam políticas públicas apoiadas em uma maior diversidade ou, ao contrário, mais uniformizantes. Estas disputas se traduzem na concepção das políticas culturais, privilegiando, quer o que se concebe como identidade nacional, quer a diversidade, dando lugar ao sectarismo ou à busca de diálogo.


Abstract : Discussing from a sociosemiotic perspective how the relations of identity and its opposite, “alterity”, between social groups determine political practices, the purpose of this article is to account for the clashes between the ideological projects of the Left and the Extreme Right in Brazil, especially as regards culture, the field par excellence of the disputes between the idea of “national identity” and that of “Brazilian diversity”. The analysis starts from the most fundamental level of meaning production (identity vs alterity) and leads to a syntax of political practices that helps understanding the interactional processes that underlie ideological positions. The confrontation between, on the one hand, more democratic, and on the other, more authoritarian practices is reflected in diametrically opposed conceptions of cultural policies, either recognising diversity and searching for dialogue, or favouring national identity and giving rise to sectarianism.


Mots clefs : altérité, autoritarisme, culture, démocratie, diversité, identité.


Auteurs cités : Elder Patrick Maia Alves, Luciana Barboza, Caio Gonçalves Dias, José Luiz Fiorin, Othon Jambeiro, Eric Landowski, Renato Ortiz, Marcelo Ridenti, José Wisnik, George Yúdice.


Plan :

Introdução

1. Identidade nacional, diversidade e cultura : os termos da discussão

2. Uma “gramática da alteridade”

3. Diversidade e uniformidade como diretrizes

4. Políticas culturais e práticas interacionais

Conclusão

 

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Recebido em 10/02/2023. / Aceito em 23/04/2023.