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Um bufão no poder Yvana Fechine e Paolo Demuru Publié en ligne le 30 juin 2022
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Prefácio Trágicos no fundo, grotescos na superfície, os bufões da política — um Bolsonaro, um Trump, a dupla Salvini-Grillo, o par LePen-Zemour, e tantos outros — estão todos fadados a um mesmo destino : mais dia menos dia, o partido da razão os derrotará. Nesta primavera de 2022, no momento em que estamos escrevendo estas linhas, não há certeza do que acontecerá no Brasil nas eleições presidenciais de outubro. Contudo, parece razoável, pelo menos para quem observa a situação de longe, de fora do país, apostar que esta votação porá fim ao episódio tragicômico inaugurado há quatro anos. Nesse dia, haverá boas razões para celebrar... sem esquecer, porém, que o saber-fazer que levou o “mito” ao Planalto e o manteve ali todo este tempo, não se tornará obsoleto no dia em que ele for derrotado. Pelo contrário, visto que a demagogia (seja ela qualificada ou não de “populista”) existe em todas as épocas, permanecerá o risco de que aquele que sai de cena se reencarne um dia em outra figura hábil no uso dos mesmos procedimentos. Seja qual for o resultado da votação, melhor, por conseguinte, tirar a lição da experiência vivida ao longo deste interminável episódio, a começar por melhor entender o que o tornou possível. É o que nos propõe o presente livro. * Para tal, os autores desenvolvem uma perspectiva claramente distinta das explicações correntes, sendo-lhes ainda assim complementar. Uma primeira explicação, com a qual todos concordam e que os autores não descartam, parte da constatação de que as novas tecnologias da comunicação e da informação — ou mais exatamente, da desinformação — propiciam aos aspirantes a demagogos hodiernos instrumentos de uma eficácia inédita. De fato, a difusão sistemática de falsas notícias e a propagação de visões deliberadamente enganosas das relações sociais e políticas desempenham um papel essencial nas estratégias eleitorais e de governo que os autores analisam aqui com precisão. No entanto, este aspecto não dá conta do que constitui, a nosso ver, a característica mais específica do fenômeno e, ao mesmo tempo, seu aspecto menos explorado : o extraordinário poder de fascínio que este tipo de figuras políticas exerce sobre considerável parte dos cidadãos. Ao esclarecer os procedimentos através dos quais se exerce o domínio de um homem sobre seus seguidores e, por esse caminho, indo além das problemáticas clássicas da persuasão argumentativa, mas sem deixar de considerá-las, este livro desloca o centro de interesse e cumpre um decisivo passo adiante, tanto do ponto de vista da teoria quanto da análise. O mesmo se dá em relação a um segundo tipo de interpretações amplamente aceitas, que os autores não contestam tampouco, mas que a orientação teórica de sua pesquisa (sua orientação “epistemológica”) os leva a ultrapassar também. Trata-se das tentativas de explicação de tipo sociológico ou politológico. Ao passo que a atenção de nossos dois autores está essencialmente voltada para a compreensão interna da força de atração que emana do lider populista, os sociólogos e os cientistas políticos voltam-se em geral à identificação dos determinantes externos, das “causas” estruturais ou conjunturais das atitudes políticas manifestadas. Operando com métodos principalmente quantitativos, suas análises se concentram nas condições contextuais nas quais se inscreve a ascensão das correntes populistas, seja qual for o país considerado : desemprego, insegurança, corrupção, sequência de escândalos, presença do “outro” (o imigrante, o “desviante” sexual, o refugiado) percebida como uma ameaça etc. É incontestável que todos estes fatores desempenham um papel essencial. Mas do mesmo modo que as novas tecnologias informacionais, eles também não bastam para explicar a forma de engajamento que os dirigentes populistas conseguem suscitar em termos de experiência vivida : um engajamento sem equivalente nas outras formações políticas, tanto por sua extrema intensidade emocional, quanto, em termos cognitivos, pelo seu caráter quase cego, mais próximo da fé que da convicção razoada. Isso, ao ponto de transformar a pessoa do líder em um ídolo que se adora ou um guru que se venera incondicionalmente. * Para tentar compreender este tipo de caso extremo, em que o laço político se aproxima perigosamente de certas formas de fanatismo, os autores recorrem a uma abordagem — a problemática sociossemiótica — que, por razões teóricas, atribui uma importância decisiva à dimensão emocional, vivida, sensível (ou “estésica”), das interações entre os indivíduos ou as coletividades. Uma tal escolha metodológica é particularmente justificada face ao problema em pauta, se admitirmos que, aquém dos dados contextuais, a relação de fidelidade populista é, antes de tudo, em profundidade, uma questão de sensibilidade Como faz bem ver este livro, o que funda o credo populista é, com efeito, o sentimento de um elo interpessoal que une intimamente, quase carnalmente, o líder a cada um de seus apoiadores mais ou menos fanatizados. Para a parcela do eleitorado predisposta a se deixar fascinar, a crença na veracidade dos discursos do bufão só depende secundariamente do conteúdo argumentativo do que ele diz. Esta confiança quase inabalável resulta, acima de tudo, de um sentimento de afinidade em relação à sua pessoa enquanto encarnação de um determinado estilo existencial e de uma experiência pessoal pretensamente compartilhada. Fazer crer nesse pertencimento comum, ou melhor, o fazer sentir constitui o coração da estratégia do bufão, mesmo se, na realidade, a sua política só piora a condição dos mais desfavorecidos Consequentemente, o modo de o ídolo se colocar em cena, sua gestualidade, seu tom de voz, seu ritmo de elocução, a aparente espontaneidade de uma linguagem franca e direta, seu “jeito” familiar, tudo isso, aliado ao apelo deliberado (e demagógico) ao “politicamente incorreto”, vale mais do que qualquer demonstração argumentada. E, contrariamente a um raciocínio articulado, a simpatia (ou antipatia) experimentada ao perceber estas marcas sensíveis não se presta a nenhuma forma de refutação. Decorre daí a absoluta ineficácia de todo e qualquer “fact checking”. Pois, neste contato tanto intenso quanto ilusório entre um eu e um tu, quem diz a verdade só pode ser aquele que, por sua maneira de ser, e de se fazer presente para mim, consegue me dar a impressão de que, paradoxalmente, apesar de sua posição no centro mesmo do Poder, ele encarna a maneira mesma de estar no mundo que, supostamente, compartilham os mais humildes — em particular, os mesmos ressentimentos, a mesma raiva face à “arrogância” das “elites” de qualquer ordem (técnica, intelectual, cultural, social, econômica etc.) que sejam. O que o eleitor subjugado experimenta então, mediante uma forma de inteligibilidade do sentir, é, portanto, muito mais do que a simples satisfação de uma convergência de opinião : é o prazer intenso, “a flor da pele”, de uma sintonia em relação ao ídolo. E isso determina a aceitação incondicional de sua palavra. * Eis, pois, um livro que aborda de frente uma dimensão vivida do fenômeno que, até hoje, foi raramente considerada por si mesma. Este esforço para entender melhor como, na ótica populista, se dá a experiência sensível da relação com “o outro” em geral, com a sociedade, com o político, e — no centro de tudo — com o líder, é, certamente, apenas um primeiro passo. Mas, para conceber uma contra estratégia eficaz, este passo inicial é indispensável. Isso quer dizer que, ao apontar as contradições e desmontar os mecanismos desta grande armadilha colocada (ou melhor, armada) pela demagogia populista — uma armadilha astuciosamente articulada para enganar as camadas da população as mais maltratadas economicamente e socialmente, as mais frágeis culturalmente e, por esta razão mesma, politicamente as mais facilmente manipuláveis —, os autores trazem uma contribuição essencial à consolidação, ou à restauração de relações democráticas fundadas na razão. Em suma, quando bem praticada, a semiótica pode se revelar útil !
Eric Landowski
Apresentação Vivemos na era do deboche. O debate público é hoje marcado pelo escárnio provocatório. Nas conversas sobre temas e problemas de interesse comum domina a derrisão, o riso zombeteiro, um humor que usa do ultraje e do exagero para ridicularizar e irritar o interlocutor, principalmente aquele que não compartilha das mesmas visões de mundo. Isso se deve em boa parte ao ambiente onde essa discussão acontece : as mídias sociais digitais, nas quais prevalece a lógica da “lacração”. Nas interações online, em particular aquelas que giram em torno de questões políticas, não se busca o diálogo, mas sim “arrasar”, “mandar bem” com frases de efeito direcionadas contra o adversário, visto como alguém que é preciso aniquilar para ganhar fama e visibilidade. Bolsonaro é talvez o líder político que mais se aproveitou deste estilo de comunicar. Em sua carreira, ele debochou de inúmeros sujeitos : fez piada sobre as dimensões sexuais dos homens japoneses, disse ter virado “boiola igual maranhense”, provocou várias vezes rivais políticos como Lula, Alckmin, Doria e personalidades do mundo do espetáculo como a cantora Anitta e o ator Leonardo de Caprio com sua risada escrachada : “kkkkkkkkkkkkk”, “rsrsrsrsrs”, como se pode ler em muitas de suas postagens no Twitter, Facebook e Instagram. Bolsonaro pode ser considerado como um verdadeiro “bufão” da política. Como todo bufão que se preze, ele vive quebrando regras e protocolos sedimentados, neste caso aqueles do assim chamado “politicamente correto”, contra o qual, ao lado de outros líderes de extrema-direita como Donald Trump, Matteo Salvini, Marine Le Pen, Viktor Orbán, diz lutar acirradamente. O fato de se apresentar e agir como um bufão reforça seu discurso antissistema, graças ao qual conseguiu se fazer passar por um outsider da política. Contribuiu para isso, inclusive, a imagem de militar insubordinado, que marcou sua entrada na política. Não podemos esquecer que ele ganhou notoriedade depois que foi acusado de participar de um plano para explodir bombas em quarteis e no sistema de abastecimento de água do Rio de Janeiro como protesto pelos baixos salários pagos aos militares. O julgamento e absolvição pelo Supremo Tribunal Militar, que tiveram ampla repercussão em jornais e revistas, ocorreu pouco antes de Bolsonaro sair do Exército, disputar eleições e assumir seu primeiro mandato como vereador do Rio de Janeiro em 1989. A partir daí foram sucessivos mandatos como deputado federal, ocupando por quase 30 anos uma cadeira na Câmara Federal até se eleger Presidente da República, período no qual também emprestou seu capital eleitoral aos três filhos que fizeram carreira política na sua sombra. Há aqui algo de paradoxal : como alguém que é político profissional há tanto tempo e disputando a reeleição para a Presidência da República Brasileira pode continuar fingindo ser “antipolítico” ? Em quais desenhos de comunicação se funda este projeto ? Como, enfim, um bufão consegue chegar e, sobretudo, se manter no poder ? Neste livro, buscamos responder a esta e outras perguntas. Analisamos as formas e os caminhos através dos quais Bolsonaro construiu esta identidade (anti)política. Desde já, vale dizer que a do bufão não é a única estratégia utilizada para este escopo. Diversas são as modalidades por meio das quais Bolsonaro imprime sua marca no campo do discurso político contemporâneo, especialmente nas redes sociais. Entre elas, há diferenças e analogias que constroem um verdadeiro emaranhado de sentidos, composto por temas, valores e paixões diversas que Bolsonaro aciona isolada ou conjuntamente conforme a exigência do momento. No primeiro capítulo, escrito em coautoria, abordamos a caracterização do Bolsonaro-bufão, enquadrando-o no contexto do assim chamado “populismo digital”, que dominou, ao longo da segunda década do século XXI, o cenário da política internacional. Procuramos desvendar o modo como Bolsonaro desenvolve e articula suas técnicas de deboche, servindo-se tanto da linguagem verbo-visual, do meme e das táticas de “trollagem”, quanto da linguagem do corpo. Paralelamente, identificamos outros papeis que ele e os integrantes de seu governo assumem para contrabalancear as incursões bufonas do Presidente. No segundo capítulo, a discussão é sobre a forma como Bolsonaro consegue construir com seus seguidores um “espírito de corpo” e um sentimento de pertencimento, um sentido de proximidade e um “sentir junto”, cultivados pelos seus mais diversos modos de presença e prontidão nas redes sociais. No terceiro capítulo, analisa-se a estratégia discursiva do “homem comum”, da qual Bolsonaro se serviu muitas vezes para construir a imagem de um sujeito simples e autêntico, “gente que nem a gente”. Mostra-se como a construção desta identidade se funda na exploração de diferentes recursos, entre eles os gestos e a postura corpórea, a vestimenta e o comer. Postando imagens de baixa qualidade em suas redes sociais nas quais aparece deitado no sofá de casa com a camisa do Palmeiras, comendo pão com leite condensado ou frango com farofa, usando moletom e chinelos em reuniões com ministros, Bolsonaro não apenas se apresenta como uma “pessoa qualquer”, mas como um verdadeiro “usuário médio das mídias sociais”, que expõe seu dia a dia no Instagram. Dessa forma, o aparato ideológico do populismo de extrema-direita, com seus valores autoritários, antidemocráticos e xenófobos, é camuflado e mitigado, tornando-se mais leve e palatável. No quarto capítulo, o enfoque é sobre o discurso conspiracionista de Bolsonaro. A análise revela que o modo como o Presidente mobiliza teorias de conspiração tem por finalidade a construção e difusão de cenários políticos, sociais e econômicos caóticos e apocalípticos, através dos quais Bolsonaro mantém seus seguidores em estado de alerta. Segundo o Presidente, o Brasil e o mundo estão em perene colapso devido à atuação de poderes ocultos que agem nos bastidores da sociedade. Nesse panorama, Bolsonaro emerge como um verdadeiro “messias”, um “salvador da pátria” ungido por Deus que pode resgatar o país de suas cinzas. Ou não, pois se a crise se resolver definitivamente, o messias perde sua razão de ser. Entre o messianismo e o catastrofismo, mostramos, no quinto capítulo, como Bolsonaro conseguiu adesão de grande parcela da população à sua postura negacionista e anticientificista no enfrentamento da pandemia de Covid-19, a partir da exploração e conjugação de diferentes regimes de interação, que envolviam desde a programação de comportamentos com a ajuda dos robôs da internet à manipulação sustentada pelo medo, passando pelo ajustamento aos sentimentos do outro e pelo assentimento frente à tragédia. A retórica da desinformação utilizada por Bolsonaro para espalhar notícias falsas ou distorcidas durante a pandemia de Covid 19 teve também um papel fundamental no convencimento de grande parte da população que passou, graças às pregações do Presidente, a desconfiar até da eficácia das vacinas. Foi este o foco do sexto capítulo. Nele, identificamos uma trama de falácias que vão desde os “argumentos de autoridade”, o “apelo à ignorância” até a “generalização indevida” e o “argumento ad populum”, entre outros. Além de descrever o modo de funcionamento dessas técnicas, a nossa intenção é mostrar como seu conhecimento é fundamental para prevenir coletivamente surtos de desinformação como aqueles que acompanharam a explosão dos contágios causados pelo novo coronavírus. O primeiro capítulo e o último, escritos a quatro mãos, foram concebidos originalmente para esta publicação e são o resultado mais direto de uma interlocução que mantemos há muitos anos, especialmente nos ateliês e fóruns de discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas (CPS), do qual fazemos parte, mas também em grupos de trabalho da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós). Os demais capítulos foram elaborados a partir de uma inteira revisão e reorganização de artigos publicados individualmente em revistas acadêmicas nacionais e internacionais, mas sem que perdêssemos de vista os avanços que cada um fazia em suas reflexões a cada momento. Embora sejam dotados de autonomia, os ensaios são interdependentes e complementares. Sua ordenação em capítulos, no entanto, não exige necessariamente uma leitura sequencial, mas esta é desejável, já que há uma remissividade entre eles. E, como algumas remissões são necessárias à melhor compreensão de determinadas passagens, estas serão sempre apontadas. De resto, o leitor é soberano. Em todo o processo que resultou neste livro, foi muito importante o diálogo com o semioticista francês Eric Landowski, a principal referência da corrente sociossemiótica, aquela que explica o sentido nas práticas sociais a partir das interações, que constitui o norte de nossas reflexões. O prefácio da obra, assinado por ele, dá provas não apenas de nossa partilha de abordagens teórico-metodológicas, mas também de ideias sobre um modus operandi na política que tem colocado em risco as democracias, e não apenas no Brasil. Algumas das ideias aqui expostas, principalmente aquelas apresentadas nos capítulos três e quatro, retomam parte do trabalho desenvolvido, desde 2017, por Paolo Demuru em parceria com Franciscu Sedda, professor da Universidade de Cagliari, sobre a morfologia semiótica e as estratégias discursivas do populismo digital. Por fim, vale destacar que, com os ensaios deste livro, buscamos mostrar a contribuição que a semiótica pode dar tanto aos estudiosos do campo da Comunicação e das Ciências Sociais quanto ao debate público contemporâneo. Enquanto disciplina que estuda o modo como os sentidos são construídos, interpretados e compartilhados pelas pessoas em suas interações cotidianas, ela pode jogar luz sobre as “disputas de narrativas” — como se costuma hoje dizer — que permeiam a esfera da política contemporânea. Explicando e mobilizando as ferramentas da semiótica de modo simples e direto, buscamos trazer à tona as engrenagens e as técnicas usadas pela extrema-direita para tornar seu discurso cativante e eficaz. Há nisso também uma certa intenção pedagógica. Por esta e outras razões, este livro é também uma maneira de intervir, com os meios ao nosso alcance, no combate às forças demagógicas e a todas as formas de autoritarismo, conservadorismo e fascismo que surgiram neste começo do século XXI no Brasil e no mundo.
Os autores |
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Sumário Prefácio por Eric Landowski
Apresentação por Yvana Fechine e Paolo Demuru
1. Bolsonaro e o populismo bufão por Yvana Fechine e Paolo Demuru
2. O “homem comum” por Paolo Demuru
3. Paixão e presença por Yvana Fechine
4. Caos, conspiração e messianismo por Paolo Demuru
5. Regimes de interação na pandemia por Yvana Fechine
6. Uma retórica da desinformação por Yvana Fechine e Paolo Demuru |
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