Crise politique

Caos, teorias da
conspiração e pandemia

Paolo Demuru
São Paulo, Universidade Paulista
Centro de Pesquisas Sociossemióticas

Publié en ligne le 4 mars 2021
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2021n1.54178
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Introdução

Um traço central do discurso político de Jair Bolsonaro é a ameaça do advento iminente da catástrofe, do caos, de um futuro aparentemente apocalíptico. Seja ao longo de sua campanha eleitoral, seja, de modo mais enfático, ao longo de 2019 e 2020, diante do avanço da pandemia de Covid-19, o trigésimo-oitavo presidente da República Brasileira insistiu em prospectar o espectro e as consequências dramáticas de um golpe definitivo por parte dos poderes ocultos que sempre decidiram, segundo ele, o destino do mundo e do país. Qual é a lógica dessa estratégia ? Quais são seus escopos ? Porque o novo coronavirus contribuiu para que se tornasse ainda mais frequente e intensa ? Como o discurso presidencial sobre a pandemia se encaixa nesse quadro de temas, figuras, valores, investimentos estésicos e passionais ? E de que maneira a abordagem semiótica pode jogar luz sobre seu funcionamento ?

Minha hipótese é que o modo como o presidente gerenciou discursivamente a pandemia consiste em reduzi-la a mais uma possível catástrofe planejada pelo “establishment” com o fim de derrubá-lo e “acabar com o Brasil”, para usarmos umas de suas imagens recorrentes. Bem entendido, a catástrofe à qual o ex-capitão do exército brasileiro se refere não é sanitária. Pelo contrário, o caos que ele vislumbra no imediato horizonte da nação é, antes de mais nada, econômico — escolha que se adapta de maneira mais coerente à sua narrativa a respeito dos planos de dominação do Brasil por parte das supostas “elites globalistas” que agem nacional e internacionalmente contra o “povo”.

Para desvendar as engrenagens deste mecanismo, proponho refletir, inicialmente, sobre a cifra aspectual do discurso catastrofista de Bolsonaro, marcada, como a maioria das narrações populistas contemporâneas, pela sobreposição entre incoatividade e duratividade1. Para o chefe de Estado, o desastre está sempre para começar, embora seja, ao mesmo tempo, em ato, e em ato há tempo. Trata-se de um paradoxo discursivo peculiar, que remente, por sua vez, à questão da relação entre previsibilidade e imprevisibilidade2. Em seguida, deter-me-ei no papel da indeterminação semântica na configuração semiótica da catástrofe segundo o atual presidente. Como nas mais clássicas teorias da conspiração3, o flagelo vislumbrado por ele emerge sobre um pano de fundo de figuras, temas e valores diversos e nebulosos, espécies de “significantes vazios”4 utilizados, para usarmos os termos de Umberto Eco, conforme a lógica da “semiose hermética”5. Por fim, abordarei o papel das paixões e da estesia no futuro bolsonarista. No que tange a este aspecto, há duas questões que devem ser consideradas : por um lado, o elo entre o anúncio da catástrofe iminente e as paixões do medo6 ; por outro lado, a articulação entre estas e outras configurações passionais mais indefinidas, isto é, abalos e trepidações estésicas responsáveis pelo alastramento, no corpo social, da crença relativa à chegada do cataclismo político, econômico e social7.

1 F. Sedda e P. Demuru, “Da cosa si riconosce il popuslimo. Ipotesi semiopolitiche”, Actes Sémiotiques, 121, 2018.

2 Cf. J. Lotman, La cultura e l’esplosione. Prevedibilità e imprevedibilità, Milano, Feltrinelli, 1993.

3 Cf. M. Leone (org.), Complotto / Conspiracy, Lexia, 23-24, 2016 ; M. Butter e P. Knight (org.), The Routledge handbook of conspiracy theory, Oxford, Routledge, 2020.

4 E. Laclau, On populist reason, London, Verso, 2005.

5 U. Eco, I limiti dell’interpretazione, Milano, Bompiani, 1990.

6 J. Lotman e B. Uspenskij, Tipologia della cultura, Milano, Bompiani, 1975 ; J. Lotman, “La caccia alle streghe. Per una semiotica della paura”, E/C, 2008 ; I. Pezzini, Le passioni del lettore, Milano, Bompiani, 1998 ; R. Bodei, Geometria delle passioni. Paura, speranza e felicità : uso politico, Milano, Feltrinelli, 1991 ; D. Barros, Margens, periferias, fronteiras : estudos linguísticos-discursivos das diversidades e intolerância, São Paulo, Editora Mackenzie, 2016 ; Y. Fechine, “Passions et présence dans le populisme numérique brésilien”, Actes Sémiotiques, 123, 2020.

7 E. Landowski, Passions sans nom, Paris, PUF, 2004.

O corpus no qual se funda a análise é constituído por tweets extraídos do perfil do presidente entre 2015 e 2020 a partir da search API do Twitter, com algumas referências pontuais a outros atores e mídias sociais da cena política brasileira contemporânea. A análise foi conduzida com base em um arcabouço teórico-metodológico que combina a semiótica discursiva e a sociossemiótica de linha francesa8, com as reflexões do último Lotman sobre o tema da explosão9 e de Eco sobre a semiose hermética. Minha intenção é proporcionar, a partir da correlação entre micro e macro-configurações de sentido10, uma leitura quanto mais ampla e complexa de um fenômeno igualmente denso e facetado.

1. Inimigos passados, presentes e futuros

Assim afirmava Jair Bolsonaro em um vídeo publicado em seu perfil Twitter em dezembro de 2015 : “graças à mentira, ao populismo e ao clientelismo, o Brasil chegou hoje ao caos econômico e moral. Sabemos que a causa de nossos problemas é o Foro de São Paulo, cujos integrantes visam o poder absoluto”. Em 2015, o atual presidente era ainda um representante do assim chamado “baixo clero”, gíria que designa a camada de parlamentares pouco influentes que povoam, há anos, a Câmara dos Deputados. Conhecido por suas aparições no programa de televisão CQC e por seus disparates sobre o comunismo, os direitos dos afro-brasileiros e da comunidade LGBTQI+, o então deputado federal havia se afirmado como um verdadeiro “bufão” da política, isto é, um sujeito cuja linguagem, gestualidade e atitudes derrisórias com relação a seus colegas e adversários manifestavam uma recusa explicita dos códigos éticos e estéticos das instituições republicanas11.

Foi no dia 17 de abril de 2016, no entanto, que ele emergiu como um potencial candidato para as eleições presidenciais de 2018. Durante a sessão da Câmara dos Deputados que teria sancionado a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, ele justificou seu voto a favor da incriminação da então presidente da República com as seguintes palavras : “para a família e a inocência das crianças (...), contra o comunismo, para nossa liberdade e contra o Foro de São Paulo”. Pouco depois, o vídeo do voto tornou-se viral, sendo repetidamente compartilhado nas redes sociais, e a hashtag #BolsonaroPresidente atingiu o primeiro lugar na lista dos trending topics do Twitter12.

8 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, Paris, Hachette, 1979 ; id., “Le contract de véridiction”, Du Sens II, Paris, Seuil, 1983 ; id., De l’Imperfection, Périgueux, Fanlac, 1987 ; id. e J. Fontanille, Sémiotique des passions, Paris, Seuil, 1991. E. Landowski, Passions sans nom, op. cit. ; id., Les interactions risquées, Limoges, Pulim, 2005. I. Pezzini, Le passioni del lettore, op. cit. G. Marrone, “Fragmentos de um discurso político. Intervenções críticas”, Estudos Semioticos, 1, 25, 2019, entre outros.

9 J. Lotman “Nella prospettiva della rivoluzione francese” (1989), in L. Gherlone (org.), Dopo la semiosfera, Milano, Mimesis, 2014 ; Cercare la strada. Modelli della cultura, Venezia, Marsilio, 1994 ; La cultura e l’esplosione, op. cit.

10 F. Sedda, Imperfette traduzioni. Per una semiopolitica delle culture, Roma, Nuova Cultura, 2012.

11 E. Landowski, “Regimes de presença e formas de popularidade”, Presenças do Outro, São Paulo, Perspectiva, 2002 (cap. 7).

12 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/
2016/04/26/interna_politica,756459/
apoio-e-criticas-levam-bolsonaro-mito-no-
twitter-ao-topo-dos-trend.shtml.

Mas o que é o Foro de São Paulo ? Por que Bolsonaro o cita constantemente ? Por que o identifica como um dos “males” do Brasil ? E o que ele tem a ver com os temas e os escopos da presente pesquisa relativa à gestão presidencial da crise sanitária ou, mais exatamente, à sua exploração política?

Fundado em 1990 na homônima cidade brasileira, o Foro de São Paulo é uma organização que reúne alguns entre os mais expressivos partidos e movimentos da esquerda latino-americana, desde o Partidos dos Trabalhadores (PT) até o Partido Comunista Cubano. Objeto de diversas teorias da conspiração elaboradas nos circuitos da extrema direita brasileira, o Foro de São Paulo foi muitas vezes indicado como o autor oculto de um plano de domínio do continente latino-americano, que levaria, em breve, ao declínio econômico e social do Brasil13.

13 Vejam-se, a este proposito, as declarações de Cabo Daciolo, candidato à Presidencia da República em 2018 : https://www.youtube.com/watch?v=7ANqSdWvTlo.

Na esteira de tais insinuações, Bolsonaro descreveu repetidamente o Foro de São Paulo como “o motor principal das transformações históricas do continente (...) uma engenheira de alienação [que fortalecia] um esquema de poder que se alimentava de sua própria invisibilidade”, para retomarmos as palavras de um vídeo publicado em seu perfil em outubro de 201714. Mesmo após a eleição de 2018, o trend narrativo seguiu inalterado. Em outubro de 2019, diante da possível vitória de Alberto Fernandez, herdeiro de Cristina Kirchner, no pleito presidencial argentino, Bolsonaro alertava assim seus seguidores : “ATENÇÃO ! O Foro de São Paulo segue com seu plano de trazer instabilidade a toda América Latina”15.

14 https://twitter.com/jairbolsonaro/
status/921849037757796359

15 https://twitter.com/jairbolsonaro/
status/1188120331350937600

2. À beira de uma eterna catástrofe

O que revela, aos olhos do semioticista, esta obsessão para o Foro de São Paulo ? Qual é a sintaxe e a semântica temporal deste discurso ? E o que ela tem a ver com as mais recentes declarações do presidente sobre a pandemia ? Estamos aqui diante de uma articulação íntima e profunda entre incoatividade e duratividade16, ou melhor, entre uma “quase-incoatividade” e uma “eterna duratividade”. A catástrofe bolsonarista oscila amiúde entre o “já aqui” e o “ainda não”, entre o “desde sempre” e o “a qualquer momento”. É este o paradoxo aspectual que define sua cifra temporal, o seu primeiro e peculiar traço distintivo.

16 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, op. cit. Sobre as recentes declinações do tema da aspectualidade veja-se M. Leone (org.), Aspettualità / Aspectuality, Lexia, 27-28, 2017.

As referências ao Foro de São Paulo não são a única diretriz através da qual se desenvolve este contínuo vai e vem aspectual. Diversos são os temas e os objetos nos quais e por meio dos quais ela se manifesta. Tomemos por exemplo o texto compartilhado por Bolsonaro em sua rede de Whatsapp em 17 de maio de 2019. Nele, um autor anônimo prospecta, no imediato futuro, uma verdadeira “explosão nuclear (...) uma ruptura institucional irreversível, com desfecho imprevisível. É o Brasil sendo zerado, sem direito para ninguém e sem dinheiro para nada”17. No entanto, continua o escritor desconhecido, a “disfuncionalide” que aflige o Brasil de 2019 possui raízes antigas, assim como suas prováveis e devastadoras consequências, as quais não chegaram ainda a seu estado derradeiro : faz 519 anos, conclui o analista, que o Brasil é um país “moribundo”, uma nação perenemente à beira de um apocalipse política, ética, econômica e social. Como veremos, a pandemia é mais um momento desta longa apocalipse.

17 https://politica.estadao.com.br/noticias/
geral,bolsonaro-compartilha-texto-de-
autor-desconhecido-que-fala-em-pressoes-
para-governar,70002832941

Entre março e abril de 2020, quando se registra o primeiro aumento de casos de Covid 19 no país, o refrão catastrófico é reproposto com a mesma insistência e vigor. Em 25 de março, no dia seguinte à publicação do decreto que instituía o começo do distanciamento social no estado de São Paulo, Bolsonaro posta em seu perfil do Twitter um vídeo de uma entrevista na qual afirma : “Brasileiros, acordem e enfrentem a realidade (...) se não acordarmos e enfrentarmos a realidade, em poucos dias, e quero ser bem claro, em poucos dias, poderá ser tarde demais” (destaque nosso)18. Em 16 de Abril de 2020 declara de ter em mãos um dossiê, redigido pelos órgãos de inteligência, que provaria a existência de um plano elaborado pela Corte Suprema Brasileira, pelo Presidente da Câmera dos Deputados Rodrigo Maia e pelo Governador do Estado de São Paulo João Doria com o objetivo de derrubá-lo19. No dia 19 de abril, publica um vídeo no qual o presidente do Partido Trabalhista Brasileiro, Roberto Jefferson, seu mais recente aliado, revela alguns supostos detalhes do “plano”20, um projeto cuja realização conduziria rapidamente, cela va sans dire, “à ruína” e “à depressão” do país. No entanto, na grande maioria das declarações de Bolsonaro sobre a pandemia, o caos não está simplesmente atrás da esquina. Pelo contrário, “está aqui”, “agora” e “diante” dos brasileiros. Pense-se no vídeo sobre a carência de alimentos no mercado de Belo Horizonte, postado por Bolsonaro em 1 de abril, que foi imediatamente etiquetado como fake news pelas maiores agências de checagem nacionais.

18 https://twitter.com/jairbolsonaro/status/
1242788888508272641

19 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/
painel/2020/04/bolsonaro-diz-ter-
dados-de-inteligencia-de-plano-de
-maia-doria-e-stf-contra-ele.shtml

20 https://twitter.com/jairbolsonaro/status/
1252011618050990085

Tais exemplos mostram como o discurso de Bolsonaro oscila entre um futuro catastrófico figurativizado como uma “bomba” pronta para explodir e cuja explosão está, todavia, acontecendo, e acontecendo há tempo : “está na hora (...) de por fim ao sistema falido que impera há décadas no Brasil”, posta em 2 de outubro de 201821. Retomando as reflexões de Lotman sobre o conceito de “explosão”, poderíamos dizer que o futuro bolsonarista situa-se em uma “dimensão atemporal”, na qual “o ontem”, “o hoje” e “o amanhã” confundem-se reciprocamente22. Para Bolsonaro o “futuro” nunca é apenas “futuro” ; é, ao mesmo tempo, “passado”, “presente” e “futuro”, uma temporalidade que “já foi”, “é” e “logo (novamente) será”. Esta declinação aspectual do futuro abre espaço para duas observações analíticas ulteriores.

21 https://twitter.com/jairbolsonaro/status/
1047287005892292608
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22 La cultura e l’esplosione, op. cit., p. 35.

A primeira concerne os regimes de sentido e interação dentro dos quais se inscreve e transita o discurso presidencial. A este propósito, o ex-capitão pode ser definido como um verdadeiro “actante joker”, possuidor, conforme argumenta Landowski23, de um “papel catastrófico” por excelência : um verdadeiro “presidente acidental”, para dizê-lo em outras palavras. No entanto, os acidentes cujas consequências inimagináveis ele não para de profetizar são sempre, em alguma medida, “programados”, ordenados por alguém que, como nas mais clássicas teorias da conspiração, tece, organiza e desenvolve a trama de um plano secular.

23 Les interactions risquées, op. cit.

A segunda diz respeito ao constante estado de alerta e urgência no qual Bolsonaro, cumprindo seu papel de Destinador “Messias” do povo brasileiro, se coloca e coloca os seus seguidores. Como aponta Fechine, o estilo do discurso bolsonarista é um estilo paranoico, que se manifesta “como uma ansiedade e uma tensão com um estar-por-vir : nada aconteceu ou está acontecendo, mas algo ameaçador pode estar sendo gerado neste exato momento”24. Diante desse risco, Bolsonaro está sempre pronto e atento, como se vivesse (e fizesse viver) no âmbito de um persistente estado de incitação e excitação, isto é, em um universo de ansiedades e tensões parecidas com a “espera do inesperado” à qual se refere Greimas em Da Imperfeição : trata-se do estado de ânimo do sujeito que almeja o advento de um acidente estésico suscetível de ressignificar, ainda que por alguns instantes, a sua usurada cotidianidade.

24 “Passions et présence...”, art. cit., p. 11 (trad. nossa).

3. Entre previsibilidade e imprevisibilidade

Do quadro acima emerge uma outra caraterística desse discurso catastrofista, a saber o elo indissolúvel entre previsibilidade e imprevisibilidade : o desastre anunciado é sempre, ao mesmo tempo, certo e incerto.

Em primeiro lugar, a catástrofe bolsonarista é imprevisível por três razões : não se sabe exatamente (i) quando ela se realizará ; (ii) o que ela causará ; (iii) como acontecerá. Sabe-se apenas que : (a) está sempre muito próxima ; (b) será algo de muito grave e disfórico ; (c) o impacto será forte, mas de uma força a priori não comensurável. É o caso da “explosão nuclear” prospectada pelo autor anônimo da mensagem de Whatsapp antes discutida, mas também de outras numerosas afirmações feitas via redes sociais. Escreve por exemplo Bolsonaro no dia 27 de março de 2019, comentando as dúvidas do Congresso relativas à aprovação das reformas do sistema previdenciário : “negar que hoje temos um problema que pode gerar uma catástrofe econômica que afetará a todos, principalmente os mais pobres, seria total irresponsabilidade com a população brasileira”25. Durante os primeiros meses da pandemia, Bolsonaro insiste na mesma tecla. Assim afirma em 25 de março de 2020 : “se a política de isolamento continuar, teremos o vírus e o caos juntos”26 (destaque nosso). E poderíamos continuar citando muitos outros exemplos.

25 https://twitter.com/jairbolsonaro/status/
1111028040648351749

26 https://twitter.com/jairbolsonaro/status/
1242786257354309632

Os filhos do presidente seguiram quase sempre seus passos. Diz Carlos Bolsonaro no dia 25 de outubro de 2018 : “Andrade [então ministro da agricultura do governo Temer], está literalmente prometendo quebrar o Brasil congelando preços como fez Dilma Rousseff. A catástrofe é anunciada ainda existe gente aplaudindo. Inacreditável!”27. Em muitas outras ocasiões, utiliza a palavra “caos” de forma parecida com o pai28. Entretanto, o que seria, quando e como se daria este “caos” nunca é inteiramente revelado.

27 https://twitter.com/jairbolsonaro/status/
1242786257354309632
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28 https://twitter.com/search?q=%22caos%22%20
(from%3Acarlosbolsonaro)&
src=typed_query
.

Esta leitura é, todavia, parcial. Paralelamente, o futuro avassalador é — e há de ser — inteiramente previsível, já escrito, parte, ou escopo último, de um plano segredo e secular, seja este do Foro de São Paulo ou de outros sujeitos menos conhecidos e definidos. O inimigo autor da suposta conspiração é escolhido com argucia e precisão conforme as exigências do momento. Durante as eleições de 2018, por exemplo, os Antissujeitos do Brasil eram Lula e o PT, fundadores do Foro de São Paulo e principais expoentes do socialismo internacional. Após o voto, ao longo de 2019 e 2020, o leque de opositores torna-se mais amplo, passando a incluir, entre outros, o Supremo Tribunal Federal, o governador do Estado de São Paulo João Doria, o do Rio de Janeiro Wilson Witzel e Slavoj Zizek, responsável, de acordo com o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, da difusão do assim chamado “comunavirus”, bem mais concreto e perigoso de seu quase homônimo coronavirus29. Em alguns momentos da narrativa bolsonarista, tais inimigos agem de maneira conjunta, ao mesmo tempo e de comum acordo. Cabe citar, neste sentido, um vídeo emblemático publicado por Bolsonaro no Twitter em outubro de 2019, no qual um leão (Bolsonaro) é circundado por uma manada de hienas prontas para atacá-lo : o PT, o PSDB, o PCDB, o Supremo Triunal Federal, a Folha de São Paulo, a Rede Globo e até o PSL, seu próprio partido, entre muitos outros30.

29 https://twitter.com/ernestofaraujo/
status/1252811093405122566

30 https://www.youtube.com/watch?v=Rd0H4x4MblM

Um olhar mais atento ao conceito lotmaniano de “explosão” pode nos ajudar a visualizar e compreender melhor este mecanismo. Como procuramos mostrar em outras ocasiões31, para Lotman o termo “explosão” possui, ao menos, duas possíveis acepções. Em primeiro lugar, “interrompe a cadeia das causas e dos efeitos e projeta, na superfície, um espaço de eventos igualmente prováveis, dos quais é impossível dizer, em princípio, qual se realizará”32. Por outro lado, designa um processo de explosão de sentido — de novos significados, metáforas, analogias — que emerge e se configura como o resultado da tradução do que antes se julgava intraduzível. Ou seja, a geração de uma serie de “combinações semânticas inesperadas, impossíveis ou proibidas em uma fase precedente”33.

31 P. Demuru, “Between Accidents and Explosions : Indeterminacy and Aesthesia in the Becoming of History”, Bakhtiniana, 15, 1, 2020.

32 Cercare la strada, op. cit., p. 35 (trad. nossa).

33 Ibid., p. 93.

Cumpre-se, aqui, um quiasmo alético-epistémico, que nos remete imediatamente ao tema da imprevisibilidade. Segundo as leis que regem o discurso bolsonarista não é apenas o futuro a ser imprevisível, mas também o passado. Se, pois, por um lado, a catástrofe é continuamente anunciada como um evento iminente, por outro lado, o fato de que o responsável da ruína futura pode ser uma vez Fulano, outra Sicrano e outra Beltrano projeta e envolve o passado em uma nebulosa de possibilidade todas, a priori, igualmente prováveis.

Como afirma Lotman, o critério que permite determinar a natureza explosiva de um processo consiste na imprevisibilidade de princípio de um evento. O evento que se realiza e aquele que não se realiza são, no momento da explosão, variantes intercambiáveis34. No entanto, isso é verdadeiro apenas quando se observa a explosão do presente para o futuro, isto é, no momento em que ela acontece, no qual todas as estradas podem ainda ser percorridas. Ao contrário, quando se observa a cadeia dos eventos em direção inversa, do ponto de vista de um sujeito que olha o passado a partir do futuro, é normal atribuir ao elemento imprevisível uma “motivação adicional retroativa”35.

34 Ibid., p. 96.

35 Ibid., p. 37.

Em um texto intitulado “Na perspectiva da revolução francesa”, Lotman expõe de maneira ainda mais clara esta aparente contraditoriedade : “o olhar retrospectivo que se dirige do momento da explosão rumo ao que a precedeu é capaz de reconfigurar todo o curso da história e influenciar novamente o futuro. O passado não acaba nunca : por isso o futuro é sempre suscetível de renascer e renascer sob formas inesperadamente diversas”36.

36 “Na perspectiva...”, art. cit., p. 172.

São quatro, portanto, os pontos centrais do raciocínio lotmaniano : (i) no momento em que se realiza, a explosão é imprevisível ; (ii) quando a se observa a posteriori, de frente para trás, a explosão adquire um sentido preciso, sendo catapultada em uma rede de relações de causa-efeito ; (iii) consequentemente, o passado é um deposito inexaurível de possibilidade, que pode ser sempre modificado ; (iv) um novo passado pode fazer renascer o futuro em formas ainda diversas.

A semântica temporal do populismo de Bolsonaro enquadra-se nesta lógica. Enquanto antes transitávamos entre a “quase-incoatividade” e “eterna-duratividade”, agora oscilamos, com o mesmo vigor, entre o “óbvio” e o “imponderável”. A explosão bolsonarista, além de se manifestar, ao mesmo tempo, como um evento “já realizado”, “em ato” e “no horizonte”, é também, simultaneamente, “conhecida” e “desconhecida”, “dada” e “não dada”. É esta a invariante do catastrofismo de Bolsonaro. Mudam as causas, os responsáveis e os temas da conspiração marxista, socialista, globalista, internacionalista e assim por diante, mas o jogo de fundo entre previsibilidade e imprevisibilidade, entre o certo e o incerto, permanece idêntico e inalterado37.

37 https://twitter.com/jairbolsonaro/
status/1111735343190024192

Não é casual que muitos ex-colegas, aliados ou ministros que decidiram abandonar Bolsonaro tenham entrado na lista dos conspiradores “de esquerda”. O nome mais significativo neste sentido é aquele de Sergio Moro, ministro da Justiça do governo Bolsonaro e juiz responsável pela prisão de Lula no âmbito da Operação Lava-Jato. Moro pediu demissão no dia 24 de abril de 2020, sendo logo etiquetado como “comunista” por alguns internautas da rede bolsonarista38. Como se ele também tivesse sempre sido parte do “sistema” contra o qual luta Bolsonaro, como se o tivesse, também ele, traído e enganado.

38 https://twitter.com/search?q=
%22moro%20comunista%22&
src=typed_query

Alea iacta est. E pouco importa que se jogue o dado para frente o para trás, pois o passado é tão imprevisível quanto o futuro. Como dizia Eco em relação à semiose hermética, em um universo discursivo em que vale tudo e não existe uma ordem temporal estabelecida, ao princípio racional do post hoc ergo propter hoc substitui-se aquele — oportunista — do post hoc ergo ante hoc39.

39 I limiti dell’interpretazione, op. cit., p. 45.

4. Vazios e segredos : dentro a indeterminação

Chegamos aqui ao problema da indeterminação. Também neste caso, o fenômeno é complexo e mutável. Diversos são os aspectos que caracterizam a indeterminação que rege o discurso de Bolsonaro sobre catástrofes, caos e teorias da conspiração. Em primeiro lugar, a indeterminação concerne ao quando. Sabe-se que algo de potencialmente desastroso acontecerá, mas não se sabe exatamente quando. Os exemplos acima citados atestam de maneira exaustiva essa lógica. Em segundo lugar, a indeterminação diz respeito ao que. Sabe-se que algo de potencialmente desastroso acontecerá, mas não se sabe exatamente o que acontecerá : o colapso econômico ? Roubos e saques ? Violência urbana ? Nada é precisado. Antes de qualquer possível detalhe existe apenas o “caos total !”, muitas vezes acompanhado pelo ponto de exclamação.

Em terceiro lugar, a indeterminação tange ao como, isto é, à extensão e a intensidade da catástrofe. Sabe-se que algo de potencialmente desastroso acontecerá, mas não podemos antever seu alcance e impacto. O choque pode ser sempre maior e mais grave que o previsto. A este propósito, cabe ressaltar que a pandemia se tornou mais um recurso fundamental para revigorar a vagueza do catastrofismo bolsonarista. Afirma, por exemplo, o presidente em 30 de março de 2020 : “temos dois problemas que não podem ser dissociados : o vírus e o desemprego. Ambos devem ser tratados com responsabilidade. Mas se o remédio for demasiado o efeito colateral será muito mais desastroso”40. Prevalece aqui uma lógica tensiva. Parafraseando Claude Zilberberg, poderíamos dizer que o desastre bolsonarista coloca-se em um campo tensivo regido pela articulação entre o “mais” e o “ainda mais”41. Nesse espaço discursivo, a extensão e a intensidade do mal que está por vir ultrapassam constantemente seus limites, sem nunca poderem ser fixadas de maneira pontual e definitiva.

40 https://twitter.com/jairbolsonaro/
status/1244576384271503360

41 C. Zilberberg, La structure tensive, Liège, Presse de l’Université de Liège, 2012.

Em quarto lugar, a indeterminação refere-se ao quem. Sabe-se que algo potencialmente desastroso acontecerá, mas nem sempre os responsáveis da catástrofe são identificados com precisão. O leque de conspiracionistas que, segundo Bolsonaro, tramam contra o Brasil e os brasileiros é, como vimos, amplo e diverso. No entanto, se em algumas circunstâncias os culpados pelo desastre são explicitamente apontados e nomeados, em outras as coisas funcionam de modo diferente.

Escreve Carlos Bolsonaro no Twitter no dia 9 de setembro de 2019 : “só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes !”42. E no dia 8 de setembro, elogiando a reação do pai diante do avanço da epidemia no Brasil : “o Presidente se mostra novamente um Líder ! Conduz mais um problema contra “tudo” e “todos”, com inteligência e visão de ÁGUIA”43. O que isso significa ? Quem são “os que sempre nos dominaram continuam nos dominando” ? O que quer dizer “contra tudo” ? E quem seria os “todos” contra quem Bolsonaro conduz sua batalha ? Não há, nem deve haver, uma resposta certa a estas perguntas. O que se busca é a ambiguidade, a implantação da dúvida, a criação e a perpetuação de um enigma.

42 https://twitter.com/CarlosBolsonaro/
status/1171201933891244033

43 https://twitter.com/CarlosBolsonaro/
status/1247962389762510849

As artimanhas discursivas por meio das quais se constrói uma aura de mistério em torno dos traidores da pátria não param por aqui. As fileiras de inimigos dos Bolsonaros são compostas por sujeitos como o “establishment”, o “sistema”, o “mecanismo” e assim por diante, utilizados como verdadeiros “significantes vazios”, no sentido de E. Laclau44, isto é, como termos dentro dos quais podem conviver e no âmbito dos quais podem ser reconduzidos, vez por vez, atores específicos diversos : “o jogo sujo continua... como sempre falamos ; seremos nós contra todo o sistema e diariamente teremos que desarmar diversas bombas, enquanto os corruptos nadam de braçada !”45 ; “poderosos se levantaram contra mim. É uma verdade. Eu estou lutando contra um SISTEMA, contra o ESTABLISHMENT”, repete com insistência nos primeiros meses da pandemia de COVID 1946.

44 Cf. E. Laclau, op. cit.

45 https://twitter.com/jairbolsonaro/
status/940370784425529346

46 https://twitter.com/jairbolsonaro/
status/1253795629777764353

De um ponto de vista sociossemiótico, dois são os aspectos desta estratégia que é importante evidenciar. O primeiro é que naquele “tudo”, naquele “todos”, no “sistema”, no “establishment” e em todos os outros termos vagos que definem os maiores antissujeitos de Bolsonaro há espaço para “qualquer coisa” e “qualquer um” : o PT, Lula, Dilma, a China, a OMS, o PSDB, os governadores, o Supremo Tribunal Federal, Sergio Moro, etc. Lembremos do vídeo do leão anteriormente citado, no qual boa parte destes sujeitos conspiravam contra o atual Presidente do Brasil47. O segundo aspecto é que a indeterminação bolsonarista responde, como antecipamos no fim da seção anterior, à lógica da “semiose hermética” postulada por Eco. Trata-se, pois : (i) de um discurso enigmático para o qual muitas coisas podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas48 ; de um discurso paradoxal que, de modo parecido ao que acontece nos textos alquímicos, ao mesmo tempo que diz revelar um segredo continua, ao menos em parte ocultando-o49 ; de um discurso que identifica a verdade com aquilo que não é dito, ou com aquilo que é dito de modo obscuro50 ; de um discurso que produz um deslizamento irrefreável do sentido da verdade, para o qual toda interrogação dos símbolos e dos enigmas não deve nunca chegar a uma verdade última, mas simplesmente deslocar o segredo alhures51.

47 Claudio Paolucci refletiu em detalhe sobre este tipo de relações “e-e”, nas quais termos contrários e contraditórios coexistem no mesmo plano. Cf. Strutturalismo e interpretazione, Milano, Bompiani, 2010.

48 I limiti dell’interpretazione, op. cit., p. 43.

49 Ibid., p. 78.

50 Ibid., p. 44.

51 Ibid., p. 47.

Neste sentido, as reflexões de Eco ecoam aquelas de Greimas sobre a “camuflagem subjetiva”, um tipo de manipulação discursiva própria, entre outros, do discurso parabólico, segundo o qual, para ser aceito como “verdadeiro”, um texto deve parecer “segredo”52. Uma comunicação que Greimas define “hermético-hermenêutica”, na qual o sujeito da enunciação manifesta-se em primeira pessoa como um “Eu” fiador da verdade, sugerindo a existência de um nível de leitura “anagógico” do texto, que “pede” para ser continuamente decifrado.

52 “Le contract de véridiction”, Du Sens II, op. cit., p. 108.

Segundo os raciocínios de Eco e Greimas, pode-se dizer, portanto, que o discurso hermético coloca a verdade em um futuro inalcançável, à qual se deve constantemente se aproximar, mas nunca chegar. No entanto, de maneira em certo sentido paradoxal, ao passo que a oculta deslocando-a no tempo, o mesmo discurso diz revelar “A Verdade”. Bem entendido, a revela de forma obscura, construindo a imagem de um leitor modelo competente, capaz de ler nas entrelinhas, membro de um pequeno grupo de iniciados que “sabem”. Mas, de todo modo, alega revelar “A verdade”. Trata-se, conforme aponta Eco, de uma das estratégias de manipulação mais eficazes da semiose hermética : o segredo deve ser, ao mesmo tempo, velado e desvelado. Um pouco como acontece nos textos do alquimista Antoine-Joseph Pernety, nos quais se passa de signo em signos, de símbolo em símbolo, sem nunca poder identificar com precisão os percursos e os processos que levariam à “Verdade”, sem que, “A verdade” possa ser, uma vez por todas, alcançada53.

53 I limiti dell’interpretazione, op. cit., p. 84.

O mesmo vale para Bolsonaro. No discurso dele, a verdade é antes de tudo uma tensão semiótica rumo a um futuro inatingível, assim como o futuro é uma tensão semiótica rumo a uma verdade inacessível. À verdade última nunca se pode chegar : a se pode apenas roçar, perseguir por via assintótica. Não por acaso, uma das citações preferidas de Bolsonaro é o salmo de João 8:32 : “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, escrito no futuro do presente do indicativo. Mas qual seria a verdade que “nos libertará” ? Bolsonaro não o diz, ou o diz, muitas vezes, de maneira obscura e parcial (poderosos se levantaram contra mim. É uma verdade. Eu estou lutando contra um sistema, contra o establishment). É aqui que residiu, até agora, a eficácia de seu discurso : no fato de se colocar como um “Eu” fiador de uma “Verdade” a ser initerruptamente (e nunca inteiramente) desvelada. Uma verdade dentro qual convivem temas, figuras, objetos, sujeitos e valores diversos e até potencialmente contraditórios, suscetíveis de serem rearranjados conforme as exigências do momento (um dia o inimigo da nação é o PT, outro dia o STF, outro Doria, outro Sergio Moro, outro o PSL, outro a OMS, outro o Sistema, outro todos juntos ao mesmo tempo). No fundo, como dizia Eco, o poder de quem anuncia conhecer e querer revelar um “segredo” é exatamente este : possuir um segredo vazio54.

54 Ibid., p. 85.

5. Paixões e humores futuros

Em seu estudo sobre a semiose hermética, Eco discute ainda sobre o “excesso de maravilha” decorrente da superinterpretação dos indícios fornecidos por um determinado texto ou discurso55. Eco enfrenta essa questão no quadro das coordenadas definidas por seu problema de pesquisa : os limites e os excessos da intepretação. A maravilha não o interessa enquanto sentir e/ou paixão, mas como faísca capaz de engendrar leituras suspeitosas e paranoicas do mundo. Um assunto, portanto, de natureza lógico-cognitiva. No entanto, as páginas sobre o excesso de maravilha convidam a enquadrar o problema do discurso hermético a partir de uma outra perspectiva, que leve em consideração as suas qualidades estético-passionais, também fundamentais no discurso político contemporâneo56.

55 Ibid., p. 87.

56 Vejam-se, a este propósito, os dossiês organizados por E. Landowski, Populisme et esthésie, Actes Sémiotiques, 121, 2018 e Dimensions sémiotiques du populisme, Actes Sémiotiques, 123, 2020 ; G. Marrone, Languages of politics / Politics of languages, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 2, 2019 ; D. Bertrand et al., Forme semiotiche dell’espressione politica, Carte Semiotiche Annali, 6, 2018 ; A. Bueno e O. Fulaneti, Discursos políticos na contemporaneidade, Estudos Semióticos, 1, 15, 2019.

Ora, na ideia de catástrofe caótica e conspiratória promovida por Bolsonaro, humores, afetos e paixões com nome e sem nome jogam um papel de primeiro plano. Como já observamos, o futuro próximo que se prospecta no horizonte é sempre “desastroso”, “trágico”, “tremendo”. Cabe então se perguntar : quais são as consequências desta articulação temático-figurativo-aspectual no plano estésico-passional ?

Uma primeira resposta : o medo. O medo é uma típica paixão do futuro57. Teme-se sempre algo que está por vir, as consequências de ações e passadas e presentes nos dias que virão. Contundo, como observa Marrone retomando Delumeau, o medo é também uma paixão que oscila entre determinação e indeterminação, entre o vago e o preciso58. Pode-se temer algo específico (Lula, João Doria, os chineses, o Supremo Tribunal Federal) e, ao mesmo tempo, algo indefinido (a catástrofe, o fim, a morte, sem saber exatamente do que se trata). Mas o medo desemboca aqui na angústia, paixão incerta por excelência, sem uma causa precisa, responsável pela caída do sujeito na espera perene de um mal impreciso, suscetível de se manifestar a qualquer momento59. A angústia é, portanto, sob o perfil aspectual, uma paixão durativa.

57 Cf. D. Barros, Margens, periferias, fronteiras, op. cit. ; R. Bodei, Geometria delle passioni. Paura, speranza e felicità : uso politico, op. cit. ; J.L. Fiorin, “Algumas considerações sobre o medo e a vergonha”, Cruzeiro Semiótico, 16, 1992 ; I. Pezzini, Le passioni del lettore, op. cit. ; D. Salerno, Terrorismo, sicurezza, post-conflitto. Studi semiotici sulla guerra al terrore, Padova, Libreria Universitaria, 2012 ; G. Marrone, “Fragmentos de um discurso político”, art. cit.

58 Cf. G. Marrone, “Fragmentos”, art. cit., p. 4. J. Delumeau, La peur en Occident, Paris, Fayard, 1978.

59 CF. G. Marrone, art. cit., p. 4.

É este o caso da catástrofe e do caos bolsonarista. Um futuro indeterminado e ameaçador envolvido em uma nuvem de angústia. A imprevisibilidade e a vagueza que caracterizam o futuro segundo Bolsoanro alimentam essa sensação. Dizer que algo terrível esta para acontecer sem revelar, no entanto, do que exatamente se trata, é uma estratégia eficiente para manter viva a tensão. Mais do que isso : o continuum da inquietude é atravessado pela insurgência de paixões pontuais como, por exemplo, o pavor e o terror. Há sempre, na maneira como Bolsonaro anuncia a catástrofe a vontade e a exigência de atordoar e desconcertar de modo hiperbolicamente negativo e disfôrico.

Como na análise de Greimas sobre o senhor Palamor de Calvino, estamos aqui diante de um guizzo, isto é, da emergência repentina de algo que perturba os sentidos e o sentido da vida60. Há, todavia, uma diferença entre esse caso e o que estamos analisando. Enquanto nos textos analisados por Greimas o acidente estésico emerge sobre um pano de fundo de monotonia, atonicidade e usura perceptiva, no caso de Bolsonaro o pavor e o terror surgem de um substrato emocional já fortemente excitado. É o constante estado de inquietude ao qual se refere Y. Fechine, que transforma os seguidores de Bolsonaro em um exército de soldados sempre alertas61, ou o estado de ânimo do sujeito paranoico que espera que uma profecia funesta se realize62.

60 Da Imperfeiçao, op. cit.

61 Y. Fechine, “Passions et présence...”, art. cit.

62 U. Eco, I limiti dell’interpretazione, op. cit. ; R. Bodei, op. cit.

Entramos aqui em um universo em que as paixões até agora descritas começam a se confundir, desembocando em uma esfera tímica cujos contornos são menos definidos. Para usarmos os termos de Landowski, passa-se das “paixões com nome” às “paixões sem nome”. O adepto do bolsonarismo vive em um constante estado de fibrilação. O que domina é uma estesia intensa e indecifrável a priori, um borbulhar contagioso, uma espécie de “massa tímica em movimento”63, cujas trajetórias não são inteiramente mapeáveis. Como foi recentemente observado, trata-se de uma caraterística fundamental do atual populismo de direita, no qual o sensível, os humores e as paixões sem nome jogam um papel de primeiro plano64.

63 E. Landowski, Présences de l’Autre, op. cit., p. 210.

64 E. Landowski (org.), Populisme et esthésie, op. cit., Dimensions sémiotiques du populisme, op. cit. G. Marrone (org.), Languages of politics / Politics of languages, op. cit.

Diante desse quadro, emerge um problema teórico sobre o qual, futuramente, será importante refletir : aquele da passagem da timia e da estesia às paixões socialmente reconhecidas e nomeadas. Por enquanto baste observar, no que concerne ao caso de Bolsonaro, duas coisas. A primeira é que existe uma relação de determinação recíproca entre estesia a indeterminação semântica. Quanto mais aumenta a primeira, mais aumenta a segunda. Quanto mais imprevisível será o efeito da catástrofe iminente, maior será a intensidade estésica de sua espera. A segunda é que o “susto” não define apenas o advento do desconhecido, como também do que já se sabia que ia acontecer. Segundo as leis que regem o discurso de Bolsonaro, o “espanto” circunda também o concretizar-se do fato previsível. Assusta-se não apenas diante do “não sei o que está-por vir”, como também perante ao “sabia”. Não por acaso, uma das estratégias preferidas de Bolsonaro diz respeito à urgência : “URGENTE ! ABSURDO !, escreve-se muitas vezes, em maiúsculo, quando se compartilha uma “notícia bomba” no Twitter ou no Whatsapp. E pouco importa se a notícia seja ou não, de fato, uma bomba. O que importa, conforme a lógica tensiva do “mais” e do “ainda mais” à qual nos referíamos nas seções anteriores, é aumentar a tensão e a carga estésica em circulação no corpo social, alimentar seu contínuo alastramento.

A pandemia de Covid cumpriu, aqui, um papel fundamental. Como vimos, foi graças a ela que o atual presidente do Brasil conseguiu fazer com que, ao longo de 2020, cargas estésicas e passionais se alastrassem com força no corpo social brasileiro, ressoando e revigorando a isotopia do catastrofismo que, há tempo, marca seu discurso político-escatológico.

Conclusão

Temos procurado entender melhor as tramas e as engrenagens nas quais se funda a articulação entre o caos, as teorias da conspiração e ameaça de um iminente futuro catastrófico no discurso de Jair Bolsonaro. Em particular, observamos como : (i) o futuro distópico de Bolsonaro oscila entre incoatividade e duratividade, configurando-se como uma dimensão atemporal que é, ao mesmo tempo, “passado”, “presente” e “futuro”. Para Bolsonaro, a catástrofe, seja ela causada pelo Foro de São Paulo, seja pela pandemia do novo coronavirus ou pela China, está sempre para começar embora esteja, simultaneamente, acontecendo há bastante tempo ; (ii) o futuro distópico de Bolsonaro é, em igual medida, previsível e imprevisível : imprevisível porque não se sabe exatamente ao que conduzirá, quando se realizará, quão violento será e quem será o responsável pelo desastre ; previsível por que, conforme as exigências do momento, pode ser atribuído a um complô antigo elaborados por atores específicos ; (iii) tanto o futuro, quanto o passado são, em Bolsonaro, altamente indeterminados : a verdade futura prometida pelo ex-capitão é um segredo vazio, que pode ser preenchido como convém ; (iv) o futuro distópico de Bolsonaro é atravessado por um estado de exitação constante, no qual convivem e se alternam paixões com nome e sem nome : angustia, ansiedade, inquietude, pavor e humores imprecisos, tensões indefinidas e picos extáticos. O bolsonarista convicto está sempre alerta, pronto, mas nunca completamente, para a catástrofe que está por vir, diante da qual pode sempre se maravilhar, mesmo quando, a posteriori, as coisas parecem ser mais obvias de quanto inicialmente pareciam.

A pandemia de Covid 19 inseriu-se nesse quadro intensificando o discurso catastrofista-conspiratório do ex-capitão do exército brasileiro. Aos poucos, tornou-se mais um recurso para reforçar à adesão à sua narrativa escatológica. Sendo descrita como uma outra possível causa de iminentes flagelos e desastres planejados pelos “sistemas” e pelos “establishments” que governam o Brasil, serviu para consolidar, inteligível e sensivelmente, a crença sobre o (constantemente) próximo “fim da nação”. Diante deste cenário, Bolsonaro cumpre um dúplice papel temático, agindo como um oráculo do caos ao mesmo tempo que como o providencial messias salvador da pátria. Um programador de acidentes – sociais, econômicos, sanitários, pouco importa – cuja duração, dimensões e intensidade ele mesmo afirma não saber, ainda que se diga preparado para vislumbrá-los e enfrentá-los.

 

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1 F. Sedda e P. Demuru, “Da cosa si riconosce il popuslimo. Ipotesi semiopolitiche”, Actes Sémiotiques, 121, 2018.

2 Cf. J. Lotman, La cultura e l’esplosione. Prevedibilità e imprevedibilità, Milano, Feltrinelli, 1993.

3 Cf. M. Leone (org.), Complotto / Conspiracy, Lexia, 23-24, 2016 ; M. Butter e P. Knight (org.), The Routledge handbook of conspiracy theory, Oxford, Routledge, 2020.

4 E. Laclau, On populist reason, London, Verso, 2005.

5 U. Eco, I limiti dell’interpretazione, Milano, Bompiani, 1990.

6 J. Lotman e B. Uspenskij, Tipologia della cultura, Milano, Bompiani, 1975 ; J. Lotman, “La caccia alle streghe. Per una semiotica della paura”, E/C, 2008 ; I. Pezzini, Le passioni del lettore, Milano, Bompiani, 1998 ; R. Bodei, Geometria delle passioni. Paura, speranza e felicità : uso politico, Milano, Feltrinelli, 1991 ; D. Barros, Margens, periferias, fronteiras : estudos linguísticos-discursivos das diversidades e intolerância, São Paulo, Editora Mackenzie, 2016 ; Y. Fechine, “Passions et présence dans le populisme numérique brésilien”, Actes Sémiotiques, 123, 2020.

7 E. Landowski, Passions sans nom, Paris, PUF, 2004.

8 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage, Paris, Hachette, 1979 ; id., “Le contract de véridiction”, Du Sens II, Paris, Seuil, 1983 ; id., De l’Imperfection, Périgueux, Fanlac, 1987 ; id. e J. Fontanille, Sémiotique des passions, Paris, Seuil, 1991. E. Landowski, Passions sans nom, op. cit. ; id., Les interactions risquées, Limoges, Pulim, 2005. I. Pezzini, Le passioni del lettore, op. cit. G. Marrone, “Fragmentos de um discurso político. Intervenções críticas”, Estudos Semioticos, 1, 25, 2019, entre outros.

9 J. Lotman “Nella prospettiva della rivoluzione francese” (1989), in L. Gherlone (org.), Dopo la semiosfera, Milano, Mimesis, 2014 ; Cercare la strada. Modelli della cultura, Venezia, Marsilio, 1994 ; La cultura e l’esplosione, op. cit.

10 F. Sedda, Imperfette traduzioni. Per una semiopolitica delle culture, Roma, Nuova Cultura, 2012.

11 E. Landowski, “Regimes de presença e formas de popularidade”, Presenças do Outro, São Paulo, Perspectiva, 2002 (cap. 7).

13 Vejam-se, a este proposito, as declarações de Cabo Daciolo, candidato à Presidencia da República em 2018 : https://www.youtube.com/watch?v=7ANqSdWvTlo.

16 Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, op. cit. Sobre as recentes declinações do tema da aspectualidade veja-se M. Leone (org.), Aspettualità / Aspectuality, Lexia, 27-28, 2017.

22 La cultura e l’esplosione, op. cit., p. 35.

23 Les interactions risquées, op. cit.

24 “Passions et présence...”, art. cit., p. 11 (trad. nossa).

31 P. Demuru, “Between Accidents and Explosions : Indeterminacy and Aesthesia in the Becoming of History”, Bakhtiniana, 15, 1, 2020.

32 Cercare la strada, op. cit., p. 35 (trad. nossa).

33 Ibid., p. 93.

34 Ibid., p. 96.

35 Ibid., p. 37.

36 “Na perspectiva...”, art. cit., p. 172.

39 I limiti dell’interpretazione, op. cit., p. 45.

41 C. Zilberberg, La structure tensive, Liège, Presse de l’Université de Liège, 2012.

44 Cf. E. Laclau, op. cit.

47 Claudio Paolucci refletiu em detalhe sobre este tipo de relações “e-e”, nas quais termos contrários e contraditórios coexistem no mesmo plano. Cf. Strutturalismo e interpretazione, Milano, Bompiani, 2010.

48 I limiti dell’interpretazione, op. cit., p. 43.

49 Ibid., p. 78.

50 Ibid., p. 44.

51 Ibid., p. 47.

52 “Le contract de véridiction”, Du Sens II, op. cit., p. 108.

53 I limiti dell’interpretazione, op. cit., p. 84.

54 Ibid., p. 85.

55 Ibid., p. 87.

56 Vejam-se, a este propósito, os dossiês organizados por E. Landowski, Populisme et esthésie, Actes Sémiotiques, 121, 2018 e Dimensions sémiotiques du populisme, Actes Sémiotiques, 123, 2020 ; G. Marrone, Languages of politics / Politics of languages, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 2, 2019 ; D. Bertrand et al., Forme semiotiche dell’espressione politica, Carte Semiotiche Annali, 6, 2018 ; A. Bueno e O. Fulaneti, Discursos políticos na contemporaneidade, Estudos Semióticos, 1, 15, 2019.

57 Cf. D. Barros, Margens, periferias, fronteiras, op. cit. ; R. Bodei, Geometria delle passioni. Paura, speranza e felicità : uso politico, op. cit. ; J.L. Fiorin, “Algumas considerações sobre o medo e a vergonha”, Cruzeiro Semiótico, 16, 1992 ; I. Pezzini, Le passioni del lettore, op. cit. ; D. Salerno, Terrorismo, sicurezza, post-conflitto. Studi semiotici sulla guerra al terrore, Padova, Libreria Universitaria, 2012 ; G. Marrone, “Fragmentos de um discurso político”, art. cit.

58 Cf. G. Marrone, “Fragmentos”, art. cit., p. 4. J. Delumeau, La peur en Occident, Paris, Fayard, 1978.

59 CF. G. Marrone, art. cit., p. 4.

60 Da Imperfeiçao, op. cit.

61 Y. Fechine, “Passions et présence...”, art. cit.

62 U. Eco, I limiti dell’interpretazione, op. cit. ; R. Bodei, op. cit.

63 E. Landowski, Présences de l’Autre, op. cit., p. 210.

64 E. Landowski (org.), Populisme et esthésie, op. cit., Dimensions sémiotiques du populisme, op. cit. G. Marrone (org.), Languages of politics / Politics of languages, op. cit.

 

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Palavras chave : acidente, actante joker, catástrofe, discurso político, estesia, explosão, indeterminação, paixão, populismo, previsibilidade vs imprevisibilidade.

Mots clefs : accident, actant joker, catastrophe, discours politique, esthésie, explosion, indétermination, passion, populisme, prévisibilité vs imprévisibilité.

Auteurs cités : Umberto Eco, Yvana Fechine, Algirdas J. Greimas, Eric Landowski, Juri Lotman, Gianfranco Marrone, Franciscu Sedda, Claude Zilberberg.


Plan

Introdução

1. Inimigos passados, presentes e futuros

2. À beira de uma eterna catástrofe

3. Entre previsibilidade e imprevisibilidade

4. Vazios e segredos : dentro a indeterminação

5. Paixões e humores futuros

Conclusão

 

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