Forum-dossier : Quelques paradoxes du « post- » consumérisme

Cenas publicitárias
do “pós-consumismo”

Carlos Alfeld Rodrigues
São Paulo, PUC-SP, Centro de Pesquisas Sociossemióticas

Publié en ligne le 22 décembre 2021
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2021n2.56797
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Introdução

Não há como não associar o discurso publicitário ao consumo e vice-versa. A publicidade foi e ainda é um elemento chave do que se chamou de "sociedade do consumo" e que mais recentemente passou-se a denominar de "pós-consumismo". Num contexto, supostamente passado, que hoje tornou-se banal caracterizar retrospectivamente como a era de um consumo desenfreado, insustentável e desumano, a publicidade esteve principalmente centrada na imagem objetal do produto anunciado, ou seja, de acordo com Jean-Marie Floch em sua funcionalidade, sua usabilidade, e na relação entre "custo e benefício" ; dito de outro modo, na sustentação de valores de uso denominados pelo autor como "utilitários" e na exploração da valorização dos tipos "prático" e "crítico"1. Agora, sob a tentativa de renovação do discurso publicitário com a missão de modificar a má fama do consumismo, como é que se configura a temática rotulada de "pós-consumista" ?

Como, e até que ponto, a adoção de uma estratégia de persuasão basicamente paradoxal — fazer consumir "após" o consumo — determina a aparição de "novos" temas, "novas" estratégias de figurativização e de outros recursos expressivos na publicidade atual ? Compreendemos com Eric Landowski que o discurso publicitário é "um discurso social entre outros e que, como outros, [ele] contribui para definir a representação social que nós damos do mundo social que nos rodeia"2. Como o social está tematizado e figurativizado na publicidade que foi veiculada recentemente no Brasil ? Para atender às problematizações apontadas, analisamos no que segue um filme publicitário da marca Heinz e um conjunto de três filmes da cerveja Heineken que foram exibidos no Brasil durante o ano de 20193. Nesse corpus publicitário, nosso foco está em analisar um recorte das cenas que figuram o que, até há pouco, se chamou de consumo, por contraste com o que hoje se rotula por "pós-consumismo". E o que, no presente trabalho, nos interessa principalmente é ressaltar os aspectos paradoxais e às vezes até contraditórios, ou mesmo absurdos, dessa (relativamente) nova variante do discurso de persuasão4.

1 Cf. J.-M. Floch, Semiótica, marketing y comunicación : Bajo los signos, las estrategias, Barcelona, Paidós, 1993, p. 148.

2 E. Landowski, A sociedade refletida : ensaios de sociossemiótica, São Paulo, EDUC/Pontes, 1992, p. 103.

3 Esses anúncios foram veiculados em diversas mídias e plataformas como, por exemplo, a TV aberta e por assinatura, o YouTube e, principalmente, impulsionados no Facebook e no Instagram. Do ponto de vista do consumidor o acesso a estas publicidades foi realizado prioritariamente por meio de smartphones, notebooks, tablets ou SmartTVs, dispositivos tecnológicos utilizados nos tempos de "pós-consumismo". Os anúncios selecionados para a análise foram captados diretamente da tela do smartphone, preservando a dimensão visual, sonora e espacial da interface de exposição.

4 Sobre uma outra estratégia de valorização paradoxal na publicidade, cf. E. Landowski, "Una puesta em valor paradójica", Pasiones sin nombre, Lima, Fondo Editorial de le Universidad de Lima, 2015, pp. 237-240

1. Astúcias de uma marca

1.1. O tema da alimentação saborosa

Entre os meses de abril e junho de 2019 a tradicional marca americana de molhos e condimentos Heinz veiculou diversos anúncios publicitários elaborados pela agência de publicidade Africa com o objetivo de convencer o consumidor de que mesmo o ketchup Heinz sendo um molho industrializado (cujo prazo de validade médio é de um ano após a sua fabricação), sua produção conta com ingredientes que, conforme o anúncio, foram classificados com o argumento de serem "100% naturais" e pelo seu sabor classificado como "tão gostoso". De que maneira um produto artificial processado industrialmente fez para criar o efeito de natural ?

O filme analisado5 tem início em um fundo desfocado, mas que ainda possibilita identificar o que parece ser uma porção de alimentos ao lado de um copo de cerveja. Em um movimento da direita para a esquerda, surge a embalagem do produto (o bem conhecido frasco) ao mesmo tempo em que a trilha sonora instrumental também é iniciada reforçando a presença do produto na tela que é focalizado em plano detalhe. Em seguida, a narração em off é iniciada com a pergunta retórica "Sabe porque Heinz é tão gostoso ?" que possui a função de despertar a atenção do narratário. De modo síncrono esta pergunta também é realizada verbovisualmente em caixa alta ao mesmo tempo em que as principais duas maneiras de consumo são figurativizadas na tela : o ketchup enquanto molho para um petisco e como complemento na montagem de um cheeseburguer.

5 https://drive.google.com/file/d/1BmcBbwa4_
rRpyxOs5zdo9FlFxnsZj76i/view?usp=sharing
. Acesso em 5 nov. 2021.p>

Dessa maneira, o enunciador, delega a voz ao narrador que, utilizando os recursos audiovisuais, estabelece um diálogo com o narratário. Ele faz isso chamando a sua atenção com uma pergunta ao mesmo tempo que lhe oferece objetos que, filmados em plano detalhe e editados em slow motion, despertam a sua memória gustativa ao figurativizar os alimentos bastante populares que são por ele valorizados como "saborosos". Portanto, o enunciador, além de reforçar audiovisualmente que o ketchup da marca Heinz é "gostoso", associa o produto com outros alimentos como, por exemplo, o petisco e o cheeseburguer que o enunciatário do filme supostamente reconhece por ser algo "apetitoso" e, portanto, agradável ao seu paladar. No entanto, a estratégia de figurativização e de tematização do "sabor" não é a única e não será a principal construída no decorrer do anúncio. No desenvolvimento do filme o tema da "alimentação saborosa" será associado ao da "alimentação natural" e é justamente ao tematizar e figurativizar como "natural" um alimento processado e industrializado, portanto, "artificial" que a estratégia paradoxal de persuasão será arquitetada.

1.2. O paradoxo da "naturalidade" do artificial

Nas próximas cenas o enunciador selecionou outras figuras do mundo como, por exemplo, os tomates maduros, limpos e frescos que aparecem sendo borrifados com água. Além disso, temos a combinação de batatas fritas cortadas rusticamente que, em movimento de slow motion, misturam-se com o sal grosso e o alecrim fresco. O gerador de caracteres, produzido pelo recurso de edição, continua atuando de modo a reforçar a narração em off com o seguinte enunciado em caixa alta : "É 100% natural. Não tem conservantes". Ao trazer a figura de frutas, legumes e temperos, o enunciador busca convencer o enunciatário de que, se o produto é "tão gostoso", é porque é produzido com ingredientes que, agora, passam a ser valorizados por seu aspecto de "naturalidade".

Em continuidade, o enunciador direciona o processo de convencimento com a exploração de valores que ressaltam a amplitude da marca em ser o ketchup com a maior presença global e a afirmação de sua liderança. Para isso, recorre à figurativização da carne grelhada do hambúrguer e da combinação da batata frita com o molho ketchup, uma vez que esta é também uma convenção alimentar bastante difundida em diversos países. Portanto, o valor da marca em ser o ketchup "número 1" é agora associado a alimentos que também são preferidos e reconhecidos pelo enunciatário como "globais", pois assim, como o ketchup Heinz são consumidos e "adorados" em muitos países.

A narração em off continua sendo reafirmada em caixa alta e fonte tipográfica centralizada na tela. Assim, o enunciador busca construir a valorização de "melhor", "preferido" e "mais consumido" ketchup do mundo. No entanto, a reafirmação dos ingredientes que compõe o produto será resgatada na parte final do anúncio com a retomada da embalagem do produto.

A conclusão do filme reforça que o produto possui poucos ingredientes em sua formulação o que corrobora com o efeito de sentido de naturalidade que se busca associar ao sabor e a preferência mundial por Heinz. O anúncio parte do pressuposto aceito no senso comum da alimentação que um produto alimentício ao possuir muitos ingredientes em sua composição não pode ou não deve ser saudável para o consumo. Por isso, o uso do advérbio "apenas" que em diversos usos poderia estar associado à características negativas como, por exemplo, "somente" ou "pouco", no anúncio, está associado ao caráter de "exclusividade" e "particularidade" que busca se diferenciar da concorrência que pressupõem-se possuir muito mais substâncias do que "seis ingredientes e só".

 

A figurativização que o argumento relacionado aos números, ou seja, ao aspecto quantitativo utilizado enquanto comprovação no processo de persuasão, chama a atenção por sua utilização marcada desde o início do anúncio. No começo do filme, em resposta à pergunta do narrador, tivemos afirmação verbovisual de que é "100% natural" associada à dimensão visual que traz os tomates frescos e maduros. Isto faz com que a totalidade da "naturalidade" seja afirmada na busca de não dar margem aos questionamentos. Depois, a comprovação de que Heinz é a marca de ketchup preferida e, portanto, mais consumida mundialmente foi, também, assegurada com a figurativização do número, em ser a "número 1" que na dimensão visual foi afirmada com a combinação batata frita com ketchup, sendo que esta também é uma prática alimentar aceita e adorada em diversas culturas e sociedades. Portanto, da totalidade do "100%" o enunciatário é conduzido para a "originalidade" e a "unicidade" do "nº1". Ao término, paradoxalmente, a naturalidade, os poucos ingredientes, a alimentação saudável, gostosa e sem conservantes tem como figurativização numérica o "seis" e um sanduíche do tipo cheese salada que possui uma enormidade de ingredientes, entre eles a grande quantidade do produto ketchup Heinz, que, sozinho, segundo consta no verso de sua embalagem, possui seis ingredientes principais, entre eles, molho de tomate, açúcar, vinagre, sal, cebola e "aroma natural"6 e que todos eles, sem exceção passaram por processos industrializados de produção. Numa versão atualizada7, é afirmado que os seis principais ingredientes são de "origem natural". Nos perguntamos, qual tipo de alimento não teria sua origem na natureza ?

6 https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/
redacao/2019/07/11/aromatizantes-naturais-
sao-mesmo-naturais-entenda-melhor.htm
. Acesso em 5 nov. 2021.

7 https://drive.google.com/file/d/1XM6pjco-
hElct1gqTsOU27W-oRotxd8j/view?usp=sharing
. Acesso em 5 nov. 2021.

2. Aquém e além do paradoxo, o contrassenso

Segundo as informações que constam em seu site brasileiro8, a Heineken, marca de cerveja holandesa fundada em 1873, está presente em 192 países : sua relevância no segmento de bebidas alcoólicas é, portanto, reconhecida mundialmente. Nos interessam aqui três filmes publicitários criados pela Agência Publicis, veiculados no Facebook e no Instagram entre os meses de maio e agosto de 2019.

O primeiro tem duração de cinco segundos e traz Nico Rosberg, ex-piloto campeão de Fórmula 1. Ele aparece em pé, filmado em plano médio por uma câmera estática9. Está vestido socialmente e a cena se passa em um lounge bar onde, por um efeito desfocado da câmera, é possível observar que outras pessoas estão sentadas, conversando e bebendo. A dimensão sonora é composta pelo ruído das pessoas que conversam. Efeitos sonoros e narração em off complementam a composição do plano sonoro do filme.

8 https://www.heineken.com/br/pt/nossa-historia. Acesso em 5 nov. 2021.

9 https://drive.google.com/file/d/1pN-Cb6Fm6zm-
DrXN0uDdldrAxge6FS-1/view?usp=sharing
. Acesso em 5 nov. 2021.

O anúncio conta com a associação prévia do enunciatário sobre campanhas anteriores da marca, especificamente o filme para lançamento da campanha When you drive, never drink que contou com a participação de um outro ex-piloto, Jack Stewart, tricampeão mundial10. A estrutura narrativa é extremamente simples, sendo constituída pela oferta da cerveja por parte de um garçom e a recusa por parte do ex-piloto, recusa obviamente motivada pelo fato de que ele vai dirigir. Neste ambiente de convívio social relacionado à diversão e ao consumo de bebidas alcoólicas (como, por exemplo, a própria cerveja Heineken), o ex-piloto recusa a bebida porque, entende-se, mesmo não atuando mais nas pistas, ele ainda é responsável por dirigir no trânsito e, conforme a inscrição verbovisual na postagem aponta, ele respeita os conselhos de seus "amigos" que o recordam que não deve beber em situações em que se for dirigir.

10 Temos analisado este filme, entre outros, em C. Alfeld Rodrigues, Sociossemiótica dos filmes publicitários na TV, YouTube, Facebook e Instagram, tese de doutorado em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 2021.

Contudo, é um outro elemento presente na organização da cena que é o principal motivo de Rosberg, de fato, recusar a cerveja. Estamos nos referindo ao papel que desempenha o olhar do enunciatário no anúncio, conforme teorizou Landowski no dispositivo triangular da publicidade11. Desde o início do filme, o enunciador, por meio do olhar e da posição corporal de Rosberg, implica um olho no olho com o destinatário (ou "testemunha") que está assistindo ao anúncio via smartphone no Facebook, ou seja, aciona uma relação eu-tu com o enunciatário. Desse modo, a relação começa no olho no olho entre Rosberg e a testemunha do filme que assim instala de maneira direta o enunciatário no ato enunciativo. Após isso, o ex-piloto desvia o seu olhar para ver o que lhe foi oferecido, de modo que o enunciatário também desloque a sua atenção para o produto. Por fim, retorna com a relação de olhar diretamente no olho do enunciatário (ou seja, para a lente da câmera), acena negativamente com a cabeça e com um sorriso de canto de boca recusando a bebida, mas despertando o desejo do enunciatário em beber.

Nesta construção discursiva, a marca, ao fazer o modelo recusá-la diante dos olhos do consumidor, cumpre o papel pedagógico de esclarecer que não se deve beber quando for dirigir e reforça a função persuasiva do anúncio de que quando se for beber, a escolha é por Heineken. Neste filme, estamos aquém do paradoxo. É claro que cabe a interpretação de que uma marca que encena o seu não-consumo faz isso enquanto estratégia para fazer consumir mais. Ainda assim, nos perguntamos, diante da situação de alguém que vai dirigir, ainda mais um jovem ex-piloto, que marca ousaria encenar o consumo de uma cerveja em um anúncio publicitário considerando o cenário atual onde prevalece o sistema axiológico "pós-consumista", que, em grande parte, é marcado pelo querer ou dever manter-se politicamente correto, socialmente educado e individualmente consciente ? Nos próximos filmes, encontramos outras situações que vão além do paradoxo.

11 Cf. E. Landowski, "O triângulo emocional do discurso publicitário", Comunicação Midiática, 6, 2006. A seguir, os termos "testemunha", "modelo", "produto" e "coisa" são tomados emprestados deste texto.

Os dois filmes a seguir apresentam variações da quase mesma situação, com a diferença que ultrapassam as relações paradoxais e vão até se chegar ao contrassenso. No segundo filme, o mesmo ex-piloto transita entre duas localizações espaciais e temporais distintas12. Na primeira cena, ele recusa a cerveja que lhe é ofertada nos boxes de uma pista de corrida em uma cena externa diurna. Na cena seguinte, ele recusa no lounge bar em cena interna noturna. Na cena final, ele vai embora com seu automóvel superesportivo em uma cena externa noturna, enfatizando que as recusas aconteceram porque, mesmo sendo um ex-piloto, ainda estava dirigindo.

Os recursos expressivos utilizados pelo enunciador e encenados pelo ator do enunciado, Rosberg, retomam um fazer do destinatário, ou seja, uma ação realizada pelo usuário das redes sociais que utilizando o smartphone interage com as postagens entre elas, os anúncios e filmes publicitários que são impulsionados no feed do Facebook. Estamos nos referindo ao gesto de "passar de telas" que é realizado pelo actante do enunciado, delegado do enunciador, que também é realizado pelo usuário das redes sociais. Neste momento, não há como não relacionar que para gerar aderência, engajamento e proximidade com o enunciatário, o enunciador utilizou a estratégia de retomar um dos seus principais gestos utilizados para interagir com os dispositivos móveis que é o ato de passar as telas em um fazer que no anúncio está concretizado pelo actante do enunciado.

Com este recurso, além de estabelecer uma correlação entre os gestos do enunciado e a enunciação, o enunciador garante para esta narrativa, com apenas sete segundos de duração, conseguir dar conta de comunicar o conteúdo de que — independente da situação, ou seja, desde as cenas diurnas em ambiente esportivo, passando por cenas noturnas em ocasiões de convívio social — não se deve beber quando for dirigir. Este segundo filme ilustra o paradoxo de uma marca que encena a recusa de seu "produto" para agregar valor a sua imagem de marca, pois a cada "não" do "modelo", a marca se torna mais desejada para quem a "testemunha". A cena é da ordem do quase-absurdo : qual piloto ou ex-piloto aceitaria tomar uma cerveja diante do público antes de uma corrida ? Qual marca gostaria de estar associada a esta relação ? Contudo, o filme seguinte, o último da série, ultrapassa o limite que separa o paradoxo e o absurdo e chega ao contrassenso.

12 https://drive.google.com/file/d/
1pI5wVzGNM15JHZrEvxSssLDo63v_Ii1G/
view?usp=sharing
. Acesso em 5 nov. 2021.

Este filme, de cinco segundos, teve sua veiculação na rede social Instagram13. Rosberg agora encontra-se no ambiente dos boxes de uma competição profissional. Devidamente uniformizado, vestindo macacão, capacete e luvas, ele aparece filmado em plano médio e, por suas expressões faciais e corporais, entende-se que ele está concentrado para os momentos que seguirão. Em imagem desfocada, mas que permite clara identificação, vemos a equipe técnica com engenheiros, mecânicos e demais profissionais que atuam nos bastidores. A dimensão sonora é composta por um ruído que mescla o efeito sonoro de aceleração do motor de Fórmula 1, conversas e outros ruídos que ajudam a construir o clima tenso da preparação para uma competição.

Contudo, de repente, é inserido um novo elemento que contrasta neste clima : a oferta de uma garrafa de Heineken em uma bandeja. Rosberg, que olhava de modo concentrado para o enunciatário, desvia o seu olhar e posição da cabeça para enxergar "a coisa" que lhe foi oferecida e, diferentemente das recusas anteriores (quando rejeitou sorrindo e acenando negativamente com a cabeça), dessa vez ele retoma a relação eu-tu pelo olhar com o enunciatário e recusa mais uma vez o produto, fechando a viseira do capacete com firmeza e seriedade.

Desse modo, a publicidade apresenta mais um de seus artifícios para continuar a estimular o consumo. Inicialmente, procuramos apresentar como a estratégia discursiva passou pela exploração da relação paradoxal arquitetada na encenação da recusa para mais e melhor causar o desejo. No entanto, em tempos de "pós-consumismo", essa estratégia estaria melhor localizada aquém do paradoxo, pois encenar o não consumo de cerveja antes de dirigir é o que se espera de alguém minimamente consciente, maior de idade e habilitado para conduzir automóveis, mesmo sabendo que, quanto mais o actante do enunciado, no caso, o ex-piloto, recusava o produto, mais a marca se tornava desejante para a testemunha necessária do anúncio que tem no "politicamente correto" o termômetro ideológico para medir e avaliar as suas relações com o outro.

13 https://drive.google.com/file/d/
1YoH68tRTGjbOfkOT7Xi0_ADDYnLu4tBQ/
view?usp=sharing
. Acesso em 5 nov. 2021.

Restaria ainda nos questionarmos se a testemunha desses anúncios, "testemunha necessária, ora figurada na imagem, ora projetada fora dela, exatamente no lugar em que você, leitor, se encontra, olhando a cena"14, ou seja, a posição ocupada por aquele que é a razão de todos os esforços publicitários com a intenção de fazer consumir ainda mais, mesmo dizendo "Não consuma !", seria capaz de não beber um gole se quer de cerveja em situações em que se for dirigir mesmo que ninguém estivesse olhando ou ficasse sabendo, isto é, no momento em que o único termômetro possível a ser adotado fosse o da consciência própria ? Nunca é demais lembrar que o actante do enunciado figurativizado por Rosberg resistiu a todas as investidas, ainda assim, quem cederia à tentação um tanto quanto perversa de fazer a coisa errada sendo olhado no olho ? Por isso, é também aquém da utilização estratégica paradoxal que a publicidade continua a explorar os mecanismos enunciativos para mais e melhor fazer consumir.

Contudo, ainda nos falta melhor localizar o contrassenso dos dois últimos filmes, mas sobretudo, do terceiro. Ora, não há nada de paradoxal que um piloto (ou ex), trajado com vestimenta profissional e pronto para exercer a sua função, recuse consumir uma cerveja. Essa foi a cena descrita do segundo filme. Um pouco mais além, temos as mesmas circunstâncias reunidas na recusa realizada no terceiro filme, mas que foram potencializadas, pois no terceiro caso, o piloto está de capacete, luvas e a alguns passos de entrar no carro. Nessas condições, mais uma vez, entramos no terreno do absurdo, ou melhor, do contrassenso na encenação publicitária em ofertar uma garrafa de cerveja em uma bandeja para um piloto da modalidade mais competitiva, que exige a maior perícia. Um disparate ! Ainda mais a oferta ser realizada para um sujeito que aparece figurativizado de capacete e que olha diretamente para a câmera estabelecendo uma interlocução direta pelo olhar. Não seria essa a função principal dessa estratégia discursiva : colocar uma situação absurda para um piloto que não teria como não recusar ? Novamente, convocamos a testemunha dos filmes : será que fora dos boxes, em situação cotidiana, um motorista comum não consideraria um gole de cerveja diante de tantas investidas ?

14 E. Landowski, "O triângulo...", art. cit., p. 16.

Conclusão

O referencial teórico da sociossemiótica compreende que "o discurso não reflete o social — ele o constrói"15. Por isso, metonimicamente, as cenas publicitárias analisadas são importantes partes constituintes de uma totalidade de sentido tanto das empresas anunciantes como das pessoas que assumem tais cenas enquanto simulacros de um modo de viver em sociedade mediado por relações de consumo. É neste cenário em que, aquém e além das estratégias paradoxais da publicidade, se constrói discursivamente a valorização de objetos, das relações entre os sujeitos e das práticas de vida. Este modo de construção acontece sob o termômetro ideológico do que se passou a rotular por "pós-consumismo". Etiqueta de difícil definição e, além do mais, conceito este que não possui contornos bem delineados no tempo e no espaço, mas que se passou a adotar como estratégia para fazer continuar consumindo embora o "consumismo" se apresente doravante como desgastado e insustentável.

Nas análises realizadas foram examinadas a edificação de valores que compõem este "novo" sistema axiológico. No que se refere ao "consumismo", sem o "pós", a valorização das marcas nos discursos publicitários permanece centrada na sustentação de valores de uso que podem ascender aos valores de base a depender dos artifícios estratégicos e dos procedimentos sensíveis utilizados para fazer consumir. Diferentemente, acontece no "pós-consumismo" em que a valorização de uso é renegada a segundo plano, quando não é completamente deixada de lado, para que os valores de base possam emergir de modo a servir de algo para ser consumido "após" o produto, serviço ou bem anunciado em si mesmo. Nessas relações, trazemos à tona a exploração dos valores de base como pilares da axiologia do "pós-consumismo".

No caso de Heinz, o produto é colocado como protagonista quando, de fato, cumpre o papel de um importante adjuvante aos "devoradores" ou "apreciadores" de fast food. O molho enquanto acompanhamento é transformado no alimento principal e assume o valor de natural para um produto que é evidentemente industrial. Portanto, juntamente ao ser figurativizado como um alimento "gostoso" (claro, ao gosto dos que assumem esse tipo de alimentação), temos também a configuração de um valor de base socialmente constituído, pois além de ser uma alimentação provedora de prazer não faz com que o seu consumidor tenha o sentimento de culpa ou peso na consciência, uma vez que o dito ketchup tem "apenas seis ingredientes naturais e só". Desse modo, temos no exemplo de Heinz a configuração da estratégia paradoxal que encena uma alimentação natural e saudável para alimentos produzidos industrialmente, altamente calóricos, ricos em gorduras, alto teor de sódio e pobres nutricionalmente. Tal estratégia ilustra bem a axiologia "pós-consumista" vigente : colocar como valor de base uma alimentação saborosa que, além de ser prazerosa, não deixa o sentimento de culpa.

Nos exemplos de Heineken é tão somente os valores de base que estão em jogo, pois o consumo da cerveja é negado pelo ator do enunciado de maneira reiterada. É claro que estamos diante de uma estratégia paradoxal arquitetada na encenação do não-consumo para fazer-consumir, mas estes exemplos vão além do paradoxo e chegam ao contrassenso. Ao renegar os valores de uso de uma cerveja, ou seja, seu sabor, seu aroma, o prazer em beber, sua refrescância, etc. o anúncio explora os valores de base que estão associados à Heineken enquanto marca que quer ser vista como tão segura de si que encena a sua recusa em nome da axiologia "pós-consumista". O destinatário, ao consumi-la, ganha também o rótulo de um consumidor consciente e responsável socialmente, o que corresponde a um valor de base.

15 E. Landowski, Com Greimas : interações semióticas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017, p. 188.


Bibliografia

Floch, Jean-Marie, Semiótica, marketing y comunicación : Bajo los signos, las estrategias, Barcelona, Paidós, 1993.

Landowski, Eric, A sociedade refletida, São Paulo, EDUC/Pontes, 1992.

— "O triângulo emocional do discurso publicitário", Comunicação Midiática, 6, 2006.

Pasiones sin nombre, Lima, Fondo Editorial de la Universidade de Lima, 2015.

Com Greimas : interações semióticas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017.

Rodrigues, Carlos Alfeld, Sociossemiótica dos filmes publicitários na TV, YouTube, Facebook e Instagram, Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, São Paulo, 2021.

 


1 Cf. J.-M. Floch, Semiótica, marketing y comunicación : Bajo los signos, las estrategias, Barcelona, Paidós, 1993, p. 148.

2 E. Landowski, A sociedade refletida : ensaios de sociossemiótica, São Paulo, EDUC/Pontes, 1992, p. 103.

3 Esses anúncios foram veiculados em diversas mídias e plataformas como, por exemplo, a TV aberta e por assinatura, o YouTube e, principalmente, impulsionados no Facebook e no Instagram. Do ponto de vista do consumidor o acesso a estas publicidades foi realizado prioritariamente por meio de smartphones, notebooks, tablets ou SmartTVs, dispositivos tecnológicos utilizados nos tempos de "pós-consumismo". Os anúncios selecionados para a análise foram captados diretamente da tela do smartphone, preservando a dimensão visual, sonora e espacial da interface de exposição.

4 Sobre uma outra estratégia de valorização paradoxal na publicidade, cf. E. Landowski, "Una puesta em valor paradójica", Pasiones sin nombre, Lima, Fondo Editorial de le Universidad de Lima, 2015, pp. 237-240

5 https://drive.google.com/file/d/1BmcBbwa4_rRpyxOs5zdo9FlFxnsZj76i/view?usp=sharing. Acesso em 5 nov. 2021.

6 https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2019/07/11/aromatizantes-naturais-sao-mesmo-naturais-entenda-melhor.htm. Acesso em 5 nov. 2021.

7 https://drive.google.com/file/d/1XM6pjco-hElct1gqTsOU27W-oRotxd8j/view?usp=sharing. Acesso em 5 nov. 2021.

8 https://www.heineken.com/br/pt/nossa-historia. Acesso em 5 nov. 2021.

9 https://drive.google.com/file/d/1pN-Cb6Fm6zm-DrXN0uDdldrAxge6FS-1/view?usp=sharing. Acesso em 5 nov. 2021.

10 Temos analisado este filme, entre outros, em C. Alfeld Rodrigues, Sociossemiótica dos filmes publicitários na TV, YouTube, Facebook e Instagram, tese de doutorado em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 2021.

11 Cf. E. Landowski, "O triângulo emocional do discurso publicitário", Comunicação Midiática, 6, 2006. A seguir, os termos "testemunha", "modelo", "produto" e "coisa" são tomados emprestados deste texto.

12 https://drive.google.com/file/d/1pI5wVzGNM15JHZrEvxSssLDo63v_Ii1G/view?usp=sharing. Acesso em 5 nov. 2021.

13 https://drive.google.com/file/d/1YoH68tRTGjbOfkOT7Xi0_ADDYnLu4tBQ/view?usp=sharing. Acesso em 5 nov. 2021.

14 E. Landowski, "O triângulo...", art. cit., p. 16.

15 E. Landowski, Com Greimas : interações semióticas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017, p. 188.

 

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Mots clefs : consumo, paradoxo, pós-consumismo, valor.

Auteurs cités : Jean-Marie Floch, Eric Landowski.


Plan :

Introdução

1. Astúcias de uma marca

1.1. O tema da alimentação saborosa

1.2. O paradoxo da "naturalidade" do artificial

2. Aquém e além do paradoxo, o contrassenso

Conclusão

 

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Recebido em 31/07/2021. / Aceito em 09/11/2021.