Forum : Supplément au dossier « La pandémie : hasard ou signification ? »

A pandemia é uma
questão de espaço*

Manar Hammad

Publié en ligne le 22 décembre 2021
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2021n2.56800
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Introdução

O contágio é a propagação de um agente patogênico no espaço constituído por um grupo vivo, sendo o patógeno suscetível de passar do animal ao homem e vice-versa. A mais antiga infecção conhecida, cujos vestígios foram encontrados por arqueólogos em vértebras humanas (tuberculose), está ligada à domesticação de gado no Oriente Próximo no período neolítico, quando o bacilo teria passado da vaca ao homem. Sem retraçar a história dos patógenos que encontraram no homem um hospedeiro, nós formularemos algumas proposições analíticas e sintáxicas em uma perspectiva semiótica espacial.

O sujeito infectado não pediu para sê-lo : ele sofreu a infecção. No contágio, o agente patogênico é o sujeito ativo, passando de um organismo vivo a outro para se multiplicar. Se não se trata de lhe atribuir um querer de tipo antropomórfico, deve-se, entretanto, reconhecer nele uma programação genética que lhe permite tirar proveito dos organismos infectados. As frases acima desenham o cenário de uma interação evitando tratar das manifestações da doença. Nós manteremos essa opção e recorreremos a conceitos semióticos para analisar questões de epidemiologia. Reconsideremos a afirmação de que o agente patogênico passa de um organismo vivo a outro. Nem o agente, nem o organismo são aí indivíduos identificados : o vírus em movimento (tomemos, por exemplo, o Covid-19 e a atual pandemia) não foi marcado nem identificado, e o enunciado denota um vírus-tipo e um organismo-tipo anônimos. Dado que um contágio em propagação envolve um número considerável de agentes patogênicos e um outro número de organismos que os abrigam, não se trata de indivíduos representativos de suas classes, mas sim de duas classes em interação, uma classe patogênica infectando uma classe de organismos. O conceito semiótico que melhor convém a uma tal situação é o de ator coletivo, embora ele deva ainda ser especificado de alguma maneira para que possa descrever a interação em questão. Entende-se que o agente patogênico é um ator coletivo, e que os organismos implicados são atores coletivos (infectados de um lado, suscetíveis de serem infectados de outro) que lhe oferecem espaços de propagação. O quadro geográfico da pandemia é apenas um espaço de referência útil para a descrição, visto que os atores não são individuais.

Caso o leitor tenha dúvidas acerca do caráter espacial da pandemia, que considere o seguinte : a quarentena, que suprime todo o contato entre o grupo infeccioso e os grupos suscetíveis de infecção, interrompe a propagação da epidemia. Mais precisamente, a quarentena interrompe o contágio, sem se preocupar em curar a doença. As questões são separáveis, acontecendo em duas escalas espaciais diferentes : o contágio ocorre no nível da população (pelo menos dois grupos), a doença afeta um indivíduo. Sendo a quarentena uma solução espacial, o problema resolvido é necessariamente espacial. Deixando a doença para os médicos, pensamos poder descrever o contágio.

* Traduzido do francês, “La pandémie est une affaire d’espace” (E/C, Rivista dell’Associazione Italiana di Studi Semiotici, 2021) por Marc Barreto Bogo.

1. Apresentação dos atores implicados

Dê-se os créditos a quem merece. No contágio, o actante Sujeito é o vírus : ele se move de organismo em organismo e os infecta um depois do outro. Ele dificulta a vida de seu hospedeiro, pode até mesmo matá-lo, mas é ainda assim o sujeito da ação. Um sujeito valorizado negativamente, porque tendemos a adotar o ponto de vista do organismo atacado, que se parece conosco, mas o vírus é sem sombra de dúvidas o sujeito sintáxico. Seu programa narrativo se desdobra em duas ações distintas (mover-se de organismo em organismo ; reproduzir-se em um organismo) que possuem ambas um caráter espacial (entre, em).

O vírus é invisível a olho nu : no início da epidemia, sua presença só era detectada devido aos efeitos nocivos no organismo hospedeiro (sintomas da doença), depois desenvolvemos testes que detectam sua presença qualitativamente (resposta por presença/vs./ausência), por meio de reagentes químicos, nas mucosas do nariz ou no sangue do hospedeiro. O vírus cuja presença é detectada não é nunca um indivíduo, sempre um grupo, uma carga (viral) quando a quantificação é possível. Ao designar esse grupo pela expressão o vírus, a linguagem denota uma classe de seres supostamente idênticos. Por um ano, o vírus se reproduziu idêntico a si mesmo, ou quase. As variações genéticas observadas não pareciam afetar o seu comportamento. Foi por volta do décimo mês da pandemia que o Dr. Raoult percebeu em Marselha a presença de quatro variantes, cujas contagiosidades diferiam um pouco. No décimo terceiro mês da epidemia, os britânicos apontaram o surgimento de uma variante mais contagiosa, que se propagou rapidamente para outros países. Uma variante sul-africana e uma variante brasileira foram registradas em seguida. A identidade do sujeito foi modificada : se continuamos a dizer o vírus, agora completamos especificando a variante. O que havia sido um ator coletivo único tornou-se uma coleção de atores coletivos aparentados, diferenciados por uma fórmula genética e por uma quantificação de sua capacidade de propagação. Ainda não se trata de um vírus individual identificável : isso permanece além das possibilidades atuais dos laboratórios, mesmo que fosse de interesse.

O Covid-19 não se parece, portanto, com os sujeitos antropomórficos habitualmente descritos pela semiótica narrativa. O fato é que devemos ser capazes de adaptar nossas ferramentas descritivas para dar conta do contágio (sem abordar a doença). O vírus prospera no organismo infectado, utilizando os recursos desse último para se reproduzir em boas condições, por um certo tempo, antes de uma reação perceptível dos anticorpos. Se temos tendência a condenar o vírus pelo seu comportamento, é em virtude de critérios morais : ele faz mal ao organismo que o faz bem, ele cospe no prato que comeu. Não se trata de uma questão de moral aqui, mas de semântica e sintaxe. O vírus penetra no organismo, circula nele e penetra até nas células de tal organismo (terceira escala espacial da análise). Isso equivale a dizer que o organismo infectado é, para o vírus, um espaço de circulação e de reprodução. Ele sai para contaminar outros organismos. A questão ainda é espacial. Resta saber quais são as condições de acesso e de saída dos organismos.

Ao sair de um organismo, o vírus se encontra em um meio menos favorável, pois não há como se reproduzir ali. Ele deve perdurar (permanecer vivo) até que encontre um outro organismo que o receba. Nos meios de transferência (espaços orgânicos ou não orgânicos, como uma superfície sólida, a maçaneta de uma porta ou as gotículas de aerossol exaladas pelo espirro de um organismo infectado que se tornou infectante) entre dois organismos hospedeiros, o Covid-19 pode passar por provações que o ponham em dificuldades, em particular o encontro com água, sabão, desinfetantes, calor, seca, frio extremo... Se ele superar essas provações (e ele às vezes sucumbe a elas), ele encontra um outro organismo para infectar (performance e conjunção).

O outro ator da interação que nos interessa é humano. Ele acumula os papéis de actante Objeto (procurado pelo Sujeito vírus para uma conjunção) e de actante Anti-Sujeito (ele luta contra o Sujeito vírus, às vezes conseguindo eliminá-lo graças aos anticorpos que gera). Por sua qualidade de hóspede abrigando o Sujeito vírus, ele é um espaço penetrável para esse último. No mundo das interações humanas, não encontramos um tal sincretismo de papéis actanciais em um mesmo ator, mas esse é o caso aqui. Não costumamos considerar o corpo humano como um espaço de circulação, mas a medicina faz isso frequentemente, e a interação com o vírus nos exige fazê-lo.

Para que exista contágio, deve haver ao menos dois organismos, um infectado e um suscetível de ser infectado. Para que o contágio se desenvolva e ganhe impulso, é preciso um grande número de organismos suscetíveis a entrar em contato uns com os outros. Esses contatos diretos ou mediados por objetos terceiros dizem respeito a uma problemática espacial, abordável em termos de geometria topológica (contato = contiguidade) ou métrica (medida de distância).

Os indivíduos humanos são identificáveis, o que permite rastrear a trajetória de um ator vírus passando de um a outro. Nesse caso, a sequência concatenada de indivíduos de uma linha de contágio constitui o espaço percorrido pelo Sujeito vírus, ou seu programa narrativo. Uma pesquisa dessas é realizada às vezes pelo rastreamento das infecções contagiosas, e evocamos um paciente 0 que se encontra na origem de uma epidemia em uma dada região.

Na escala de um país, não se distinguem os indivíduos de uma população, essa última desempenhando o papel de um ator coletivo, espaço de propagação do ator vírus. Às vezes, esse ator coletivo é levado em conta apenas segundo aspectos numéricos, seja o tamanho (potência cardinal do conjunto infectado), seja uma proporção ligada a um incremento de contagem (tantos casos por 100.000 habitantes), noção útil para comparar populações de tamanhos diferentes.

O actante Anti-Sujeito sofre o ataque do Sujeito vírus, reagindo melhor ou pior. Ele não é caracterizado por um querer próprio, exceto o de evitar o encontro com o Sujeito vírus. Seu comportamento profilático é o da evitação (não contato). As diversas formas de fuga, de quarentena, de confinamento e de toque de recolher são todas aspectualizações graduais da estratégia de evitação. Quando as formas de evitação são impostas por autoridades políticas, trata-se de um dever externo mais ou menos aceito pelos indivíduos. Uma vez atingido, o organismo reage de maneira programada e independente de sua volição.

 

2. O ator infectante

Deixemos de lado a ação viral que causa a doença e consideremos a ação específica do contágio. A reprodução viral idêntica facilita a descrição do ator coletivo em todas as etapas da propagação, sabendo que o deslocamento não diz respeito a um vírus individual, mas a uma classe formando um ator coletivo. A primeira qualidade descritiva do vírus é a pequenez, o que o deixa invisível a olho nu. Essa qualidade se torna modal quando o anti-sujeito suscetível de ser infectado não pode detectar a presença do agente patogênico. O que equivale a dizer que o vírus se dissimula (fazer não saber), tornando a evitação difícil. O vírus manipula então a competência cognitiva de seu objeto, anti-sujeito potencial. Do ponto de vista pragmático, a pequenez facilita (poder fazer) a penetração do organismo visado (pelas vias respiratórias e pelos olhos), bem como a reprodução interna e a posterior saída pelos aerossóis expelidos.

Para sua reprodução, o vírus apresenta às células do organismo hospedeiro uma “isca” (espícula que faz parte da coroa viral dita corona) que inicia o contato, facilita a penetração na célula e aciona o mecanismo de duplicação pela célula hospedeira. Esse mecanismo situado em escala celular diz respeito também à atração cognitiva e à capacidade pragmática, ainda que essas expressões impliquem a projeção de tais competências ao nível celular. Mas os geneticistas não têm outros vocábulos para descrever essas interações em termos de teoria da informação, e nós adotamos as suas noções. Algumas vacinas agem no nível das “iscas” coronárias e as desativam para interromper a reprodução viral.

A consideração quantitativa do número de vírus simultaneamente presentes no corpo infectado convoca a noção de carga. A carga inicial é mais forte na medida em que o anti-sujeito tenha sido exposto mais longamente a um ambiente contaminado. Se o organismo hospedeiro é capaz de lutar eficazmente contra uma carga inicial fraca, ele sucumbirá a uma carga forte resultante de exposição longa ou massiva. O que estabelece a luta em termos de força relativa (competência).

Após um período de incubação em que o vírus se reproduz a uma taxa exponencial (sua propagação em nível celular segue as formas de contágio descritas no nível dos organismos), ela migra, impelido pela contraofensiva dos anticorpos do organismo hospedeiro. Para passar de um organismo a outro, ele precisa (condição necessária) ter contato com outros organismos (por exemplo, os visons de criadouros na Dinamarca) ou com objetos de transferência. Na falta de contato, ele permanece preso no organismo hospedeiro. Ou ele é destruído pelos anticorpos, ou o organismo hospedeiro é que morre sob o ataque viral. Nesse caso, o vírus não pode mais se reproduzir. Ainda não sabemos por quanto tempo ele pode sobreviver em um hospedeiro morto.

 

3. O ator infectado, tornado infeccioso

Sempre que possível, evitamos as questões da doença, para nos restringirmos aos atores do contágio. Uma dificuldade descritiva é dada pelo fato de que o ator infectado e o ator suscetível de ser infectado são indiscerníveis enquanto não haja intrusão viral : o que os distingue é a presença do vírus no grupo infectado, e sua ausência no outro. Juntos, eles formam a totalidade da população em questão. No início do contágio, há poucos organismos infectados. Seu número aumenta às custas do grupo que não estava infectado. No final de uma epidemia, não há mais muita gente suscetível de ser infectada. O ator coletivo infectado evolui em número, sua identificação médico-física às vezes é difícil durante a epidemia, mas a oposição semântica é clara.

A designação grupo infectado pressupõe uma infecção realizada. Parece que o ator coletivo vírus se propaga por contiguidade no espaço de cada corpo individual. O primeiro espaço infectado é chamado local de incubação (atualização do ator objeto). O ator viral se multiplica ali (realização do sujeito) e adquire a capacidade de se espalhar para o resto do corpo. O organismo hospedeiro, que havia sido fisgado e não havia reagido em contra-ataque, já desencadeou nesse momento a produção de anticorpos capazes de destruir o vírus. Uma reação excessiva do organismo pode produzir um ataque contra o próprio organismo : é uma das formas de complicação decorrentes da ação viral. Nesse caso, o vírus surge como um manipulador que faz o corpo fazer certas coisas.

Enquanto o organismo hospedeiro não produz anticorpos eficazes em quantidade suficiente, o vírus prospera em seu hospedeiro e não tem motivos para sair. Assim, o corpo infectado não é infeccioso : é o portador não contagioso. Quando a existência do vírus é ameaçada pelo seu hospedeiro anti-sujeito, ele considera que esse último não seja mais um espaço objeto desejável (o hospedeiro só é desejável por um tempo limitado). Ele se disjunge dele para se reproduzir em um outro organismo menos perigoso : esse é o mecanismo de base do contágio. O destino dos indivíduos virais que permanecem no corpo infectado é serem destruídos pelos anticorpos, enquanto aqueles que saem têm uma chance de continuar a se reproduzir. Como o vírus não é um indivíduo, mas um ser coletivo, uma espécie, ele continuará a viver fora do corpo hospedeiro temporário.

Vimos que o estado contagioso é limitado no tempo. Ele também é limitado no espaço : o vírus não escapa pela pele, que é fechada para ele, mas pelos orifícios-limiares de entrada e saída ligados ao sistema respiratório (parece que ele também é evacuado nas fezes, sendo esse mecanismo menos descrito). Ele é veiculado pela tosse, ato que o expulsa do corpo que se defende. O ator infectado pode tentar bloquear a saída do vírus evitando tossir, tossindo em um objeto descartável, assoando o nariz em um lenço descartável, usando uma máscara que impeça a projeção intempestiva do vírus... As mãos salpicadas de saliva têm o estatuto de espaço de transferência intermediário, é possível evitar contaminá-las (cobrir a boca com o cotovelo ao tossir) ou lavá-las, assim como desinfetamos maçanetas de portas. A tosse é desencadeada pelo vírus, que utiliza os mecanismos programados do corpo hospedeiro. O ator infeccioso é manipulado pelo ator infectante : sem contrato fiduciário, eles estão objetivamente nas posições de Sujeito manipulador e Sujeito manipulado. Convém ressaltar que essa forma de manipulação ocorre sem volição nem dever, segundo uma lógica da programação, identificada nos trabalhos de Eric Landowski.

 

4. O ator suscetível de ser infectado (infectável)

O ator coletivo suscetível de ser infectado é caracterizado inicialmente por uma ausência de querer relativa ao sujeito vírus (não querer conjungir), mas ele se orienta desde o início do contágio rumo a um querer contrário, aquele de evitar o sujeito vírus (querer não conjungir). No início do contágio, esse ator coletivo é quase coextensivo à população inteira, com exceção dos raros indivíduos infectados. Com a progressão do contágio, o número de indivíduos suscetíveis de serem contaminados diminui até que o contágio se torna difícil : esse é o fenômeno identificado por Ronald Ross em 1896, acerca da malária, a partir do qual Major Greenwood forjou a expressão imunidade de rebanho (herd immunity) no início do século XX. Em outras palavras, mesmo sem eliminar o agente patogênico, o contágio (propagação) cessa porque seu ator sujeito não encontra mais organismos para infectar, sua competência é limitada por um não poder fazer. Sem indivíduos infectáveis, o contágio termina ou passa a um estado latente, virtual, sem que a doença ou o agente patogênico tenham sido tratados clinicamente. A cura e a vacinação têm um outro efeito na população : ao garantir aos organismos a capacidade (competência) de enfrentar e destruir o agente patogênico, elas os fazem sair do grupo infectável para se unirem a um quarto grupo, o ator coletivo dos organismos não suscetíveis de serem infectados. Isso evidencia um outro fato : os indivíduos infectados não permanecem eternamente infectados. Eles se curam, adquirindo imunidade, ou eles morrem.

A pele forma uma barreira contra a entrada do Covid-19 no interior do organismo. Ela equivale, na escala das interações humanas, a uma proteção material que proíbe a entrada (não poder fazer). As vias de penetração preferencial (locais do poder fazer) identificadas pelo vírus são as vias respiratórias (boca, nariz) e o canal lacrimal, todas levando ao local de incubação preferido do vírus : entre as fossas nasais e a garganta. A proteção dessas vias de acesso (equivalentes às soleiras das portas na arquitetura) e a evitação de contato (afastamento por distância) protegem o ator suscetível de ser infectado. Outros contágios passam por agentes intermediários ativos, como os mosquitos da Malária e da Zika, ou as pulgas de rato para a peste, cujas picadas perfuram a barreira defensiva da pele para chegar ao sangue suscetível de ser infectado.

 

5. Atores mediadores ou intermediários da contaminação

O vírus expulso de um organismo infectado não encontra necessariamente outro organismo para infectar. Nessa situação, ele se encontra em um espaço intermediário, onde ele pode permanecer um certo tempo esperando um organismo infectável. Como os espaços intermediários não permitem a reprodução do vírus, eles interrompem seu programa de base e se tornam um anti-sujeito passivo. Na medida em que os espaços intermediários permitem a sobrevivência do vírus, eles constituem um adjuvante passivo, virtualizando o sujeito, na espera de uma atualização pelo contato com um organismo infectável. A distância entre os organismos infectado e infectável constitui também um anti-sujeito passivo.

Estar fora do alcance do vírus em movimento parece ser uma excelente defesa contra esse último : ele não pode (não poder fazer) percorrer grandes distâncias. Daí se supõe que a gravidade o atrai e que ele cai : a gravidade terrestre prejudica o sujeito vírus, ajudando o anti-sujeito organismo, mas o resultado final depende das posições relativas do sujeito infeccioso e do sujeito infectável. Para o Covid-19, foi dito que a distância de proteção era de um metro, depois um metro e meio, depois dois metros para a variante britânica. Na verdade, a distância não é medida no vácuo, mas no ar, onde diversas correntes de convecção podem carregar (adjuvante) o vírus e aumentar o alcance de seu deslocamento.

Nós temos apenas uma vaga ideia do tempo de vida do Covid-19 fora de um organismo hospedeiro. Os ambientes úmidos e frios (como os matadouros) parecem prolongar sua vida fora do organismo, enquanto o calor e a seca parecem desfavoráveis. Água com sabão dissolve a membrana superficial do vírus e provoca sua destruição. As soluções alcoólicas têm um efeito nocivo contra o vírus. Não são barreiras, mas anti-sujeitos delegados. Os anti-sujeitos específicos são os anticorpos produzidos pelos organismos infectados : eles foram produzidos para destruir o ator sujeito infectante. Esses anticorpos explicam, afinal, a tendência do vírus de deixar o corpo infectado : se ele ficasse ali por tempo demais, ele seria destruído. A menos que ele destruísse o organismo hospedeiro, o qual ele não pode mais utilizar para se reproduzir. O resultado da luta é violento, nas duas direções.

 

6. Mecanismos do contágio : transferência simples
e transferências compostas

Os mecanismos de contágio evocados são similares no nível dos organismos e no nível das células, com o vírus saindo de um espaço infectado para penetrar um espaço infectável. Além da diferença de escala, os dois níveis oferecem ao vírus meios intermediários distintos : o espaço de transferência é orgânico no nível celular (líquidos corporais) e não orgânico no nível dos corpos vivos. Em ambos os casos, o patógeno não infecta tudo aquilo que encontra : ele realiza uma seleção entre infectável e não infectável. A seleção é baseada em uma fraqueza do sistema de defesa encontrado : no nível dos organismos, os atores objeto se deixam enganar pela invisibilidade do vírus ; no nível das células, essas se deixam fisgar pelas proteínas da coroa viral que possibilitam o atravessamento da membrana externa das células visadas. Para além desses mecanismos, não sabemos nada sobre possíveis tentativas de infecção malsucedidas. Há organismos resistentes que não sofrem com a presença do agente patogênico, o qual só é patogênico para outros organismos. Não infectáveis, eles são expostos ao ciclo do contágio sem sofrê-lo. Os insetos portadores da malária ou da peste não parecem afetados por tais doenças, embora sejam agentes transmissores. Esses mecanismos, em grande parte, escapam ao nosso conhecimento.

Voltemos à transferência do contágio. Dado que o vírus é um ator coletivo, e que as populações infectadas e infectáveis são também atores coletivos, as transferências do contágio apresentam um caráter múltiplo marcante e vários indivíduos são infectados em um curto intervalo de tempo. Esse aspecto numérico é quantificável, sendo evocado pelos jornais mais frequentemente do que o aspecto espacial do contágio. Ele é ainda mais fascinante por possuir um caráter exponencial. Mede-se experimentalmente a velocidade de propagação de uma epidemia no espaço social : a partir da contagem de casos infectados (dado numérico ou representação por curva gráfica), pode-se determinar um período ao final do qual o número de casos dobrou. Se a epidemia é lenta, o tempo de duplicação é longo. Se a epidemia é rápida, o tempo de duplicação é curto. Essa qualidade descritiva diferencia a contagiosidade das variantes de um mesmo vírus.

A duplicação do número de casos infectados se deve à iteração de sucessivas operações de propagação. A evolução quantitativa se assemelha àquela dos juros compostos na área financeira : o valor dos juros pode não ser elevado, mas a composição dos juros (a cada iteração, o valor de base não é mais o valor inicial, mas sim o valor resultante das repetidas aplicações de juros) produz um crescimento exponencial. Na falta de medidas de controle do contágio, o crescimento do grupo infectado só é limitado pela diminuição progressiva do número de casos infectáveis, e a curva representativa do contágio assume a forma de um sino, em que o supremo representa o pico da epidemia. As medidas que instauram descontinuidades espaciais (distância ou barreira) rompem a cadeia de contágio, que desacelera dependendo da eficácia das medidas adotadas.

A abordagem quantitativa do crescimento do número de infectados passa pela noção do número de Reprodução R, desenvolvida por K. Dietz a partir dos trabalhos de G. MacDonald. R representa o número médio de indivíduos infectados por um indivíduo infectante. Se R for menor que 1, o número de indivíduos infectados diminui e o contágio acaba sendo suprimido. Se R for maior que 1, o número de infectados aumenta e o contágio se espalha. Ele se alastra mais rapidamente quanto maior for o valor de R, por meio da iteração, como nos juros compostos. Isso lembra a importância fundamental do número de iterações do contágio, ligado à velocidade de sua propagação.

Os cálculos sobre a propagação dos fenômenos contagiosos são fascinantes, mas eles alcançam uma complexidade considerável, sobretudo quando se lhes demanda um valor preditivo. O espaço que nos é dado para a publicação impõe limitar a ambição deste ensaio à abordagem espacial semio-narrativa.

 

7. A luta contra o contágio

A infecção viral acontece em duas escalas diferentes : a dos organismos individuais (transferência) e a das células (reprodução) no interior do organismo. Não temos informações suficientes relativas à biologia do vírus para empregar nossos conceitos analíticos no nível celular, mas a epidemiologia nos permite avançar no nível do contágio entre indivíduos. É aí que a abordagem espacial é eficaz, permitindo dispensar uma abordagem médica. Porque todo contágio humano pode ser controlado por medidas de evitação espacial : basta romper as cadeias de transmissão para interromper o contágio. Se a epidemia já começou no momento em que a ação seria desejável, é importante agir o mais rápido possível para conter as iterações do contágio, cuja composição tem um efeito exponencial. Quanto mais deixarmos o contágio se desenvolver, mais numerosos se tornam os locais de intervenções necessárias para interromper o contágio. Convém intervir nos locais de transmissão mais intensa. Não é necessário eliminar todos os patógenos para deter o contágio (hipótese de Ronald Ross, verificada inicialmente no caso da malária), basta atuar em um número mínimo de lugares, pois a diminuição do grupo dos “suscetíveis a serem infectados” faz o resto. O mecanismo não é médico, ele é próprio da propagação em ambiente fechado. Em termos semióticos, isso equivale a diminuir a competência do sujeito infectante (poder contaminar). Não se atua sobre o vírus, mas sobre a sua modalidade do poder. A doença pode continuar a existir em sentido absoluto, em algum lugar em um reservatório discreto, mas não há mais contágio.

 

À guisa de conclusão

Um dos primeiros resultados dessa análise é o da separação semântica entre doença e contágio. Nós mostramos que é possível tratar o segundo em termos de espaço sem ter competência para tratar a primeira. Ao longo da análise, percebeu-se que o contágio é uma estratégia de vida para o vírus, um programa de base que inclui sua reprodução e sua propagação. O vírus tende a ocupar a totalidade do espaço social. Sua empreitada está objetivamente condenada ao fracasso : se o espaço social for ocupado, o vírus não poderá mais se propagar, ele será eliminado pelos anticorpos. O que diferencia os cenários possíveis é o número de mortes eventuais durante a epidemia. Em suma, todo contágio inevitavelmente acaba, mas ele é mais ou menos custoso em vidas. Gerir um contágio é, em primeiro lugar, diminuir o número de vidas perdidas e de afetações dolorosas e, em segundo lugar, diminuir os custos financeiros do combate. Em tal dinâmica, o vírus não é colocado como sujeito sintáxico, mas como anti-sujeito indesejável, antagonista. Antes da epidemia e suas medidas de segurança que rompem os contatos sociais, as pessoas não se davam conta da importância e da intensidade dos contatos constitutivos de suas vidas cotidianas no espaço social e no espaço físico.

De um ponto de vista metodológico, destacamos a relevância do espaço para a análise do contágio e a importância da noção de escala analítica, com a necessidade de três escalas superpostas : a do grupo humano, a do corpo humano e a das células do corpo humano. O vírus exige considerar o corpo humano como um espaço penetrável, em que a circulação é possível : trata-se de uma questão de escala. Destacamos também a importância da noção de ator coletivo, que deve ser ainda refinada para fazer avançar esse tipo de análise. Como o vírus não é um ser individual, é a espécie viral em seu conjunto que forma o vírus.

Muitas questões relativas ao vírus e ao contágio restam em aberto (por exemplo, a gestão do tempo por meio dos períodos de confinamento ou de toque de recolher). A única ambição desse ensaio foi elaborar alguns conceitos que permitem melhor compreender os fenômenos em curso.

 

Bibliografia

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— et Joseph Courtés, Sémiotique. Dictionnaire raisonné des sciences du langage, Paris, Hachette, 1979.

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Kucharski, Adam, The rules of contagion, Londres, Profile Books, 2020.

Landowski, Eric, Les interactions risquées, Limoges, Pulim, 2005.

 


* Traduzido do francês, “La pandémie est une affaire d’espace” (E/C, Rivista dell’Associazione Italiana di Studi Semiotici, 2021) por Marc Barreto Bogo.

 

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Mots clefs : actant, acteur collectif, anti-sujet, compétence, contagion, covid-19, espace, manipulation, modalités (pouvoir, vouloir), programmation, sujet, vouloir.

Auteurs cités : Algirdas J. Greimas, Adam Kucharski, Eric Landowski.


Plan :

Introdução

1. Apresentação dos atores implicados

2. O ator infectante

3. O ator infectado, tornado infeccioso

4. O ator suscetível de ser infectado (infectável)

5. Atores mediadores ou intermediários da contaminação

6. Mecanismos do contágio : transferência simples e transferências compostas

7. A luta contra o contágio

À guisa de conclusão

 

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Recebido em 03/02/2021. / Aceito em 03/03/2021.