Crise politique

Uma dinâmica
interacional complexa

Yvana Fechine
Universidade Federal de Pernambuco
PUC-SP, Centro de Pesquisas Sociossemióticas

Publié en ligne le 4 mars 2021
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2021n1.54179
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Introdução

Tratando constantemente, no seu discurso e nas práticas, a pandemia da covid-19 no Brasil como uma “gripezinha”, o presidente da Republica, J. Bolsonaro, foi um dos chefes de Estado a adotar um comportamento pautado pelo negacionismo e anticientificismo. Ele atacou as quarentenas decretadas por governos municipais e estaduais, estimulou a população a desobedecer às orientações das autoridades sanitárias do seu próprio Governo, vetou leis que fixavam medidas para proteger grupos vulneráveis, participou de protestos contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal por contrariarem suas decisões e passou a agir como “garoto propaganda” da cloroquina, substância sem eficácia comprovada. No auge da pandemia, ele demitiu dois Ministros da Saúde e colocou no lugar deles um general sem competência na área. Quando o Brasil ultrapassou os 100 mil mortos, ele respondeu com um famoso “E daí ?”.

Por esse comportamento, ele foi considerado, na imprensa estrangeira, o pior líder mundial a enfrentar a pandemia. Em 31 de março de 2020, The Guardian destacou que ele representava “um perigo para os brasileiros”. Em um editorial do dia 14 de abril de 2020, o Washington Post considerou as suas ações como “de longe, o caso mais grave de improbidade”. Na mesma semana, no Corriere della Sera, recebeu nota 2 em uma escala que vai de zero a 10 num ranking que avaliou a atuação de onze líderes mundiais na crise. Em 15 de maio, quando o Brasil já apresentava uma das maiores taxas de contaminação do mundo, ele foi severamente criticado pelo Financial Times. Num editorial do mesmo mês, Le Monde o acusa de politizar de modo irresponsável a crise de saúde.

Essa péssima imagem internacional contrastava fortemente com as pesquisas nacionais de opinião que indicavam uma estabilidade na sua popularidade, com pelo menos um terço dos entrevistados aprovando seu Governo. No decorrer da pandemia, ele não apenas recuperou uma parte da popularidade que tinha quando foi eleito, mas, passados oito meses da chegada do novo coronavírus ao Brasil, esta havia até aumentado. Como explicar então esse aparente paradoxo ?

1. Uma estranha combinação entre regimes interacionais

Para grande parte dos analistas políticos, essa popularidade foi o resultado direto do pagamento, ao longo de seis meses, de um auxílio de R$ 600 reais às parcelas mais pobres da população e aos trabalhadores prejudicados pela paralisação das atividades econômicas impostas pelas medidas de distanciamento social. É inegável o potencial que uma política de transferência de renda possui para inflar a popularidade dos governantes, especialmente em países com grandes desigualdades sociais e com processos políticos marcados pelo clientelismo, como o Brasil.

Mas, seria esse auxílio financeiro a única, ou mesmo a principal razão, para o êxito popular do comportamento presidencial nessas circunstâncias ? Parece-nos que a explicação não pode ser tão simples. Além do cálculo eleitoreiro — em termos semióticos, da “manipulaçao” — que consiste em, de certo modo, “comprar” o favor popular por uma medida pontual de ajuda, cabe enxergar a estratégia presidencial nas suas mais diversas dimensões. Por isso, sem relativizar o peso que tem o dinheiro no bolso em momentos de crise não apenas sanitária, mas econômica, proponho aqui pensarmos também a importância capital da comunicação do presidente, na qual ele se valeu de uma curiosa conjugação entre regimes de sentido e de interação.


1.1. Modelo e procedimento de análise

Por terem a conquista ou a renovação dos seus mandatos como objetivo a priori, políticos raramente conseguem manter uma interação com seus eleitores que não seja da ordem da manipulação. Modo de interação bem descrito pela gramática narrativa, a manipulação remete às relações contratuais entre os actantes : um fazer o outro fazer, a partir das suas volições e motivações. Isso implica em um sujeito manipulado a partir dos conteúdos postos em circulação por um sujeito manipulador. Essa lógica transacional — troca de mensagens, de simulacros, “de objetos de valor” etc. — pressupõe um contrato, explícito ou não, entre sujeitos. No modelo interacional proposto por Eric Landowski, a manipulação é descrita como o regime orientado pelo princípio da intencionalidade, porque, na sua base, há uma lógica da motivação recíproca — uma motivação com caráter fundamentalmente “econômico”, um “cálculo” relativo ao valor dos “serviços” reciprocamente prestados por cada parte envolvida no “contrato” — no nosso caso, um “cálculo” e um “contrato” políticos1.

1 Cf. E. Landowski, Interações arriscadas (2005), São Paulo, Estação das Letras e Cores - CPS, 2014, pp. 25-30.

Além da manipulação, o modelo interacional prevê três regimes alicerçados em outros princípios : a programação, fundada na regularidade dos fenômenos, e — o que aqui mais nos interessa — os do ajustamento e do acidente. Se a manipulação depende do contrato entre os sujeitos, no regime de interação por “ajustamento”, a maneira pela qual um ator influencia um outro passa pelo contato. Depende, antes de mais nada, da presença de um ao outro. Busca-se, neste quadro, um fazer junto possibilitado pelo fato de que os protagonistas sentem juntos (uma emoção, um sentimento, uma sensação ou mesmo um tipo de intelecção) ou, pelo menos, têm a capacidade de sentir mutuamente os respectivos estados afetivos, passionais ou até mesmo somáticos por alguma forma de contágio sensivel (e, neste contexto, não viral) . É na própria interação entre os interactantes, alçados agora à condição de parceiros, que os comportamentos, papeis, posições emergem pouco a pouco, a partir do ajustamento de um ao outro instaurado nesse seu contato. Em outras palavras, o princípio do ajustamento é a sensibilidade recíproca.

O regime do acidente, que também se define como aquele de um eventual assentimento diante do que é acidental, imprevisível, do inescapável, ininteligível, do inexplicável, está fundado, antes de mais nada, no princípio da aleatoriedade. Se a programação pressupõe uma ordem previsível (no plano tanto social quanto natural), com comportamentos ou atuações predeterminadas, o regime do acidente (e do assentimento que pode acompanhá-lo) se define, ao contrário, a partir do que representa o máximo de não-regularidade, ou seja, o acaso — quer no sentido do álea matemático e estatístico, quer no sentido “místico” dos fatalistas ou dos supersticiosos. Diante da ruptura das regularidades de qualquer natureza, que nos coloca frente ao inevitável e, em certa medida incontrolável, resta, como o nome sugere, o assentimento frente ao que se manifesta, muitas vezes e inclusive, como algo transcendente.

Assumindo como pressuposto que a manipulação é, por excelência, o regime que sustenta as interações dos políticos com seus eleitores, é a partir dele que vamos começar a pensar o comportamento do atual presidente brasileiro. Para tal, utilizaremos, enquanto nosso corpus, suas postagens do Facebook, plataforma na qual costuma se dirigir aos seus seguidores por meio de transmissões ao vivo (lives) quase diárias. Seguimos sistematicamente essas transmissões entre abril e agosto de 2020. Todavia, não vamos referenciar postagens específicas, preferindo tratar das situações e efeitos mais gerais identificados no período de observação. De forma complementar, o monitoramento do perfil do presidente, por meio de registro em diários, foi ainda apoiado pelo acompanhamento das repercussão de suas postagens e de outros pronunciamentos públicos (entrevistas, pronunciamentos oficiais etc.) noticiados por jornais e portais na internet.


1.2. A questão teórica em pauta

A análise dos posicionamentos do presidente sobre a pandemia mostrou que as estratégias manipulatórias para convencer seus seguidores a apoiar suas ideias envolveu, em diferentes momentos, um apelo aos demais regimes de interação. Landowski já mostrou como a política não mobiliza apenas pelo apelo à racionalidade ou passionalidade, mas, cada vez mais, recorre a um contágio estésico que se constitui de modo oposto à persuasão cognitiva e à manipulação patêmica2. O contágio estésico não depende de argumentos ou promessas eleitorais (contratos), e sim de um estar junto, de um sentir-se junto (contato), de um modo de presença de um ao outro.

2 Cf. “La politique-spectacle revisitée : manipuler par contagion”, Versus, 107, 2008.

Ao descrever esse modo de interação ora como uma “manipulação por contágio”, ora como um “ajustamento sensível”, o autor recorre à conjugação dos dois regimes — manipulação e ajustamento — para explicar a estratégia populista de extrema direita3. A observação do comportamento do presidente brasileiro, no decorrer da pandemia, indicou, no entanto, uma manifestação mais complexa dessa conjugação de regimes, apontando para uma possibilidade teórica que Landowski havia proposto ao apresentar inicialmente o seu modelo interacional. Inicialmente, para dar conta da passagem de um regime a outro no decorrer de um mesmo ou de distintos processos interacionais, o autor colocava os quatro regimes e seus respectivos princípios na forma de uma elipse que indicava um percurso geral conduzindo sintagmaticamente de um regime para outro segundo uma dada ordem (indicada pelas flechas do esquema)4. Mas, a seguir, notando o que havia ainda de demasiadamente esquemático no modelo, ele postula a possibilidade de “processos de mutações, dentro de cada regime”, de tal modo que caberia prever “pequenas elipses que articulariam a lógica interna de outros tantos percursos de transformação” no interior de cada um deles, conforme indicado neste segundo diagrama :

3 Cf. “Crítica semiótica do populismo”, Galáxia, 44, 2020.

4 Cf. Interações arriscadas, op. cit., Diagrama 1, p. 80.

“Diagrama 2” apresentado in Interações arriscadas, op. cit., p. 85.

Conceber um processo interacional que se molda dessa forma implica em admitir, no caso das interações políticas, não apenas uma manipulação por ajustamento, mas também uma manipulação que opera em conjugação não apenas com o regime com o qual se aproxima tendencialmente, a programação, mas inclusive com seu contraditório, o assentimento. É isso o que parece estar indicado nas pequenas elipses superpostas em cada uma das posições (regimes) da elipse maior que sintetiza o modelo interacional simplificado.

A partir daí, raciocinando nos mesmos moldes da gramática narrativa, podemos supor a existência de um “regime de base” da interação em prol do qual os demais regimes se manifestariam como “regimes auxiliares” a serviço do princípio geral que rege a relação entre os interactantes. Teremos, neste caso, uma interação complexa, na qual a manifestação global de um regime dominante passa pela ativação “auxiliar” de um outro ou — mais interessante no presente caso — de uns (ou de todos) os outros.

No entanto, ao invés de pensarmos em termos de uma hierarquização, na qual um “regime de base” teria a função principal, pode ser até mais produtivo pensarmos essa conjugação em termos de uma relação entre uma instância englobante e outras englobadas — um modo de organização de categorias, por sinal, muito caro à semiótica. Nessa perspectiva, o “regime de base” define o princípio englobante da interação, enquanto os “regimes auxiliares” funcionariam como princípios englobados dando lugar a uma dinâmica interacional que depende necessariamente de sua articulação. É somente nesta articulação que se compreende o sentido de determinadas interações, pois, como tudo que se organiza na lógica englobante / englobado, um regime está contido no outro e, fora dessa relação, não pode ser plenamente compreendido. O desafio é entender como se dá essa inter-relação entre regimes.

 

O próprio Landowski indica a necessidade de verificar a hipótese dessa dinâmica dentro de cada regime, a partir de “corpus textuais precisos” ou de “práticas empiricamente observáveis”5. É seguindo por esse caminho, que pretendemos apontar como, de modo alternado ou concomitante, Bolsonaro sustentou suas estratégias manipulatórias ao longo da pandemia em princípios que caracterizam ora o ajustamento, ora assentimento, ora a programação. Podemos, por esse caminho, tratar de uma manipulação por ajustamento, de uma manipulação por assentimento, de uma manipulação por programação e, como não podia deixar de ser, da manipulação “pura”, por si só. A descrição de cada uma das configurações que resultam dessa conjugação de regimes depende, no entanto, da alternância paradoxal dos papeis assumidos pelo chefe de Estado. De acordo com o que é mais conveniente para seu “cálculo” eleitoral, ele comporta-se ora como “presidente”, ora como “não presidente”. Como se elegeu posando do político “antissistema” e “contra tudo que está aí”, ele não hesita em desconsiderar, quando lhe é conveniente, o cargo que ocupa, seja opondo-se às medidas impopulares do seu próprio Governo, seja culpando os demais poderes ou governantes. É nesse jogo de papeis, sustentado por procedimentos deliberados de desinformação, que Bolsonaro lastreia essa complexa dinâmica interacional com seus apoiadores.

5 Ibid., p. 85.

2. Regimes de interação entre Bolsonaro e apoiadores na pandemia

2.1. O fazer manipulatório de base

É quando Bolsonaro assume mais claramente o papel de presidente que sua manipulação política se torna mais evidente. Ele insistiu exaustivamente, em todas as suas postagens e pronunciamentos públicos, na necessidade de manter as atividades econômicas em funcionamento, a despeito das orientações das autoridades de saúde recomendando o distanciamento social e, portanto, a suspensão temporária dos serviços e do comércio, o fechamento temporário de escolas e espaços públicos, entre outros. Nas lives diárias que fez entre abril e agosto de 2020, o presidente não perdia a oportunidade de sugerir aos apoiadores que os efeitos do novo coronavírus na economia eram tão devastadores quanto da saúde, convidando-os ao “cálculo” de vantagens e desvantagens. Na contramão do que pregava o seu Ministro da Saúde na época, Luiz Henrique Mandetta, que apelava para os brasileiros ficarem em casa, o presidente chegou a autorizar a veiculação de uma campanha oficial — “Brasil não pode parar” — defendendo o fim do confinamento. Para convencer os apoiadores, ele insistia que os brasileiros teriam que escolher entre manter as medidas de distanciamento social ou os empregos. Tratava-se, evidentemente, de um falso dilema que ele insistia em repetir, escondendo a possibilidade do Governo adotar outras medidas econômicas para manutenção de empregos e renda (medidas alternativas que foram descartadas porque contrariavam o controle de gastos públicos exigidos pelo Mercado). O que importa, no entanto, é que, independentemente de serem falsos ou verdadeiros, os argumentos do presidente pretendiam convencer à população do “preço” do isolamento social.

Ao mesmo tempo em que criticava o isolamento social, Bolsonaro procurava também insistentemente persuadir à população a usar a cloroquina. Depois de autorizar que o laboratório do Exército investisse milhões na produção do medicamento, mesmo sem estudos científicos conclusivos a respeito, Bolsonaro passou a se comportar nas redes sociais como um verdadeiro garoto propaganda da cloroquina para justificar o investimento e a inclusão do medicamento nos protocolos do Ministério da Saúde. Dessa vez, os falsos argumentos do presidente apelavam para disseminação da dúvida. Ele alegava que do mesmo que não existia ainda pesquisas comprovando que a cloroquina curava a covid 19, também não havia estudos comprovando que não curava. Instalada a dúvida, o presidente argumentava que caberia ao doente decidir se tomava ou não a cloroquina e, para reforçar à crença no medicamento, dava o testemunho pessoal de que o remédio funcionou pra ele (pois também contraiu a doença). Nas redes sociais, apoiadores já se referiam à cloroquina e a uma das suas variantes, a hidroxicloroquina, como o “remédio de Bolsonaro”. Mais uma vez, importa aqui menos o mérito da discussão — a eficácia ou não da cloroquina — e mais o fazer manipulatório do presidente que, às custas da desinformação, convenceu os seus apoiadores que o Governo podia fornecer um “remédio milagroso” para a doença, desde que fosse solicitado pelos prefeitos, prescrito pelos médicos e aceito pelo paciente.


2.2. Iterações programadas e robotização do político

Embora seja difícil de quantificar, as declarações do presidente criticando o isolamento social e promovendo a cloroquina operavam com o automatismo próprio da programação. As inúmeras transmissões ao vivo pela web feitas em frente ao Palácio do Alvorada, onde o presidente costumava parar para conversar com seus apoiadores, invariavelmente acabam voltando, com os mesmos discursos ensaiados, a estes dois temas, seja quais fossem os assuntos na ordem do dia. O emprego de argumentos simplistas, sustentados por algumas poucas frases de efeito, parecia mesmo feito sob medida para a iteração almejada. Os milhares de comentários provocados por postagens repetitivas testemunhavam também uma reprodução mecânica das mesmas ideias sobre a pandemia, usando frequentemente, e inclusive, as mesmas expressões empregadas pelo presidente ou reproduzindo as hashtags difundidas por robôs da internet.

 

A utilização de robôs programados para alavancar os assuntos convenientes e as hashtags de apoio ao presidente foi um procedimento flagrado por estudiosos de redes sociais e amplamente divulgado pela mídia6. Com seu exército de boots, Bolsonaro constrói, antes de mais nada, um simulacro de interação. Ao mesmo tempo em que contribuem para a encenação de sua popularidade, esses ciborgues estimulam os usuários humanos a aderir à mesma “onda de apoio” como se fossem parte de uma espécie de “massa domesticada”, sem juízo de valor próprio, que se comporta como um rebanho guiado pelo presidente. Por esse comportamento obediente, independentemente de quais sejam os assuntos, os seus apoiadores passaram a ser taxados de “gado”, um apelido que deu origem a inúmeros memes e hashtags em resposta às suas postagens. No Facebook, o meme “EuSouGadodoBolsonaro” aparecia frequentemente na caixa de comentários de sites de notícias, em postagens que faziam referência ao presidente7. A expressão contida no meme é um desdobramento da frase “Eu sou um robô do Bolsonaro” com a qual aliados do presidente satirizavam as acusações de que o apoio recebido nas redes sociais, assim como os ataques virtuais aos seus opositores, eram feitos por boots da internet8.

6 https://veja.abril.com.br/blog/radar/pf-descobre-o
-que-muitos-imaginavam-os-robos-bolsonaristas/

7 https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2020-06-22/bolsonaristas
-erram-ao-acionar-robos-e-declaram-apoio-ao-presidente-ate-2016.html

8 https://www.museudememes.com.br/
sermons/eu-sou-um-gado-do-bolsonaro/

Em que pese seu caráter depreciativo ou satírico, as expressões “gado bolsonarista” ou “robô do Bolsonaro” acabam indicando o tipo de interação “programada” mantida com ao menos uma parte de seus seguidores no Facebook. No que dizia respeito à pandemia, o negacionismo presidencial foi tão internalizado ou “assumido” pelos seus seguidores que os comentários às suas postagens pareciam fazer parte de uma espécie de “algoritmo” de comportamento sustentado por determinações preexistentes, estáveis e cognoscíveis dos valores do outro. Esse comportamento previsível está condicionado à regularidade no papel temático de “bolsonarista”, designação dada aos apoiadores incondicionais do lider. Mesmo quando o presidente desafiava as evidências científicas em relação à evolução com informações distorcidas ou quando suas declarações eram desmentidas por autoridades da Organização Mundial de Saúde, os seus apoiadores continuavam a repeti-las. As hashtags do tipo #FechadosComBolsonaro ou #BolzonaroTemRazao, que acompanhavam frequentemente os comentários às postagens do presidente, exemplificavam igualmente esse papel “programado” no processo interacional marcado por uma fidelidade dogmática diante da autoridade incontestável do “mito”, modo pelo qual o presidente é tratado pelos bolsonaristas.


2.3. A retórica do contato direto : ajustamento a serviço
do fazer manipulatório

Essa obediência cega e automática, que beira a insignificância (nos termos do modelo interacional), ganha sentido justamente quando o presidente se despe desse papel e aposta no contato não apenas passional, mas pessoal, com seus apoiadores. Coloca-se no lugar do “pai de família” impedido de garantir o sustento da família porque as medidas de distanciamento social provocaram a paralisação das atividades econômicas. Expressa sua solidariedade com os pequenos comerciantes, prestadores de serviço autônomos, vendedores ambulantes e com várias outras categorias de trabalhadores informais que perderam renda durante a pandemia. Apesar das recomendações de distanciamento social, o presidente investiu, ao longo de toda a pandemia, no contato direto e no “corpo a corpo” com populares. Sem máscaras, abraçando ou apertando a mão de eleitores, ele visitou áreas de comércio informal, frequentou padarias, lanchonetes, lojas e postos de gasolina. Como já mencionado, também provocou inúmeras aglomerações em frente ao Palácio da Alvorada, onde todo dia recebia grupos de apoiadores para sessão de fotos e conversas informais que, invariavelmente, terminavam culpando prefeitos e governadores pela perda de renda e empregos provocada pelas medidas de distanciamento social.

 

Todos esses momentos eram impreterivelmente registrados em vídeos ao vivo ou gravados veiculados pelo Facebook do presidente, repetindo um procedimento que o presidente já adotava, antes da pandemia, e por meio do qual ele constrói o simulacro dessa uma “ligação pessoal” e laço emocional com seus eleitores. Na pandemia, Bolsonaro explorou igualmente suas redes sociais digitais como um “lugar” de encontro diário e cotidiano com seus seguidores, construindo o simulacro de uma reciprocidade enunciativa por meio da qual se sentem como se pudessem ter contato direto com o presidente9. Não se trata, evidentemente, de um encontro “face a face”, como ocorre com aqueles com os quais Bolsonaro conversa nas ruas ou em frente ao Alvorada. Mas, o “lugar” de interação instaurado, sobretudo pelas transmissões ao vivo pelas redes sociais, constrói igualmente o tipo de copresença necessário ao sentir-se junto e o sentir junto que constituem o ajustamento a serviço do fazer político manipulatório de Bolsonaro. Para promover esse tipo de interação, Bolsonaro não hesitou em desrespeitar o isolamento social saindo às ruas para o “corpo a corpo” com seus eleitores a pretexto de escutar suas necessidades. As transmissões ao vivo pela web desses momentos serviam não apenas para desafiar o “fique em casa”, apregoado pelo “sistema”, mas para encenar suas afinidades com o “povo”10.

9 Sobre esta “ligação direta” do presidente com seus apoiadores, cf. Y. Fechine, “Passions et présence dans le populisme numérique brésilien”, Actes Sémiotiques, 123, 2020 (https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/6545)

10 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/
cidades/2020/03/29/interna_cidadesdf,841066/jair-bolsonaro
-visita-comercio-no-df-mesmo-apos-recomendacao-de-isolam.shtml

Pouco importavam as declarações repetitivas, esvaziadas e sustentadas por clichês, pois o que as transmissões ao vivo desse encontros promoviam era, antes de mais nada, o efeito de proximidade com um presidente que, de igual para igual, aparentava sentir o mesmo que cada um dos que ali se reuniam. Na sua revolta contra o “sistema” — que, neste caso, era representado também pelas próprias autoridades de saúde —, viam em Bolsonaro um parceiro com o qual se identificavam e podiam desabafar suas queixas, sem atribuir, no entanto, qualquer responsabilidade ao presidente pelas dificuldades enfrentadas pelo País. Incapaz de propor alternativas para gerar emprego e renda e determinado a jogar o custo das medidas impopulares de distanciamento social na conta dos prefeitos e governadores, o que Bolsonaro tinha a oferecer era uma forma de “empatia” (não em relação com as vítimas do novo coronavírus, mas com os prejudicados pela paralisia econômica). Nas lives em frente ao Palácio, ele se comportava com aquele “cara comum” com quem se podia falar da situação do país, mas também com quem podiam fazer piadas e brincadeiras para se distrair em meio aos problemas. A reciprocidade que Bolsonaro estabelecia com os seus apoiadores nessas conversas descontraídas, feitas sob medida para divulgação nas suas redes sociais, estendia-se também aos milhares que acompanhavam os vídeos. Embora esses encontros “casuais” fossem claramente planejados, a espontaneidade e o improviso assumidos pelo chefe de Estado sugeria sua aposta em um sentido que emergia da e na interação mesma entre eles.


2.4. A resignação compartilhada

Essa ligação sensível, quase íntima, tornava-se ainda maior porque, mais que valores e sentimentos, Bolsonaro demonstrava partilhar com seus apoiadores da mesma fé. Frequentemente, as lives davam lugar a momentos coletivos de oração com grupos de católicos ou, de evangélicos, embora estes últimos fossem mais constantes. O apelo à fé religiosa ganhou um lugar relevante na interação entre o presidente e os grupos bolsonaristas, levando-os a lidar com a doença como algo da ordem do transcendente, do inesperado ou do imponderável próprios ao regime do acidente ou assentimento. Neste caso, o assentimento manifestava-se, sobretudo, como um certo conformismo e resignação diante de um vírus cujo comportamento parecia aleatório e, por isso, o contágio só podia ser acidental. Nessa perspectiva, não havia muito o que fazer a não ser contar com a sorte ou com a “proteção divina”. Esse comportamento esteve também intrinsecamente associado à convicção de que o novo coronavírus foi algo enviado pelo “Mal”, termo que indicava uma instância transcendental, o antisujeito do Bem encarnado na figura de Deus. Diante do que não tem explicação nem motivação claras, restaria aceitar desígnios de Deus — ou do Diabo.

Se há algo de transcendente nessa nova “peste” que abateu a humanidade, não há o que se cobrar de um presidente que, ao se apresentar como um homem temente a Deus — um crente, como seus seguidores —, demonstrava a mesma resignação. É com base nesse assentimento que ele declarou repetidas vezes em entrevistas ou nas lives pelo Facebook que quase todas as pessoas iriam ser contagiadas, sugerindo, como já citamos, que não havia o que fazer frente ao inevitável. “Esse vírus é como uma chuva, vai atingir você”, pregava o presidente11. Declarações dessa natureza costumavam ser feitas ao tratar do número crescente de mortos. Não raro, ele completava esse tipo de comentário lembrando que há pessoas morrendo todos os dias das mais variadas causas, pois este “é o destino de todo mundo”12. Ao mesmo tempo em que alegava que esse tipo de risco é “da vida”, ele próprio também se colocava na posição de quem estava sujeito ao mesmo destino : “amanhã vou eu”13. A inoperância presidencial diante da maior crise sanitária da história do Brasil era tamanha que em uma de suas lives, ao ser questionado sobre o fato do Brasil ter ultrapassado a China em mortos, Bolsonaro acrescentou uma pitada de cinismo : “Lamento. Quer que eu faça o quê ? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, disse, fazendo referência ao próprio sobrenome (Jair Messias)14.

11 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/07/07/
e-como-uma-chuva-vai-atingir-voces-diz-bolsonaro-sobre-covid-19.htm

12 Live amplamente repercutida pela mídia, 2 de junho de 2020 : https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/02/e-o-destino
-de-todo-mundo-afirma-bolsonaro-apos-lamentar-mortes-por-coronavirus.ghtml

13 28 de abril, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/
e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-por
-coronavirus-no-brasil.ghtml

14 https://www.facebook.com/jairmessias
.bolsonaro/videos/224343575329801/

O assentimento assim demonstrado diante da ação do novo coronavírus foi, sem dúvida estratégico, pois colaborou para que sua interação com seus apoiadores fosse, nos momentos mais difíceis da pandemia, pautada pelo mesmo regime interacional. Diante de uma força maligna e desconhecida, quase sobrenatural — um vírus devastador que não se sabe bem nem como chegou nem como vai desaparecer —, o que podem os homens, pobres mortais ? Resta apenas apelar para o Messias verdadeiro, já que o poder para combater o vírus é transcendente, vem do Céu. Não por acaso, foram inúmeras as lives em que os grupos religiosos que se concentravam em frente ao Alvorada, dispostos a participar de suas transmissões ao vivo, rezavam junto com o presidente pelo País. O apelo ao transcendente foi tão recorrente que, em uma das transmissões, depois de conversar com líderes religiosos, ele anunciou que faria a convocação para um dia nacional de jejum para livrar o País do “Mal”15. A convocação foi, de fato, realizada por meio de vídeo publicado nas redes bolsonaristas, no qual o presidente aparece ao lado de vários pastores evangélicos, arregimentando o “exército de Cristo para a maior campanha de jejum e oração já vista no país”16.

15 2 de abril, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/bolsonaro-faz-chamado
-para-jejum-religioso-neste-domingo-contra-coronavirus.shtml

16 4 de abril, https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro
/videos/1568812446600579/?epa=SEARCH_BOX
. Cf. também https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/bolsonaro-faz
-chamado-para-jejum-religioso-neste-domingo-contra-coronavirus.shtml


2.5. Reversibilidades : para além do assentimento e do acidente,
a volta à manipulação

Uma relação ancorada numa transcendência de qualquer ordem — as forças do Bem ou do Mal, a vontade de Deus ou do Diabo — não determina necessariamente apenas uma atitude de assentimento, embora seja uma resposta bastante comum àquilo que escapa à razão, ao que não é explicável e, por isso, não faz sentido. Procurar o sentido que falta pode também conduzir à busca de responsabilidades ou de intencionalidades. Retorna-se então ao regime da manipulação que, quando envolve a fé religiosa, também pode se dar no domínio da transcendência. É o que ocorre, por exemplo, quando o crente tenta negociar com Deus, fazendo promessas (uma oferenda qualquer) ou se impondo um sacrifício em troca de benção ou de uma graça17. O jejum religioso revela essa relação quase “contratual” de Bolsonaro e seus seguidores com “Deus” para resolver o problema da pandemia. Esse caráter manipulatório se manifesta também quando o crente busca encontrar no transcendente uma explicação para o que, racionalmente, escapa a sua compreensão, mas que pode, de todo modo, ser motivado (ou seja, intencional) : neste caso, a causa pode ter sido, inclusive, o pecado cuja consequência foi o aparecimento do novo vírus, precisamente encarado por muitos bolsonaristas como um castigo divino. Neste “cálculo” da fé, o arrependimento ou o sacrifício (o jejum) funcionam como a moeda de troca com Deus.

17 Cf. E. Landowski, “Shikata ga nai ou Encore un pas pour devenir vraiment sémioticien !”, Lexia, 11, 2012.

Diante da pandemia, tudo o que o presidente tem a oferecer à Nação é, em suma, uma bem encenada profissão de fé. Quando faltam argumentos (mesmo os falsos), Bolsonaro apela novamente para a tríade certeira da campanha — Deus, família e pátria —, uma campanha constantemente realimentada pelos pastores e padres conservadores que batem às portas do Alvorada e reforçam o messianismo presidencial. Na Páscoa, a pretexto de celebrar e orar pelo Brasil, o presidente aproveitou para, mais uma vez, relembrar, com voz embargada, a facada que levou durante a campanha de 2018 e que contribuiu para construir sua imagem de predestinado por Deus para governar o Brasil porque sobreviveu ao atentado “por milagre”18. Alternando entre o papel de perseguido (por adversários políticos que queriam lhe tirar do cargo) e “profeta” (que previu os problemas do povo e anteviu a “cura” com a cloroquina), Bolsonaro construiu com êxito, durante a pandemia, a narrativa do herói que — depois de poupado por Deus — salva o povo da miséria provocada pelas medidas de isolamento que paralisavam a economia. Assim chegou até a ser comparado por alguns apoiadores a Moisés, enviado por Deus para guiar o povo.

18 Live com líderes cristão em 12 de abril, https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro
/videos/231019434802932/?epa=SEARCH_BOX

O negacionismo frente à pandemia, no entanto, não foi alimentado apenas pelo insistente apelo à religião. As redes bolsonaristas foram encorajadas a explorar as chamadas teorias da conspiração que costumam atribuir aos fenômenos mais diversos causas ocultas, cercando de mistério aquilo que não se entende, não se sabe ou não se quer enfrentar. É fácil identificar na dinâmica interacional entre Bolsonaro e seus apoiadores, a passagem do que é da ordem do assentimento à manipulação : anulam a álea com explicações fantasiosas que, ao apontar um culpado, um inimigo ou um conspirador, restituem a ordem narrativa “natural” da pandemia. Nesse programa narrativo, basta descobrir a conspiração (um complô internacional) e eliminar o conspirador para que o mistério seja esclarecido e se encontre algum sentido no caos.

No caso, a China seria a responsável. O filho do presidente (e um dos seus costumeiros porta-vozes), o deputado Eduardo Bolsonaro, o então ministro da Educação e até o seu ministro das Relações exteriores, amparados pelo silêncio conivente de Bolsonaro, fizeram postagens que culpavam esse país por ter fabricado o vírus em laboratório como parte de um plano mirabolante para quebrar os mercados e assumir a liderança na economia mundial19. Sem qualquer censura do presidente, o chanceler Ernesto Araújo chegou mesmo a defender em um blog pessoal que a pandemia provocada pelo “comunavírus” podia estar sendo usada para “instaurar o comunismo, o mundo sem nações nem liberdade, um sistema feito para vigiar e punir” ; o chanceler também sugeria que as ações globais propostas pela Organização Mundial da Saúde são o primeiro passo na construção do que ele chamava de uma “solidariedade comunista planetária”20. Recupera-se assim o “inimigo perfeito” para a extrema direita do bolsonarismo : o comunismo. Há, nessa narrativa conspiracionista, um sujeito-herói bem definido (Bolsonaro e os bolsonaristas) que precisa desmascarar um anti-sujeito (a China comunista) para que o problema pareça resolvido. A “China comunista” não foi, porém, o único inimigo eleito pelo bolsonarismo durante a pandemia. Os “inimigos” mais plausíveis e denunciados insistentemente foram governadores e prefeitos que adotaram as medidas de isolamento social, respaldados por uma decisão do Superior Tribunal Federal (STF), que reconheceu seus poderes para isso.

19 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/embaixador-da-china
-no-brasil-reage-a-eduardo-e-diz-que-deputado-nao
-tem-visao-internacional.shtml
; https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51963251 ; https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias
/2020/04/04/coronavirus-weintraub-usa-cebolinha-para
-provocar-china-e-web-nao-perdoa.htm
; https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/08/04/coronaverificado-origem-covid/

20 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica
/2020/04/22/interna_politica,847129/comunavirus-em-blog-pessoal
-araujo-fala-em-plano-comunista-mundial.shtml

Todavia, a exploração de fake news foi apenas a face mais evidente do uma retórica da desinformação construída para convencer os milhões de seguidores nas redes sociais a aderir ao negacionismo e anticientificismo21. Nada contribuiu tanto nessa retórica quanto as meias verdades do presidente. Uma das mais frequentes era a afirmação, repetida insistentemente em suas lives, de que o Supremo Tribunal Federal determinou que as ações de combate ao coronavírus eram responsabilidade de Prefeitos e Governadores, e não do Governo Federal. O que o STF decidiu foi que Estados e Municípios poderiam estabelecer medidas na área da Saúde, mas não eximiu o Governo Federal de adotar medidas para conter a propagação do vírus, como pregava o presidente para justificar a sua inoperância.

21 Detalhei os procedimentos adotados nessa retórica em uma série de spots para Rádio Universitária Paulo Freire, emissora da Universidade Federal de Pernambuco. Cf. Coronavírus em xeque, Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Rádio Universitária Paulo Freire, Interprogramas, 2020, https://sites.ufpe.br/rpf/category/coronavirus-em-xeque/cex-artigos/

3. Uma dinâmica interacional complexa

A retórica da desinformação na qual Bolsonaro defendeu com êxito suas posições durante a pandemia está intrinsecamente associada ao fazer crer próprio do regime da manipulação. Diante de uma situação tão extraordinária, como uma pandemia, o fazer persuasivo não se sustenta apenas no raciocínio argumentativo inerente a um exercício retórico, mesmo quando este é sustentado pela desinformação. Diante da ameaça de um vírus que coloca o mundo inteiro num estado permanente de perplexidade, o ato persuasório também não consegue ser afiançado pelo éthos do enunciador nem pelo páthos do enunciatário, embora ambos concorram para o convencimento22. O que fazemos ou não fazemos, como agimos ou não agimos diante do que nos espanta ultrapassa a lógica modal. O que parece mais desafiador na comunicação populista, e que tentamos aqui apontar a partir do caso brasileiro, é como entender a estratégia manipulatória da política em uma situação em que, a depender do momento, se desliza do sentido para o não sentido. Nela, as interações entre os sujeitos e destes com o vírus e com a doença ganham tamanha complexidade que só podem ser compreendidas a partir de uma conjugação de regimes e do movimento elíptico de um ao outro previsto no modelo interacional.

22 Cf. J.L. Fiorin, Argumentação, São Paulo, Contexto, 2015, pp. 70-74.


3.1. Escolha de base

Já assumimos aqui, previamente, a hipótese de que o “regime de base” que orientou a interação entre Bolsonaro e seus apoiadores, também durante a pandemia, foi o da manipulação. Se a existência de um “regime de base” pressupõe a sua combinação com um ou mais que concorrem para a sua consecução, é preciso também identificar a dinâmica a partir da qual estes “regimes auxiliares” se movimentam e se articulam “dentro” ou a serviço desta interação global. Seja qual for a perspectiva lógica adotada para pensar essa conjugação, que ainda nos desafia do ponto de vista teórico, coloca-se para o analista a questão de encontrar um ponto de partida para o movimento elíptico dos regimes no seio desta interação de “base”, ou englobante. A organização dos regimes no modelo interacional por meio de uma elipse não é um elemento de menor importância no esquema teórico proposto por Landowski, nem tampouco pode ser tratada meramente como outra forma de representação gráfica para a correlação entre categorias já prevista pelo quadrado semiótico. A elipse, forma sem começo nem fim aparentes, aponta uma lógica — o movimento contínuo — e um problema : por onde começar ?

O ponto de partida nem sempre é fácil de estabelecer23. Por vezes, mas não necessariamente, seu estabelecimento pode convocar um olhar diacrônico sobre o objeto analisado. Mas é preciso admitir que, provavelmente sempre, há algo de arbitrário nessa escolha — uma arbitrariedade que, contudo, pode ser justificada, ou pelo menos ser epistemologicamente justificável, na medida em que, na semiótica, o exercício de análise envolve, antes de mais nada, a construção do próprio objeto analisado, e, portanto, a escolha hipotética de determinado nível ou escala de observação, de acordo com o caso. Nisso já consiste a semiotização do objeto. Ora, quando o que está sob o escrutínio do analista são processos interacionais, este desafio se impõe de modo mais evidente. Foi amparado por esse “método”, pressuposto no modelo interacional, que nos propomos a pensar a dinâmica elíptica e complexa dos regimes na relação entre Bolsonaro e seus apoiadores.

23 Sobre o caráter problemático da escolha de um “ponto de partida”, cf. Interações arriscadas, op. cit., p. 70.

Nas interações de natureza política, a manipulação — não por acaso um regime primordial na narratividade — parece ser o mais vocacionado para essa conjugação com os demais. Se consideramos a manipulação como um sistema englobante, que pressupõe outros regimes englobados e necessários ao seu fazer persuasivo, parece coerente elegê-lo também como ponto de partida em nosso percurso de análise.


3.2. O círculo estratégico

No caso da pandemia no Brasil, o presidente Bolsonaro foi o principal agente de uma retórica da desinformação à serviço do negacionismo e anticientificismo e com os quais alimentou suas interações manipulatórias. Cultivado no terreno fértil da desinformação, aliada à religião, o dogmatismo do senso comum, que caracteriza o bolsonarismo, manifestou-se também durante a pandemia, como uma fidelidade cega ao presidente.

Decorre daí a adesão automática a todas as ideias e posições do presidente, dando lugar aos comportamentos irrefletidos e condicionados próprios da programação. Mas essa lealdade e respaldo irrestritos ao presidente perderiam logo o sentido se não fosse o contato direto, e mesmo o “corpo a corpo”, que também marca a relação de Bolsonaro com seus apoiadores. Por isso, sua presença e prontidão nas redes sociais são fundamentais na sua estratégia política. Embora os encontros “casuais” com apoiadores fossem claramente planejados, a espontaneidade e o improviso assumidos por Bolsonaro sugeria sua aposta em um sentido que emergia da e na interação mesma entre eles. É assim que, da programação, a interação entre Bolsonaro e seus apoiadores se move rumo ao ajustamento. Para agir com e como os outros, nem sempre bastam as estratégias passionais. Por vezes, o que (co)move mais é o “espírito de corpo”, o sentimento de ser parte de um todo coeso que sente o mesmo e, justamente por isso, constrói o sentir-se junto que caracteriza o ajustamento. Pode-se dizer que, paradoxalmente, durante a pandemia, manter este “corpo a corpo” junto aos apoiadores, nas ruas e nas redes, foi mesmo a principal ocupação do chefe de Estado, já que sua maior preocupação era para manter sua popularidade.

A passagem do ajustamento ao assentimento não é difícil — parece mesmo quase natural — quando o apelo à religiosidade possui uma centralidade na dinâmica interacional, como ocorre no bolsonarismo. No catolicismo, por exemplo, a fé convida à comunhão, carrega o apelo a fazer parte de um só corpo com Cristo e com os cristãos. Em um tipo de interação marcada pelo fundamentalismo religioso, como já identificamos no populismo de Bolsonaro, o espanto diante do desconhecido e incontrolável posto pela pandemia remete, de imediato, a tudo que é da ordem do transcendente, místico e até um tanto mágico. A consequência desse modo de interação dos sujeitos com o vírus e entre eles (presidente e apoiadores) resulta no fatalismo e conformismo que, estrategicamente, justificavam a inoperância do Governo, já que não havia mesmo como evitar “o destino”, o acaso e a inevitabilidade do contágio.

 

Para que um sujeito consiga escapar dessa situação caótica e perigosa instaurada pelo vírus é preciso inventar a figura mítica de um destinador (Deus, o Mal, um conspirador) que restitua o sentido àquilo lhe parece um tanto absurdo. Reconhecido um destinador, instala-se o regime da manipulação fundado na crença e na fidúcia que, no caso de Bolsonaro, envolve um certo messianismo24, que ecoou também durante a pandemia. Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro assumiu o papel de um sujeito enviado por Deus para cumprir a missão de mudar o Brasil. Além de reforçada pelo apoio dos religiosos conservadores, essa imagem de predestinado por Deus, foi ainda mais reforçado pelo tema recorrente da facada da qual se salvou, “por milagre”. Esse messianismo deriva fácil, especialmente em momentos de insegurança e medo, para uma espécie de glorificação de quem é portador de uma “salvação” qualquer.

24 Cf. Y. Fechine, “Passions et présence...”, art. cit.

Ao invés de tomar medidas efetivas de combate ao novo coronavírus, Bolsonaro encarregou-se de construir “inimigos” para enfrentar, garantindo sua posição de “herói” na batalha para defender “os pais de família” que perderam emprego e renda. Nada melhor do que teorias da conspiração para forjar um herói ! Toda sua retórica da desinformação foi também, em grande parte, dirigida ao enfrentamento desses “inimigos” — prefeitos, governadores, cientistas, ministros do STF e até dois dos seus Ministros da Saúde, demitidos por discordarem de suas posições. Foi esta, de modo geral, a estratégia contratual e englobante de Bolsonaro, mas, no interior dela, os diversos procedimentos retóricos empregados às custas de falsos argumentos constituíam, por si sós, práticas manipulatórias englobadas na dinâmica mais geral de interação. Ainda que, aos olhos de alguém menos atento à dinâmica interacional, o modo de agir do presidente pareça regido pela fragmentação e incoerência, há, no plano mais global uma coesão subjacente à sua comunicação política : explorando todos os regimes, em sintonia com os “humores” ou juízos manifestos por seus seguidores na redes sociais, o que Bolsonaro faz é renovar os contratos firmados com a parcela radical, mas também a mais fiel, do seu eleitorado.

Conclusão

Com a manipulação, retornamos ao ponto de partida que elegemos para descrever a dinâmica interacional, indicando o reinício de um processo de transformações das interações previsto pelo modelo. Da manipulação à programação e, desta, ao ajustamento, que, por sua vez, leva do assentimento à manipulação, e assim continuamente, em conformidade com o movimento sugerido pela elipse que organiza o modelo e indica a passagem de um regime a outro a depender do quê está sendo posto em relação e a cada momento. O que o comportamento presidencial durante a pandemia evidenciou foi, na perspectiva da teoria semiótica, a necessidade de explorarmos ainda mais as passagens e combinações entre os regimes para, a partir da análise de corpus os mais diversos, depreendermos as “lógicas” envolvidas em suas conjugações. Na perspectiva da comunicação política, reconhecer e descrever a complexidade dessa dinâmica interacional que sustenta uma popularidade, mesmo nos contextos mais adversos, parece ser também uma necessidade para enfrentar a dinâmica do populismo nas interações sustentadas pelas redes sociais digitais.

 

Obras citadas

Fechine, Yvana, “Passions et présence dans le populisme numérique brésilien”, Actes Sémiotiques, 123, 2020 (https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/6545).

— Coronavírus em xeque, Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Rádio Universitária Paulo Freire, Interprogramas, 2020 (https://sites.ufpe.br/rpf/ category/coronavirus-em-xeque/cex-artigos/).

Fiorin, Jose Luiz, Argumentação, São Paulo, Contexto, 2015.

Landowski, Eric, “La politique-spectacle revisitée : manipuler par contagion”, Versus, 107, 2008.

— “Shikata ga nai ou Encore un pas pour devenir vraiment sémioticien !”, Lexia, 11, 2012.

Interações arriscadas (2005), São Paulo, Estação das Letras e Cores - CPS, 2014.

— “Crítica semiótica do populismo”, Galáxia, 44, 2020.

 

1 Cf. E. Landowski, Interações arriscadas (2005), São Paulo, Estação das Letras e Cores - CPS, 2014, pp. 25-30.

2 Cf. “La politique-spectacle revisitée : manipuler par contagion”, Versus, 107, 2008.

3 Cf. “Crítica semiótica do populismo”, Galáxia, 44, 2020.

4 Cf. Interações arriscadas, op. cit., Diagrama 1, p. 80.

5 Ibid., p. 85.

9 Sobre esta “ligação direta” do presidente com seus apoiadores, cf. Y. Fechine, “Passions et présence dans le populisme numérique brésilien”, Actes Sémiotiques, 123, 2020 (https://www.unilim.fr/actes-semiotiques/6545).

17 Cf. E. Landowski, “Shikata ga nai ou Encore un pas pour devenir vraiment sémioticien !”, Lexia, 11, 2012.

21 Detalhei os procedimentos adotados nessa retórica em uma série de spots para Rádio Universitária Paulo Freire, emissora da Universidade Federal de Pernambuco. Cf. Coronavírus em xeque, Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Rádio Universitária Paulo Freire, Interprogramas, 2020, https://sites.ufpe.br/rpf/category/
coronavirus-em-xeque/cex-artigos/
.

22 Cf. J.L. Fiorin, Argumentação, São Paulo, Contexto, 2015, pp. 70-74.

23 Sobre o caráter problemático da escolha de um “ponto de partida”, cf. Interações arriscadas, op. cit., p. 70.

24 Cf. Y. Fechine, “Passions et présence...”, art. cit.

 

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Palavras chave : elipse (vs quadrado), populismo, programa de base vs de uso, regimes de interação.

Mots clefs : ellipse (vs carré sémiotique), populisme, programme de base vs d’usage, régimes d’interaction.


Plan

Introdução

1. Uma estranha combinação entre regimes interacionais

1.1. Modelo e procedimento de análise

1.2. A questão teórica em pauta

2. Regimes de interação entre Bolsonaro e apoiadores na pandemia

2.1. O fazer manipulatório de base

2.2. Iterações programadas e robotização do político

2.3. A retórica do contato direto : ajustamento a serviço do fazer manipulatório

2.4. A resignação compartilhada

2.5. Reversibilidades : para além do assentimento e do acidente, a volta à manipulação

3. Uma dinâmica interacional complexa

3.1. Escolha de base

3.2. O círculo estratégico

Conclusão

 

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